“Você desmaia quando vê sangue?
Tem gente que morre porque não vê.” Jurandir tinha visto este anúncio publicitário
não sabia onde. Numa revista, talvez. Mas já fazia um tempo. Era uma dessas
campanhas de incentivo à doação. Achou criativa. Ele nunca tinha doado sangue
na vida. Pelo menos até a semana passada. Não que fosse um sujeito egoísta, mas
é que sempre foi um daqueles que desmaia quando vê sangue. Principalmente se
for o próprio sangue.
O fato é que o sogro do Jurandir arrebentou-se numa queda. Ia fazer uma cirurgia e precisava de uma transfusão.
O fato é que o sogro do Jurandir arrebentou-se numa queda. Ia fazer uma cirurgia e precisava de uma transfusão.
- Você vai, sim! Ora essa!
- Não, mozinho. Por favor. Olha,
você sabe que tenho medo de agulha. Que não posso ver sangue. Ai, meu Deus!
- O que foi?
- Já estou com vertigens. Tá
vendo só?! Pense direito, minha filha.
- Deixa de frescura, Jurandir!
Você vai e ponto final!
Intimado pela mulher, o Jurandir
foi. Mas levou também o irmão. Chegaram ao laboratório especulando sobre o
procedimento.
- E a agulha? Como deve ser a
agulha? – perguntou o Jurandir ao irmão.
- Sei lá. Deve ser maior.
- Maior?! Cacete! Vou embora! Tu
fica aí e diz eu que passei mal.
- Nada disso! Não vou doar
sozinho, não!
- Ai, meu Deus do céu!
Entraram no laboratório. Após
terem feito o cadastro de doadores, ficaram esperando na recepção. Depois de
alguns minutos, apareceu uma moça de branco na porta:
- Senhor Jurandir da Silva?
O frouxo fingiu não ouvir.
- Senhor Jurandir da Silva? –
repetiu a moça.
- É tu, porra. Vai ser o
primeiro. – falou o irmão, cochichando e rindo.
- O senhor é Jurandir da Silva? –
disse a moça.
- Sou. Quer dizer, não agora.
- Me acompanhe, por favor.
Quando Jurandir já estava na
porta praguejando, a enfermeira voltou-se e disse:
- Ah, o senhor Adalberto da
Silva?
- Sou eu. – disse o irmão do
Jurandir.
- Venha também.
O Jurandir, triunfante, olhou
para ele e murmurou:
- Otário.
Foram encaminhados para uma sala
menor. Havia uma balança, uma pia e um balcão com alguns equipamentos. A
enfermeira disse:
- Vamos primeiro fazer um furinho
no seu dedo pra ver se está tudo ok com seu sangue.
- Eu vou morrer? – perguntou o
Jurandir, querendo descontrair o ambiente.
- Vai. Mas não por isso. –
respondeu a enfermeira, sem sorrir.
Beleza. Um a zero pra você,
infeliz. – pensou o Jurandir. Após os exames preliminares, os dois se dirigiram
para uma cantina. Lá, perguntaram se eles queriam tomar um suco. Tomaram.
Depois, outra enfermeira chamou o Jurandir para uma salinha com os seguintes
dizeres: triagem clínica. Ele sentiu que a hora se aproximava. Entrou na sala e
sentou numa cadeira. Do outro lado de uma mesa, mexendo num computador, estava
a enfermeira.
- O senhor é professor, certo?
- Isso.
- Já teve alguma doença
infectocontagiosa?
- Olha, não que eu me lembre.
- Está tomando algum medicamento?
- Não.
- O senhor já tomou as vacinas
contra o tétano e a hepatite?
- Acho que sim. Mas faz tempo.
- Bebeu ontem?
O Jurandir começou a estranhar as
perguntas. Mesmo assim respondeu:
- Não, não bebi.
- O senhor usa drogas?
Hesitou um momento. Pensou em
confessar que tomava uns refrescos vagabundos desde os dez anos. Mas desistiu.
- Não. Nunca usei.
- É casado?
- Sou.
- Tem relacionamentos fora do
casamento?
Aí o Jurandir ficou nervoso.
- Como assim?! Aonde a senhora
quer chegar com essas perguntas?! Tá insinuando o quê?! Isso aqui é algum tipo
de pegadinha? Algum teste de fidelidade? Cadê a câmera? Cadê a câmera?
- Calma, senhor. Calma. Essas
perguntas fazem parte do procedimento. É pra saber se o sangue não está
contaminado.
- É?
- É.
- Ah, tá. Desculpe. Sendo assim,
tudo bem. É claro que não tenho nada fora do casamento. Ora essa.
Levaram o Jurandir para a sala de
doação. Seu irmão já estava deitado numa espécie de cama. Ele deitou numa outra
e aguardou. Foi quando entrou aquela primeira enfermeira.
- Vamos começar? – disse ela.
- Não, senhora! Me deixa ver o
tamanho dessa agulha!
- Não. É melhor que o senhor não
veja. Não agora.
- Ai, meu Deus!
- Calma. Não vai doer nada.
- É?! Então vem pra cá e deixa eu
tirar o teu sangue.
Ela olhou para o Jurandir, séria
novamente, sem sorrir. Amarrou seu braço com um elástico e se preparou para
introduzir a agulha. Foi quando ele viu o tamanho da coisa.
- Epa! Afasta esse negócio de
mim! Olha só a espessura dessa coisa, minha filha! Deve ter uns cinco
centímetros de diâmetro!
Não adiantou protestar. O
Jurandir acabou cedendo. Mas não deixou de gritar quando sentiu a picada da
agulha.
- Ui, ui, ui. Ai, ai, ai.
- O que foi, rapaz? É só uma
picadinha de formiga.
- Só se for uma formiga do
tamanho de um javali! – berrou.
O irmão do Jurandir assistia a
tudo isso rindo. Canalha. A enfermeira deu aos dois uma bolinha de borracha
para ficar apertando. Era para ajudar a bombear melhor.
- Escuta, minha filha. – falou o
Jurandir – Vai demorar muito?
- Só um pouquinho. Até encher
aquela sacolinha.
- O quê?! Aquele saco todo?! Mas
assim vai embora meu sangue! Ai, meu Deus do céu!
Os minutos passavam, o sangue ia
embora e o Jurandir pensando no sogro. “Velho filho da mãe! Tinha nada que
cair! Ao invés de se lascar sozinho, lasca os outros também! Ai, meu Deus! Meu
sanguinho.”
Enquanto se doa sangue, ficam perguntando
a todo instante se está tudo bem. Se as pessoas não estão sentindo nada
estranho. Essas coisas. Perto do final da doação, o Jurandir resolveu fazer uma
brincadeirinha com a enfermeira.
- Enfermeira, me ajude! – ele
falou.
- O que foi?
- Não sei. Tô ficando tonto!
Minha vista tá escurecendo! Socorro! Ai, minha nossa Senhora! Me acuda, moça,
que eu tô morrendo!
Fechou os olhos.
- Moço! Moço! Fale comigo! O que
é que tá havendo?
- Brincadeirinha!
Ela fechou a cara de novo. Dessa
vez, numa expressão de fúria.
- Idiota. – disse.
Agora o Jurandir tinha ido longe
demais. Terminada a doação, ele perguntou se podia tomar mais um suco.
- Vão servir um lanche para vocês
lá fora. – disse a enfermeira sem olhar para ele.
Serviram um sanduíche de queijo
com suco de cajá.
- Ei, será que podemos doar
sangue os três horários? Manhã, tarde e noite. Assim a gente já garante as três
refeições. – perguntou o Jurandir para a moça da cantina.
Ela ficou séria. Não deve ter
achado graça da piada. Não sei se você já doou sangue. Mas, para o Jurandir, a
pior coisa não foi a agulha. Foi o mau humor do pessoal.
- Ô povinho ranzinza!
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