Artur adorava jogar damas. Desde criança, ele vivia agarrado com as damas. Era a única coisa que despertava seu interesse. Nada de pipa, nem bola de gude ou pião. O negócio mesmo era jogar damas. Em qualquer lugar que estivesse, o tabuleiro e as pecinhas sempre estavam com ele. No início até parecia natural.
- Vai ser bom pra desenvolver mais rápido o intelecto. – dizia o pai, seu Matias.
Mas aí o que era exercício de inteligência acabou se transformando em obsessão. Artur começou a deixar de lado outras atividades. Não via mais televisão, não lia os gibis que o pai lhe dava, deixou até de fazer as tarefas da escola. Só queria saber de jogar damas. Não parava nem para ir ao banheiro. Fazia ali mesmo. Dizia que era pra não perder a concentração. Quem não gostava nadinha disso era a mãe, dona Vânia. Ficava louca. “Arturzinho, meu filho, assim não dá!”. Os coleguinhas do bairro, que já haviam perdido para Artur inúmeras vezes, estavam de saco cheio.
Decidiram que não jogariam mais com ele. Parecia que o problema tinha chegado ao fim. Sem oponentes, Artur não podia jogar. Aí ele teve uma brilhante idéia.
- Dona Márcia, o Juca tá em casa? – perguntou o obsessivo jogador depois que a mãe do amigo abriu a porta.
- Claro que tá, Arturzinho. Vai lá no quarto dele.
O Juca sobressaltou-se quando viu o Artur entrar.
- O que é que você quer aqui?!
O Arturzinho tirou detrás das costas o tabuleiro e as pecinhas. Olhou para o amigo com malícia e disse:
- Você vai jogar comigo.
- De jeito nenhum! Nem pensar! – resistiu o Juca.
Artur puxou do bolso um lápis com uma ponta bem afiada.
- Ou você joga, ou eu te furo! – ameaçou o obsessivo.
- O que é isso, Arturzinho? Não é bem assim. Sou teu amigo, lembra? – fraquejou o Juca.
- Se é meu amigo, então joga!!
- Tá bom. Mas só uma.
- Certo.
Não havia dúvidas, a obsessão do Artur tinha passado dos limites. Os pais resolveram tomar uma providência. Destruíram o tabuleiro e as pecinhas e internaram o garoto.
Algum tempo depois, o Arturzinho parecia curado. Tinha se tornado um belo adolescente e estava até namorando a Marta. Voltou a estudar e a praticar outras atividades. Os pais se orgulhavam da cura do filho. Levava uma vida normal. Era o que parecia até chegar o dia do seu aniversário. Estava completando dezesseis anos. Dona Vânia fez um bolo, preparou uns salgadinhos e chamou todos os amigos do filho. Ele soprou as velinhas e começou a abrir os presentes. Parou no da Marta.
- Abre, amor. Você vai gostar. – incentivou ela.
Quando o aniversariante abriu o pacote, todos se entreolharam num silêncio angustiante e constrangedor. Era um jogo de damas. Ninguém pôde culpar a Marta. Ela não sabia. Após alguns minutos de apreensão, Artur se despediu de todos e subiu para o quarto. Levou a Marta com ele. Ninguém disse nada.
As horas passavam e os pais ficavam cada vez mais nervosos. Queriam saber o que estava acontecendo lá em cima. Resolveram subir. A mãe encostou a cabeça na porta e ouviu as vozes:
- Vai, amor. Só mais uma, vai.
- Tô ficando cansada, Arturzinho. Não agüento mais.
Dona Vânia não vacilou. Tomou distância e se jogou contra a porta, arrombando-a. Pegou o filho na cama com a namorada. O que seria absolutamente normal se eles não estivessem jogando damas.
- Por que, meu filho? Por quê? – disse a mãe em lágrimas.
- Não resisti, mamãe. Não resisti.
O vício voltou mais forte. O furacão hormonal da adolescência aumentou de algum modo o desejo obsessivo do Arturzinho pelo jogo.
- Por que você gosta tanto de damas? – quis saber um amigo no meio de uma partida com o Arturzinho.
- Porque é excitante.
- Como assim?
- O lesbianismo me excita.
- Ainda não entendi. – disse o amigo.
- Um jogo onde uma dama come a outra é na verdade um jogo de lésbicas. – respondeu o obsessivo sem tirar os olhos das peças.
O amigo não riu da piada de mau gosto. Estava sentindo pena do Arturzinho.
A Marta tentou de tudo para livrar o namorado do vício. Apelou até para o erotismo. Tinha perdido as contas de quantas partidas já havia jogado com o Artur. Não agüentando mais, resolveu usar sua sensualidade.
- Amorzinho... – começou ela levantando a saia e mostrando a calcinha.
- O que é? – falou sem tirar os olhos do tabuleiro.
- Dá uma olhadinha pra mim.
- Daqui a pouco. Daqui a pouco.
A Marta abriu a blusa e mostrou os seios.
- Mozinho... Dá só uma olhadinha, vai?
- Depois, Martinha. Depois. Preciso me concentrar. – continuou sem olhar.
Aí a Marta tirou toda a roupa e começou a dançar de forma insinuante para o Artur.
- Ei, gatinho. – disse ela rebolando – Olha como eu tô agora, gatinho. Olha, vai.
- Fica quieta, Marta! Tá atrapalhando.
A pobre Marta recolheu as roupas, encostou-se num canto e começou a chorar baixinho. Aquilo era um absurdo. Um machismo sem tamanho. Como é que ele pôde trocar a Marta pelas damas?! Minutos depois, ela ouviu um “Psiu!”. Virou a cabeça. Era o Arturzinho.
- Martinha... – começou ele.
- O que foi, Arturzinho? – disse ela enxugando as lágrimas.
- É a tua vez de jogar.
A Marta desatou num choro descontrolado.
O tempo passou, e o Artur ficou maduro. Mas o vício persistia. Os pais resolveram não mais tentar salvar o filho. Estavam cansados. Tinham tentado de tudo. Psicanálise, terapia de grupo, choque elétrico. “Não tem mais jeito, Vânia. Não tem mais jeito”. – lamentava-se o seu Matias. Artur se formou em Direito (não havia faculdade para jogo de damas), abriu um escritório e marcou o casamento com a Marta. Apesar de tudo, ela ainda o amava. No dia do casamento, antes da noiva subir ao altar, dona Vânia perguntou:
- Minha filha, você tem certeza do que está fazendo?
- Certeza mesmo a gente nunca tem. Mas eu o amo.
- Como vai conviver com as damas, minha filha?
- Dá-se um jeito, dona Vânia. Dá-se um jeito.
A Marta realmente amava o Arturzinho.
Quando a noiva entrou na igreja, viu que ela estava lotada. Havia parentes, amigos de infância e da faculdade, gente que conhecia o casal e também a obsessão do Arturzinho. No altar, Marta percebeu a ausência do noivo e do padre. Indignada, chamou o seu Matias num canto.
- Cadê o padre, seu Matias?! E o Arturzinho?!
- Não sei, minha filha. Não sei.
Quando um possível tumulto parecia iminente, ouviu-se um grito vindo do confessionário.
- Socorro!!
Dona Vânia correu na direção do grito. Parou diante da porta do confessionário, estava temerosa. Temia que seu maior pesadelo estivesse do outro lado. Ouviu novamente o grito, agora mais fraco.
- Socorro!
Abriu a porta e deu de cara com seu pesadelo. O Arturzinho estava estrangulando o padre. Espalhados pelo chão do confessionário, estavam o tabuleiro e as pecinhas do jogo de damas. “Vamos, canalha! Jogue comigo! Você prometeu!”. – gritava o Artur com as mãos no pescoço do sacerdote. Dona Vânia olhou com pesar para o filho, visualmente decepcionada. Virou-se e encarou a nora nos olhos. Não foi preciso dizer nada para que a Marta compreendesse o que a sogra havia visto. A Marta começou a chorar descontroladamente, mas se casou mesmo assim.
O casamento nem durou muito. O Arturzinho acabou morrendo. Quer dizer, acabou se matando.
A Marta sempre foi muito chegada em sexo. Gostava mesmo. Na adolescência até ganhou a fama de ninfomaníaca. Tudo bem. Antes sexo do que damas. Mas aí o Arturzinho acabou pegando pesado com a Marta. Apelação mesmo. Quando ela o procurava antes de dormir, ele era categórico:
- Só se você jogar uma partidinha comigo.
- Mas Arturzinho...
- É pegar ou largar.
No início ela até aceitou. Queria preservar o casamento, salvar a relação, ainda amava o Artur, essas coisas. Aí o tempo passou e ela se encheu dessa situação. Estava disposta a resolver definitivamente o problema do marido. Pediu a todos os amigos do Artur – os da infância, os do escritório, da faculdade, do barzinho – para que parassem de jogar com ele. Organizou um movimento chamado “Salvem o Artur”. Havia cartazes espalhados por todos os lugares. Até outdoor e tempo na TV a martinha conseguiu.
- Mas... E se ele nos ameaçar? – perguntaram os amigos.
- Chamem a polícia.
Rapidamente o resultado começou a aparecer. O Artur ficou três semanas sem jogar, estava acuado. Ainda tentou persuadir a Marta, mas foi em vão.
- Vai, Martinha. Eu juro que brinco de papai e mamãe se você jogar só uma comigo.
- Nem pensar, Arturzinho!
Não tinha mais jeito. O obsessivo estava encurralado. O plano tinha dado certo. Os amigos se afastaram, os parentes sumiram. Ninguém mais jogava com o Artur. Quer dizer, quase ninguém.
Um dia a Marta chegou do trabalho e pegou o Arturzinho na mesa da sala com o maldito jogo. Mexia uma peça, levantava-se da cadeira, ia até o outro extremo da mesa, mexia mais uma peça e voltava para onde estava sentado. Repetia esse movimento inúmeras vezes. Aí a Martinha sacou.
- Ficou maluco, Artur? Deu pra jogar sozinho agora, foi?
Não houve resposta. A Marta deu de ombros. “Dessa vez ele desiste.” – pensou. E saiu pra comprar pão.
Quando voltou da padaria, encontrou a sala em total desordem. Mesa e cadeiras tombadas, vasos quebrados e o tabuleiro e as pecinhas espalhados pelo chão. Num canto da sala, estava o Arturzinho. Estava deitado sobre uma poça de sangue. Numa mão segurava a faca que usara para cortar o pulso; na outra, um bilhete manchado de sangue.
Querida, me desculpe. Fiquei louco por não ter ninguém pra jogar. Você sabe, né? Eu adoro damas. Não posso viver sem jogar. Meus amigos me abandonaram, você não jogava mais comigo. Fiquei isolado. Desde que comecei a jogar, nunca perdi pra ninguém. O bom era ganhar de todo mundo. E eu ganhava! Mas hoje sofri minha primeira e última derrota. Sem oponentes, resolvi jogar contra meu maior adversário: eu mesmo. Perdi. E perdi feio! Isso me irritou profundamente – desculpe pelos vasos. Era um desaforo, uma humilhação. Tenho certeza de que pior que viver sem jogar seria ter de conviver com a presença desagradável da derrota. Não suportaria. Não tive escolha. Espero que me perdoe.
Com amor,
Arturzinho.
P.S.: Gostaria de ser enterrado com as damas. Não fique chateada, querida. Você entende, né? Te amo.
Artur
Todo mundo compareceu ao funeral do Arturzinho. Amigos, familiares, vizinhos etc. Dona Vânia e seu Matias estavam inconsoláveis. Desgraça maior não poderia ter acontecido. A viúva, de pé em frente ao caixão, com os olhos fundos e o rosto vermelho, escutava com desatenção as palavras do padre. Pensava na parte do bilhete que ela havia omitido da família do falecido. A Marta não contou para os pais do Artur que seu último desejo era ser enterrado com o maldito jogo. Rasgou essa parte. Talvez quisesse poupá-los. Nunca descobriu se o seu Matias e a dona Vânia a culparam pela morte do filho. Eles nunca disseram nada. Depois da última pá de terra e dos últimos “meus pêsames” o funeral se desfez. A Marta foi para casa, levando com ela um segredo. Antes de fechar o caixão, ela pôs o jogo dentro. Chorou descontroladamente, mas mesmo assim acabou enterrando as damas com o marido. É que a Marta amava realmente o Arturzinho.
- Vai ser bom pra desenvolver mais rápido o intelecto. – dizia o pai, seu Matias.
Mas aí o que era exercício de inteligência acabou se transformando em obsessão. Artur começou a deixar de lado outras atividades. Não via mais televisão, não lia os gibis que o pai lhe dava, deixou até de fazer as tarefas da escola. Só queria saber de jogar damas. Não parava nem para ir ao banheiro. Fazia ali mesmo. Dizia que era pra não perder a concentração. Quem não gostava nadinha disso era a mãe, dona Vânia. Ficava louca. “Arturzinho, meu filho, assim não dá!”. Os coleguinhas do bairro, que já haviam perdido para Artur inúmeras vezes, estavam de saco cheio.
Decidiram que não jogariam mais com ele. Parecia que o problema tinha chegado ao fim. Sem oponentes, Artur não podia jogar. Aí ele teve uma brilhante idéia.
- Dona Márcia, o Juca tá em casa? – perguntou o obsessivo jogador depois que a mãe do amigo abriu a porta.
- Claro que tá, Arturzinho. Vai lá no quarto dele.
O Juca sobressaltou-se quando viu o Artur entrar.
- O que é que você quer aqui?!
O Arturzinho tirou detrás das costas o tabuleiro e as pecinhas. Olhou para o amigo com malícia e disse:
- Você vai jogar comigo.
- De jeito nenhum! Nem pensar! – resistiu o Juca.
Artur puxou do bolso um lápis com uma ponta bem afiada.
- Ou você joga, ou eu te furo! – ameaçou o obsessivo.
- O que é isso, Arturzinho? Não é bem assim. Sou teu amigo, lembra? – fraquejou o Juca.
- Se é meu amigo, então joga!!
- Tá bom. Mas só uma.
- Certo.
Não havia dúvidas, a obsessão do Artur tinha passado dos limites. Os pais resolveram tomar uma providência. Destruíram o tabuleiro e as pecinhas e internaram o garoto.
Algum tempo depois, o Arturzinho parecia curado. Tinha se tornado um belo adolescente e estava até namorando a Marta. Voltou a estudar e a praticar outras atividades. Os pais se orgulhavam da cura do filho. Levava uma vida normal. Era o que parecia até chegar o dia do seu aniversário. Estava completando dezesseis anos. Dona Vânia fez um bolo, preparou uns salgadinhos e chamou todos os amigos do filho. Ele soprou as velinhas e começou a abrir os presentes. Parou no da Marta.
- Abre, amor. Você vai gostar. – incentivou ela.
Quando o aniversariante abriu o pacote, todos se entreolharam num silêncio angustiante e constrangedor. Era um jogo de damas. Ninguém pôde culpar a Marta. Ela não sabia. Após alguns minutos de apreensão, Artur se despediu de todos e subiu para o quarto. Levou a Marta com ele. Ninguém disse nada.
As horas passavam e os pais ficavam cada vez mais nervosos. Queriam saber o que estava acontecendo lá em cima. Resolveram subir. A mãe encostou a cabeça na porta e ouviu as vozes:
- Vai, amor. Só mais uma, vai.
- Tô ficando cansada, Arturzinho. Não agüento mais.
Dona Vânia não vacilou. Tomou distância e se jogou contra a porta, arrombando-a. Pegou o filho na cama com a namorada. O que seria absolutamente normal se eles não estivessem jogando damas.
- Por que, meu filho? Por quê? – disse a mãe em lágrimas.
- Não resisti, mamãe. Não resisti.
O vício voltou mais forte. O furacão hormonal da adolescência aumentou de algum modo o desejo obsessivo do Arturzinho pelo jogo.
- Por que você gosta tanto de damas? – quis saber um amigo no meio de uma partida com o Arturzinho.
- Porque é excitante.
- Como assim?
- O lesbianismo me excita.
- Ainda não entendi. – disse o amigo.
- Um jogo onde uma dama come a outra é na verdade um jogo de lésbicas. – respondeu o obsessivo sem tirar os olhos das peças.
O amigo não riu da piada de mau gosto. Estava sentindo pena do Arturzinho.
A Marta tentou de tudo para livrar o namorado do vício. Apelou até para o erotismo. Tinha perdido as contas de quantas partidas já havia jogado com o Artur. Não agüentando mais, resolveu usar sua sensualidade.
- Amorzinho... – começou ela levantando a saia e mostrando a calcinha.
- O que é? – falou sem tirar os olhos do tabuleiro.
- Dá uma olhadinha pra mim.
- Daqui a pouco. Daqui a pouco.
A Marta abriu a blusa e mostrou os seios.
- Mozinho... Dá só uma olhadinha, vai?
- Depois, Martinha. Depois. Preciso me concentrar. – continuou sem olhar.
Aí a Marta tirou toda a roupa e começou a dançar de forma insinuante para o Artur.
- Ei, gatinho. – disse ela rebolando – Olha como eu tô agora, gatinho. Olha, vai.
- Fica quieta, Marta! Tá atrapalhando.
A pobre Marta recolheu as roupas, encostou-se num canto e começou a chorar baixinho. Aquilo era um absurdo. Um machismo sem tamanho. Como é que ele pôde trocar a Marta pelas damas?! Minutos depois, ela ouviu um “Psiu!”. Virou a cabeça. Era o Arturzinho.
- Martinha... – começou ele.
- O que foi, Arturzinho? – disse ela enxugando as lágrimas.
- É a tua vez de jogar.
A Marta desatou num choro descontrolado.
O tempo passou, e o Artur ficou maduro. Mas o vício persistia. Os pais resolveram não mais tentar salvar o filho. Estavam cansados. Tinham tentado de tudo. Psicanálise, terapia de grupo, choque elétrico. “Não tem mais jeito, Vânia. Não tem mais jeito”. – lamentava-se o seu Matias. Artur se formou em Direito (não havia faculdade para jogo de damas), abriu um escritório e marcou o casamento com a Marta. Apesar de tudo, ela ainda o amava. No dia do casamento, antes da noiva subir ao altar, dona Vânia perguntou:
- Minha filha, você tem certeza do que está fazendo?
- Certeza mesmo a gente nunca tem. Mas eu o amo.
- Como vai conviver com as damas, minha filha?
- Dá-se um jeito, dona Vânia. Dá-se um jeito.
A Marta realmente amava o Arturzinho.
Quando a noiva entrou na igreja, viu que ela estava lotada. Havia parentes, amigos de infância e da faculdade, gente que conhecia o casal e também a obsessão do Arturzinho. No altar, Marta percebeu a ausência do noivo e do padre. Indignada, chamou o seu Matias num canto.
- Cadê o padre, seu Matias?! E o Arturzinho?!
- Não sei, minha filha. Não sei.
Quando um possível tumulto parecia iminente, ouviu-se um grito vindo do confessionário.
- Socorro!!
Dona Vânia correu na direção do grito. Parou diante da porta do confessionário, estava temerosa. Temia que seu maior pesadelo estivesse do outro lado. Ouviu novamente o grito, agora mais fraco.
- Socorro!
Abriu a porta e deu de cara com seu pesadelo. O Arturzinho estava estrangulando o padre. Espalhados pelo chão do confessionário, estavam o tabuleiro e as pecinhas do jogo de damas. “Vamos, canalha! Jogue comigo! Você prometeu!”. – gritava o Artur com as mãos no pescoço do sacerdote. Dona Vânia olhou com pesar para o filho, visualmente decepcionada. Virou-se e encarou a nora nos olhos. Não foi preciso dizer nada para que a Marta compreendesse o que a sogra havia visto. A Marta começou a chorar descontroladamente, mas se casou mesmo assim.
O casamento nem durou muito. O Arturzinho acabou morrendo. Quer dizer, acabou se matando.
A Marta sempre foi muito chegada em sexo. Gostava mesmo. Na adolescência até ganhou a fama de ninfomaníaca. Tudo bem. Antes sexo do que damas. Mas aí o Arturzinho acabou pegando pesado com a Marta. Apelação mesmo. Quando ela o procurava antes de dormir, ele era categórico:
- Só se você jogar uma partidinha comigo.
- Mas Arturzinho...
- É pegar ou largar.
No início ela até aceitou. Queria preservar o casamento, salvar a relação, ainda amava o Artur, essas coisas. Aí o tempo passou e ela se encheu dessa situação. Estava disposta a resolver definitivamente o problema do marido. Pediu a todos os amigos do Artur – os da infância, os do escritório, da faculdade, do barzinho – para que parassem de jogar com ele. Organizou um movimento chamado “Salvem o Artur”. Havia cartazes espalhados por todos os lugares. Até outdoor e tempo na TV a martinha conseguiu.
- Mas... E se ele nos ameaçar? – perguntaram os amigos.
- Chamem a polícia.
Rapidamente o resultado começou a aparecer. O Artur ficou três semanas sem jogar, estava acuado. Ainda tentou persuadir a Marta, mas foi em vão.
- Vai, Martinha. Eu juro que brinco de papai e mamãe se você jogar só uma comigo.
- Nem pensar, Arturzinho!
Não tinha mais jeito. O obsessivo estava encurralado. O plano tinha dado certo. Os amigos se afastaram, os parentes sumiram. Ninguém mais jogava com o Artur. Quer dizer, quase ninguém.
Um dia a Marta chegou do trabalho e pegou o Arturzinho na mesa da sala com o maldito jogo. Mexia uma peça, levantava-se da cadeira, ia até o outro extremo da mesa, mexia mais uma peça e voltava para onde estava sentado. Repetia esse movimento inúmeras vezes. Aí a Martinha sacou.
- Ficou maluco, Artur? Deu pra jogar sozinho agora, foi?
Não houve resposta. A Marta deu de ombros. “Dessa vez ele desiste.” – pensou. E saiu pra comprar pão.
Quando voltou da padaria, encontrou a sala em total desordem. Mesa e cadeiras tombadas, vasos quebrados e o tabuleiro e as pecinhas espalhados pelo chão. Num canto da sala, estava o Arturzinho. Estava deitado sobre uma poça de sangue. Numa mão segurava a faca que usara para cortar o pulso; na outra, um bilhete manchado de sangue.
Querida, me desculpe. Fiquei louco por não ter ninguém pra jogar. Você sabe, né? Eu adoro damas. Não posso viver sem jogar. Meus amigos me abandonaram, você não jogava mais comigo. Fiquei isolado. Desde que comecei a jogar, nunca perdi pra ninguém. O bom era ganhar de todo mundo. E eu ganhava! Mas hoje sofri minha primeira e última derrota. Sem oponentes, resolvi jogar contra meu maior adversário: eu mesmo. Perdi. E perdi feio! Isso me irritou profundamente – desculpe pelos vasos. Era um desaforo, uma humilhação. Tenho certeza de que pior que viver sem jogar seria ter de conviver com a presença desagradável da derrota. Não suportaria. Não tive escolha. Espero que me perdoe.
Com amor,
Arturzinho.
P.S.: Gostaria de ser enterrado com as damas. Não fique chateada, querida. Você entende, né? Te amo.
Artur
Todo mundo compareceu ao funeral do Arturzinho. Amigos, familiares, vizinhos etc. Dona Vânia e seu Matias estavam inconsoláveis. Desgraça maior não poderia ter acontecido. A viúva, de pé em frente ao caixão, com os olhos fundos e o rosto vermelho, escutava com desatenção as palavras do padre. Pensava na parte do bilhete que ela havia omitido da família do falecido. A Marta não contou para os pais do Artur que seu último desejo era ser enterrado com o maldito jogo. Rasgou essa parte. Talvez quisesse poupá-los. Nunca descobriu se o seu Matias e a dona Vânia a culparam pela morte do filho. Eles nunca disseram nada. Depois da última pá de terra e dos últimos “meus pêsames” o funeral se desfez. A Marta foi para casa, levando com ela um segredo. Antes de fechar o caixão, ela pôs o jogo dentro. Chorou descontroladamente, mas mesmo assim acabou enterrando as damas com o marido. É que a Marta amava realmente o Arturzinho.
7 comentários:
João, eu sou teu amigo e não vou te bajular. Gosto de suas crônicas e vejo conteúdo aqui até pra se lançar uma publicação com elas. Mas dessa eu não gostei.
É uma história que se divide entre um transtorno obsessivo compulsivo de um rapaz que o cultivou desde a infância e que termina com a incondicionalidade do amor que uma moça conseguiu sentir por ele, mesmo que a sua tentativa de ajudá-lo tenha feito com que ele cometesse suicídio. Não me senti atraído por nenhuma das partes da história.
E seus desfechos sempre são bons, você coloca as amarras nos textos e as desata sempre de modo primoroso no final. Neste, eu não senti isso.
Mas essa crônica tem seus bons momentos, tem seus lampejos (como o R10). A piada sobre "uma dama comendo outra ser lesbianismo" me fez rir alto aqui na frente do PC.
Já a piada sobre a morte dele, num paradoxo "eu perdi feio de mim mesmo" (paradoxal pois se ele perdeu feio de si mesmo, ele também venceu bonito a si mesmo; mas preferiu lastimar a derrota que homerizar a vitória), pareceu meio forçada, batida. Algo como o Professor Girafales dizendo: "só me enganei uma vez, ao pensar estar errado".
De todo caso, o Artur - com certeza - não tinha Windows 7. Nele podemos jogar damas o tempo todo. Se não tiver adversário humano online, pode jogar contra um adversário eletrônico que o Windows improvisa.
E tem um jogo de damas no messenger também. Quando nos vermos e você me pedir aqueles favores, eu vou dizer: - Só se você jogar uma partidinha de damas comigo.
E se você viver com um: - Mas Mário...
Vou bater o pé: - É pegar ou largar.
Quero ver se você vai ter a mesma paciência da Marta para preservar o casamento. :p
Abraços! \o/
Seu fuso horário tá errado. Nunca que eu comentei aqui às 14h23min... :p
Quatro horas de diferença pra menos...
João, vou ser sincero assim como o Mário foi. Como seu leitor que sou, achei que a crônica ficou muito arrastada. Esperava, como acontece sempre, um desfecho que amarrasse bem a estória com toda a sua genialidade.
Não senti isso. Faltou aquele algo a mais que te diferencia dos lugares comuns que se lê por aí.
Olá, desculpe invadir seu espaço assim sem avisar. Meu nome é Nayara e cheguei até vc através do Blog somesentido. Bom, tanta ousadia minha é para convidar vc pra seguir um blog do meu amigo Fabrício, que eu acho super interessante, a Narroterapia. Sabe como é, né? Quem escreve precisa de outro alguém do outro lado. Além disso, sinceramente gostei do seu comentário e do comentário de outras pessoas. A Narroterapia está se aprimorando, e com os comentários sinceros podemos nos nortear melhor. Divulgar não é tb nenhuma heresia, haja vista que no meio literário isso faz diferença na distribuição de um livro. Muitos autores divulgam seu trabalho até na televisão. Escrever é possível, divulgar é preciso! (rs) Dei uma linda no seu texto, vou continuar passando por aqui...rs
Narroterapia:
Uma terapia pra quem gosta de escrever. Assim é a narroterapia. São narrativas de fatos e sentimentos. Palavras sem nome, tímidas, nunca saíram de dentro, sempre morreram na garganta. Palavras com almas de puta que pelo menos enrubescem como as prostitutas de Doistoéviski, certamente um alívio para o pensamento, o mais arisco dos animais.
Espero que vc aceite meu convite e siga meu blog, será um prazer ver seu rosto ali.
http://narroterapia.blogspot.com/
Vivas para o spam! \o/
Boa noite!
Vi seu blog através de um outro e como gosto muito desse tipo de narrativa resolvi segui-lo.
Ao contrário de seus colegas, gostei muito da crônica...bem Nelson Rodrigues. Parabéns!!!
Espero que escreva logo outras.
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