Por João Paulo da Silva
Ele passava por ali todos os dias. Desde
que ela fora embora, aquilo se tornara uma constante em sua vida. Era parte de
seus dias e noites. Uma necessidade inabalável, como comprar o pão todas as
manhãs ou tomar um banho todas as noites, mais para limpar a alma do que o
corpo. Ficava ali, em frente ao antigo prédio dela, com os olhos presos à
janela do apartamento. Esperava um sinal qualquer, um aceno, uma lâmpada acesa.
Qualquer coisa que lhe permitisse compreender que podia subir, tocar a
campainha, entrar no apartamento e beijar-lhe a boca pela primeira vez. Mas
não. Não haveria luz acesa, nem aceno, nem qualquer tipo de sinal. Há meses ela
não vivia mais ali.
Para ele, ficaram apenas as lembranças e
as possibilidades, imagens soltas e turvas do que viveram juntos e também
daquilo que não tiveram tempo ou coragem para viver. Agora, como um velho de
oitenta anos parado sobre o ponteiro das horas, ele pensa no hiato em que se
transformou sua vida. O vácuo. O vazio. A garganta do monstro que insiste em
não devorá-lo. Olhando a fachada do prédio, ele pode jurar que sente o cheiro
dela. Um cheiro doce, trazido pelo vento, como naqueles dias em que ela subia
as escadas deixando pra trás o perfume. A fragrância adocicada fez suas
recordações ganharem mais cor, se transformando em quadros recém-pintados. Em
tinta fresca.
Diante da escuridão da janela, as
imagens daquela tarde foram surgindo aos pingos. Ali, no quarto dela, sentados
frente a frente. As caixinhas de som do computador tocando Doce Vampiro, da
Rita Lee. Comendo jujubas, ela o encarava como se quisesse despi-lo. “Venha me
beijar, meu doce vampiro” – cantarolava, bastante convidativa. Colocou uma
jujuba entre os lábios e ofereceu a ele. As bocas se tocaram por um breve
momento, tempo suficiente para ele perceber o quanto era bom ser mortal. O
olhar terno que ela lhe lançou depois revelou que não eram duas esferas verdes
que existiam naquelas órbitas. Eram dois enormes labirintos. E nunca foi tão
bom se perder neles.
As luzes de Natal e as crianças
brincando formavam o único quadro de coisas vivas na frente do prédio. Quando a
chuva começou a cair com força, todas as criaturas correram para seus abrigos.
Ele procurou uma árvore grande para se amparar, sempre protegendo o envelope
que tinha nas mãos. O frio da noite lhe fez sentir um estremecimento. Lembrou
do dia, muitos meses atrás, em que voltavam pra casa. Sentada ao seu lado no
ônibus, ela repentinamente aproximou a boca do seu rosto e lambeu-lhe atrás da
orelha. Ele estremeceu, como que atingido por uma golfada de vento. Riram.
Daquele dia em diante, sempre que estavam no ônibus, ele pedia para que ela lhe
lambesse a orelha.
Mas, agora, com o olhar fixado no aviso
de “aluga-se”, as lembranças parecem mais saraivadas de balas contra o peito.
Tantos foram os dias em que ele deitou a cabeça em seu regaço, querendo apenas
os afagos daquelas mãos. Foram confissões, segredos, pecados, angústias e
solidões trocadas. Uma cumplicidade que só os amantes possuem. Nunca foram ao
cinema juntos. Mas viram alguns filmes comendo pipoca e bebendo vodca com Fanta.
Faziam juras de amor.
Um dia ela falou que ia embora. Não dava
mais pra ficar. Andava sofrendo muito e achou que assim seria melhor. Até já
tinha se afastado dele nos últimos tempos, estava diferente. Não queria criar
problemas, era o que ela dizia. Não podiam andar juntos, nem mesmo podiam ser
vistos juntos. Acabou indo embora. Na despedida, apenas se olharam. Talvez
nunca mais voltasse.
A chuva começou a diminuir. Foi ficando
rarefeita, assim como as lembranças que se diluíam ao tocar o asfalto do
passado. Com os olhos ainda pregados no apartamento escuro, ele se deixou tomar
por fantasmas daquilo que não aconteceu. Um flashback do “se”. Saudades do que
poderia ter sido, mas não foi. Muitas foram as vezes em que ficaram só se
olhando. Dias e noites que poderiam ter sido resolvidos com um único gesto.
Frases que murcharam antes mesmo de saírem da boca.
A saudade é um privilégio dos povos de
Língua Portuguesa. Os americanos, por exemplo, não sentem saudade. Sentem falta
de alguma coisa. Antes de atravessar a rua, era nisso que ele estava pensando.
Na saudade da vida que nunca teve. Dos beijos que nunca deu. Das noites que não
dormiu. Das cartas que não escreveu. Do amor que nunca fez. Era um homem pela
metade, incompleto. Um náufrago em terra firme.
Com o envelope nas mãos, subiu devagar
as escadas que há muito tempo não subia. Aproveitou o percurso até o apartamento
para cantarolar Doce Vampiro. Lembrava com nitidez o número. Parou diante da
porta. Olhou pela última vez o que tinha escrito dentro do envelope. Duas
palavras apenas. Foi o mais sincero possível. Não assinou o bilhete. Não era
preciso. Ela entenderia quando voltasse. Passou o papel por baixo da porta e
desceu as escadas.
Ao sair do prédio, ele podia jurar que
havia sentido um cheiro doce vagando na noite.
Obs.: Em tempos de correria e falta de tempo, republico um dos meus favoritos.
Obs.: Em tempos de correria e falta de tempo, republico um dos meus favoritos.
4 comentários:
Esse daí é lindo demais.
Cabe na vida de todo mundo (dos que tiveram saudade e dos que sentem saudade de ter saudade).
É, acompanho seu blog faz tempo. Esse eu tinha lido e é realmente um texto muito marcante. Ler de novo, imaginar as descrições e notar que elas estão ali no cérebro, que não foram embora, estavam apenas bem guardadas nessa caixa fascinante que é a nossa mente.
Adorei!!! Adorei!!! E adorei teu jeito de escrever!!!!
Encantada!!!!
Abraços!!!
Passei a acompanhar recentemente o blog...e poxa, esse texto é belo.
Saudades...lembranças que possuem vida própria.
Parabéns.
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