Por João Paulo da Silva
Parecia ser mais um dia como outro qualquer na vida do deputado federal Odair Reacionário. Como de costume, acordou por volta das 5 da manhã, tomou sua ducha fria de meio minuto e barbeou-se com um canivete do tempo em que ainda era militar. Em seguida, vestiu sua cueca da sorte, com a suástica bordada na frente, sentou-se na cama e começou a lustrar os coturnos. Só para não perder o hábito, montou e desmontou seu fuzil umas trezentas e cinquenta vezes. Depois, dirigiu-se a um pequeno e singelo altar. Ajoelhou-se e pôs a mão sobre um livro de capa preta. Mein Kampf, dizia o título em alemão. Rezou em silêncio e com a cabeça voltada para duas imagens acima do altar. Eram figuras bastante conhecidas. Da parede, as fotos de Médici e Geisel observavam com alegria o nobre deputado.
Terminado o ritual matutino, Odair Reacionário sentou-se à mesa sem dar bom-dia a sua esposa, pediu o café e pegou o jornal. As notícias não eram nada animadoras. “MST ocupa mais dez fazendas no interior de São Paulo”, “Metalúrgicos do ABC iniciam greve geral”, “Congresso vota hoje Lei da Homofobia; movimento LGBT promete fazer pressão”. Os tempos não eram bons, pensou o deputado.
- Ai, que saudade da Dita. – suspirou Odair. – A Dita é que era mulher de verdade... – cantarolou baixinho.
Imediatamente, a esposa fixou os olhos duros no marido. Como um balão que não podia mais receber ar, ela explodiu pra cima dele:
- Não aguento mais isso, Odair! Desde que nós nos casamos que você fala nessa tal de Dita. Até na minha frente você fala nela. Anda, Odair! Quem é essa Dita?! Hein?! É Benedita o nome dela, não é?! Quem é essa sirigaita?! Fala, Odair!
- Olha aqui, mulher. Não admito que você levante a voz pra mim. Tá pensando o quê?! Que mulher pode fazer o que quiser?! Numa boa família, quem manda é o homem! E aqui o homem sou eu! Só não te dou umas porradas porque se não vou amassar meu terno. E outra. Larga de ser burra. A Dita de que tô falando é a Ditadura! Essa, sim, me dá saudade.
Raivoso, engoliu os ovos com bacon e saiu da cozinha pisando firme. Quando passou pela sala, viu que seu filho mais novo, um garoto de seus treze anos, estava assistindo ao desenho do Bob Esponja.
- Mas o que é isso, moleque?! Que merda de desenho é esse?!
- É o Bob Esponja, pai.
- Bob Esponja é o cacete, rapaz! Isso daí é o Bob Boiola. Que tipo de homem tem um amigo em forma de estrelinha cor de rosa?!
- Mas o Bob não é um homem. É uma esponja, pai.
- Ah, logo vi! Claro que não poderia ser homem. Mole desse jeito! Você não vai ver esse desenho. Isso é coisa de gay.
- Mas eu gosto, pai.
- Gosta nada, moleque. Escuta aqui. Se você não andar na linha, eu te dou um couro! – e Odair lascou um cascudo na cabeça do filho.
Da entrada da cozinha, a mulher ainda pediu:
- Não faz isso, Reacionário.
- E você cala a boca! Volta pra cozinha que é o teu lugar. Tão pensando o quê?! Que vão fazer revolução?! Que aqui pode ter mulher independente e filho veado?! Nada disso! Aqui não é a casa da mãe Joana, não!
E olhando para o filho que chorava, Reacionário completou:
- Ô moleque! Para de chorar! Homem não chora, cacete! Parece uma bichinha. E tem mais, hein! Quando eu voltar, se você não tiver aprendido a coçar o saco e a cuspir no chão, vai pro pau de arara. Tá me entendendo?! Agora quero ver pedir pra sair! Pede pra sair! Pede pra você ver!
Antes de sair de casa, o deputado Odair ainda deu mais três coices, relinchou e bateu a porta com força atrás de si. Só não comeu a grama do jardim porque já tinha tomado café. No caminho até o Congresso Nacional, ligou o rádio no carro para ouvir as notícias. Estarrecido, descobriu que centenas de milhares de pessoas se aglomeravam em frente à “Casa do Povo”. O locutor informou que a Praça dos Três Poderes estava repleta de pessoas. Eram trabalhadores, jovens, idosos, homens, mulheres, negros, brancos, gays, lésbicas, travestis. Segundo o locutor, bandeiras vermelhas e coloridas tomavam a fachada do Congresso. Todos querendo pressionar o Legislativo para que a lei contra a homofobia fosse aprovada. No carro, Odair Reacionário pensava: “Meu Deus. Hoje vai ser um dia daqueles. Parece um pesadelo. Esses promíscuos querem acabar com a família, a moral e os bons costumes. Isso tem que ser resolvido é na bala.”.
Quando o carro se aproximou do Congresso, o deputado pode comprovar que o pesadelo era maior do que o rádio havia informado. Na praça, tinha mais gente do que ele imaginara, mais até do que fora anunciado. Nas mãos, os manifestantes exibiam cartazes e faixas. “Chega de homofobia!”, “Direitos iguais para os homossexuais!”, “Contra toda forma de opressão!”, “O amor não é pecado!”, “Pela aprovação imediata do PLC 122!”, “Criminalização da homofobia já!”.
Odair Reacionário não acreditava no que estava vendo, devia ser um pesadelo mesmo. Ainda teve ímpetos de baixar o vidro do carro, colocar a cabeça para fora e gritar: “Mas o que é isso?! É o Apocalipse?! Sodomitas! Infiéis! Vão queimar no fogo do inferno!”. Só não o fez porque estava em menor número. Era um soldado, um estrategista. “Mas esperem até eu entrar no Congresso. Aí vocês vão ver. Os defensores da família não vão permitir a aprovação da safadeza.”, disse pra si mesmo.
Na entrada do prédio, dezenas de repórteres se amontoavam. Todos esperando a chegada do deputado Odair Reacionário, principal representante da moral e dos costumes. Um parlamentar que usava a democracia para defender abertamente a ditadura e que pregava sem remorsos o direito de ser preconceituoso. Eufóricos, os jornalistas queriam ouvir de Odair uma avaliação sobre a decisão que o Congresso estava prestes a tomar.
- Então, deputado, parece que por causa da pressão popular a bancada do governo está se vendo obrigada a votar pela aprovação da lei anti-homofobia. O que o senhor tem a dizer sobre isso? – perguntou uma repórter.
- Nós estamos numa guerra, minha filha. Esse é um governo de frangotes. Nós não vamos amolecer diante deste bando de pederastas que está aqui na frente do Congresso. Nossa bancada vai lutar até o fim contra essa imoralidade. Eu não quero que meu filho abra a porta de casa e dê de cara com duas mulheres ou dois homens se beijando. Eu quero que meu filho seja macho.
- Mas o senhor não acha que este tipo de comportamento é intolerante e homofóbico? – quis saber outro repórter.
- E quem é que está sendo intolerante e homofóbico aqui, meu rapaz?! Eu não sou homofóbico, só acho que isso de homossexualismo é coisa de veado. E por isso sou contra. Quero ter esse direito.
- Então, o senhor quer ter o direito de oprimir os homossexuais?
- Bom, se você chama de opressão o fato de eu estar defendendo que os homossexuais não tenham direitos, então sou um opressor, sim.
Odair Reacionário ainda deu mais algumas de suas “racionais” declarações e se encaminhou para o plenário da Câmara. Mas, antes, fez questão de relinchar três vezes e beliscar um pedacinho da grama do Congresso.
Lá dentro, deputados e senadores debatiam – obrigados pela pressão popular, é claro – o projeto de lei que tornava crime a homofobia. Foram horas e horas de sessão, seguidas de discursos e mais discursos. Contra e a favor. A bancada evangélica estava assombrada diante da possibilidade da aprovação da lei. Da tribuna, seus representantes esperneavam e faziam falas bíblicas, citavam passagens dos evangelhos, reivindicavam que Deus havia criado Adão e Eva, e não Adão e Ivo, etc, etc, etc. Governistas e oposição de direita discursavam constrangidos. Uns contra, outros a favor. Mas todos constrangidos. A pressão era grande. Estavam numa encruzilhada.
Lá fora, quase um milhão de pessoas ameaçava entrar no Congresso, caso os parlamentares não ouvissem seu clamor e não aprovassem a lei anti-homofobia. Os jornais noticiavam que o Movimento Gay não iria mais retroceder em suas reivindicações. “O país já sofreu o suficiente com o preconceito, a violência, a perseguição e a intolerância. É preciso avançar no combate à opressão aos homossexuais, que tanto serve para aumentar a exploração sobre nós.”, diziam líderes do movimento.
Dentro da Câmara, o deputado Odair Reacionário era a todo instante informado por seus assessores sobre os desdobramentos da situação. O governo não tinha condições de enfrentar mais uma crise política. Caso o Congresso não aprovasse a lei, a imagem negativa das instituições democráticas só iria aumentar. Depois dos problemas com a Ficha-Limpa, será que o Legislativo suportaria mais esse baque? Era o que se perguntavam os analistas políticos.
Já passava das onze horas da noite quando o que parecia apenas um pesadelo para Odair Reacionário finalmente tornou-se uma realidade. Por uma margem pequena de diferença, o Congresso havia aprovado a lei anti-homofobia. Do lado de fora, os manifestantes comemoravam o direito de expressar a própria sexualidade. Comemoravam o direito de ver presos aqueles que ousassem reprimir a felicidade e o amor dos outros. Do lado de dentro, Odair Reacionário, já muito desesperado, pediu para subir até a tribuna. Queria falar.
- Isso é uma vergonha! – gritava – Vocês não podem aprovar essa safadeza! Isso aqui vai virar uma república de veados. Onde estão a moral e os bons costumes?! Eu não sou a favor da violência contra os homossexuais, mas acho que se o menino começa a ficar meio gayzinho ele tem que tomar umas porradas pra se orientar. Vocês não sabem o que estão fazendo. É por isso que eu defendo a ditadura e a tortura! Assim é que se endireita esse país!
Nesse momento, o deputado Odair Reacionário foi interrompido por um assessor, que lhe informou que alguém precisava falar com ele urgentemente pelo telefone.
- Quem é?!
- Seu filho, deputado. Diz que tem algo importante pra falar. – disse o assessor entregando um celular.
- O que é, moleque?!
- Pai, queria cantar pra você uma música muito legal que aprendi hoje. Tem uma lição de vida.
- Garoto, esse não é um bom momento. Estou aqui numa situação muito difícil.
- Só o refrão, pai. É rápido.
Depois de um suspiro de impaciência, Reacionário concedeu.
- Tá, moleque. Vai logo.
Com um fundo musical dançante, Odair ouviu o filho cantar:
- “Não se reprima! Não se reprima! Não se reprima!”. – em seguida, ainda com o telefone no ouvido, o deputado ouviu o garoto improvisar. – Não me reprima! Não me reprima! Não me reprima!
Imediatamente, Odair Reacionário sentiu uma forte dor no peito, a visão escureceu e ele tombou sobre o chão. Acordou assustado em sua cama, com o corpo lavado de suor.
- Meu Deus, que pesadelo. Tudo parecia tão real. Por um momento até achei que... ah, não. Claro que não. Impossível de acontecer.
Levantou-se e andou pela casa. Notou que estava sozinho. Acabou encontrando um bilhete da mulher sobre a mesa da sala. Dizia que ela havia decidido abandoná-lo. Tinha levado o filho também. “Que merda está acontecendo aqui?”, pensou Odair. Sentou-se no sofá e ligou a TV. Os telejornais falavam da realização do primeiro casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. Acontecimento que só se tornou possível após a extensão dos direitos de casais heterossexuais para casais homossexuais, aprovada juntamente com a lei anti-homofobia.
- NÃÃÃÃÃÃÃÃOOOOO!!! – gritou Odair Reacionário, acordando para o seu pesadelo.