domingo, 30 de janeiro de 2011

“Pai, afasta de mim esse cálice!”

Por João Paulo da Silva

O refrão da música de Chico Buarque ficou imortalizado como uma das marcas da luta contra a ditadura. A ambiguidade da expressão “cálice” era a representação criativa do anseio de afastar o silêncio que atordoava muita gente. Passados os anos de chumbo, o silêncio ainda permanece. Frequentemente, somos obrigados a nos calar, ou, para usar um eufemismo, não nos é permitido responder. O que na prática é mesma coisa.

A televisão é uma das muitas maneiras de impor o silêncio. Em 1996, o sociólogo francês Pierre Bourdieu, em entrevista ao Jornal do Brasil, afirmou: “A televisão é uma lavagem cerebral, uma despolitização trágica, um instrumento antidemocrático.”. Dando o exemplo da TV norte-americana, Bourdieu caracterizou o ato de ver televisão como uma “experiência terrível”. Para o pensador francês, a caixa mágica resume-se a uma avalanche de propaganda, propaganda e mais propaganda. Numa clara demonstração dos interesses mercadológicos por trás da telinha. De fato, Bourdieu tem razão. Se levarmos em conta – e acho que devemos – algumas reflexões feitas por Muniz Sodré em seu livro O monopólio da fala, chegaremos a uma conclusão perigosa sobre a função da TV.

Trilhando, de certa maneira, o mesmo caminho que Bourdieu, Sodré diz ser a televisão uma “violência” ao processo comunicativo. Comunicação é, primeiramente, diálogo. Deve haver reciprocidade entre falante e ouvinte. A televisão não permite a troca plena da comunicação, não há possibilidade de resposta para o interlocutor. É nisto que consiste o monopólio do discurso, na eliminação da possibilidade de resposta, na hegemonia do falante sobre o ouvinte.

Penso que Bourdieu e Sodré estão certos. A TV “castra” o interlocutor. Antes que os cínicos façam gracinhas, devo advertir que resmungar discordâncias, sentado na poltrona de casa, não vale como resposta. Quem vê TV, não faz TV. O conteúdo veiculado impede a compreensão do mundo como ele de fato é, criando falsas ideologias. A televisão, sob a perspectiva de uma sociedade cindida em classes e voltada aos interesses do mercado, torna-se um poderoso instrumento de homogeneização do grotesco e do vazio. A TV apresenta um mundo diferente do real com a desculpa de que as pessoas estão cansadas de realidade. Faltou dizer que, entre produzir obras de ficção e mascarar a verdade, existe um abismo imenso.

Não estamos mais nos anos de chumbo, é verdade. Mas a enorme ambição de afastar o “cálice” ainda persiste.

domingo, 23 de janeiro de 2011

Psicopatas

Por João Paulo da Silva

Horrores inimagináveis como os que foram cometidos por Josef Fritzl, o “Monstro da Áustria”, condenado em 2009 à prisão perpétua pelos crimes de incesto, estupro, cárcere privado e homicídio, estarrecem a humanidade pelo grau de barbárie e reacendem, de tempos em tempos, um medo imensurável em todos nós: o de que qualquer um ao nosso lado pode ser um psicopata. Inclusive o próprio pai. É claro que viver num clima desses só pode nos levar a uma paranoia coletiva, algo muito comum numa sociedade doente como a nossa.

É terrível, verdade seja dita. Como podemos saber se estamos diante de um psicopata? Como reconhecer alguém que pode cometer as piores insanidades sem o menor remorso, já que psicopatas não andam com placas de aviso nem rótulos no peito? Fica difícil. Quer dizer, ficava.

Recentemente, li uma entrevista com o psicólogo canadense Robert Hare, famoso por ter criado uma escala usada mundialmente para medir os graus de psicopatia de cada um. Na escala, o número máximo que a insanidade pode atingir é 40. A dificuldade de reconhecimento de um maníaco pode ser ilustrada com uma simples analogia.

Imagine um jogo de gato e rato. Para Hare, o psicopata é como o gato, que não pensa no que o rato sente. Ele só pensa em comida, em satisfazer a si mesmo. A vantagem do rato sobre as vítimas do psicopata é que ele sempre sabe quem é o gato. Com a gente é diferente. Às vezes não dá tempo de reconhecer o gato.

Mas os critérios de avaliação adotados por Hare podem ajudar a identificar um comportamento psicótico. Ele estabeleceu alguns, como extrema facilidade para mentir, grande capacidade de manipulação e mania de dizer que está sendo mal interpretado quando é pego fazendo coisas erradas.

Juro – e nem sempre faço isso – que quando li que estes seriam os indicadores de psicopatia pensei: se o psicólogo canadense estiver certo, nosso problema é bem maior do que imaginamos. Por quê? Observe o cenário político brasileiro. Agora, responda: em que as atitudes dos políticos se diferenciam dos comportamentos indicados pelo psicólogo?

Eu sei, não é uma conclusão tranquila. Eles mentem, manipulam e ainda se dizem mal interpretados quando são pegos com a boca na botija. Estou inclinado a acreditar que nosso país e estados são governados por astutos psicopatas, classificados nos graus 12, 13, 15, 22, 25, 40, 43, 45, 65, conforme número do partido. Terrível, não?

Mas isso não é tudo. Pior é quando, em tempos de crise econômica ou não, eles aumentam os próprios salários, culpam a natureza por tragédias em que eles são os responsáveis e ainda reduzem o orçamento de serviços essenciais, como a saúde, por exemplo. Aí deixam de ser apenas psicopatas. E, sem remorso nenhum, se tornam verdadeiros serial killers, responsáveis por todos os mortos nas filas dos hospitais e enchentes da vida.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Feliz ano novo!

Por João Paulo da Silva

Na beira do mar, o Roberval segurava sua tacinha de plástico cheia de vinho espumante barato. Vestido de branco, assim como centenas de tantas outras pessoas, ele aguardava eufórico a queima de fogos e a chegada do ano novo. No peito, aquele velho e conhecido pensamento: “Porra, o próximo ano tem que ser melhor, né?! Esse foi de lascar.”. E o Roberval tinha razão. O ano não fora nada bom. Repleto de tragédias individuais e coletivas, muitas das quais ele mesmo começou a recordar naquele momento, enquanto esperava o início da contagem regressiva.

Desgraças tomam conta do Haiti. Terremoto, furacão, cólera. Tudo agravado pelo papelão das tropas militares da ONU no país. Vazamento de óleo inunda Golfo do México. Vulcões enfurecidos cospem fogo e cinzas na Europa. Geleiras derretem cada vez mais e aquecimento global aumenta. Crise econômica retorna, com a fatura sendo depositada na conta dos mais pobres. Mineiros são soterrados no Chile. Rio de Janeiro patina entre os tiros do Bope e dos traficantes. Enchentes se espalham por São Paulo, Alagoas e Pernambuco. Violências aterrorizantes são cometidas contra mulheres, indo do Irã aos gramados brasileiros. Na Avenida Paulista, quem desfila é a homofobia. Capitão Nascimento chega ao posto de herói nacional. Dilma é eleita presidente para dar continuidade ao passado, junto com Tiririca e Maluf. Lula atinge 87% de popularidade pagando R$ 130 para miseráveis. Serra sofre atentado terrorista com bolinha de papel. Parlamentares aumentam os próprios salários para R$ 26 mil. Morre José Saramago, e o Paulo Coelho nem gripe pega. Brasil deixa escapar o hexa numa das piores Copas do Mundo da história (se não fosse a Larissa Riquelme, tudo estaria perdido).


O Roberval só foi tirado de sua rápida e trágica retrospectiva por causa da queima dos fogos de artifício e de um sujeito que o cutucava insistentemente.


- Opa, companheiro! Feliz ano novo pra você! – adiantou-se o Roberval para o desconhecido.
- Feliz ano novo é o cacete, cumpade! Passa logo pra cá a carteira, o relógio, o celular e essas pulseiras de bacana aí! – disse o sujeito com um canivete encostado na barriga do Roberval.
- Mas calma aí, colega. Também não é assim, né?! Poxa, é ano novo. O que é isso, companheiro?! – ainda tentou argumentar o Roberval, enquanto entregava os pertences.
- Isso é assalto, mano! Nunca viu, não? Nesse país todo mundo rouba. Por que ladrão não pode roubar?! Se ligou na ideia? Pois é. Agora me dá um gole desse champanhe aí também. Perdeu, prayboy. Feliz ano novo!


“É. Vai ser um ano daqueles.”, pensou o Roberval, vendo o sujeito se afastar e os últimos fogos de artifício estourarem.