Por João Paulo da Silva
Quando era criança, lá pelos doze
anos, eu costumava jogar bola com meu irmão no terraço da nossa casa. Ficávamos
horas brincando de chute ao gol. Como não tínhamos autorização para jogar na
rua, aquela acabava sendo a nossa diversão. Mas a gente até que gostava. Só não
gostávamos mesmo era do Yurinho, o vizinho da frente. Ô moleque chato.
Ele sempre aparecia no portão lá
de casa, pedindo pra jogar com a gente. Ficava um tempão implorando e enchendo
o saco. Foram poucas as vezes em que permitimos. Eu e meu irmão tínhamos um
motivo para não deixá-lo jogar. Qualquer coisinha o Yurinho chorava. Se levava
um frango, chorava. Se perdia um pênalti, chorava. Se tomava uma bolada mais
forte, chorava. E o pior: saía correndo e gritando que a gente tinha batido
nele. Quer dizer, além de frouxo, o Yurinho também era mau-caráter.
Depois que passamos a impedi-lo de jogar com a gente, o safado começou a apelar para a deslealdade. Chegava no portão, todo malicioso, e falava:
Depois que passamos a impedi-lo de jogar com a gente, o safado começou a apelar para a deslealdade. Chegava no portão, todo malicioso, e falava:
- Oi. Posso jogar com vocês?
- Sai fora, Yurinho. Você só sabe
chorar e mentir. – dizia eu.
- Mas eu quero!
- E você tem o que querer aqui,
seu cagão?!
- É isso mesmo. Sai fora,
Yurinho. – meu irmão completava.
Ele corria chorando para casa e
contava para a avó que a gente não queria deixá-lo jogar e que, ainda por cima,
tínhamos batido nele. Não demorava muito e a velha aparecia para reclamar.
Ficava um tempão nos esculhambando, dizendo que não tínhamos coração, que
éramos seres abomináveis etc. Com medo, eu e meu irmão corríamos para nos
esconder. Só voltávamos depois que a vó do Yurinho saía. O mau-caráter fez isso
várias vezes. Até que um dia resolvemos nos vingar.
Aí mudamos de tática. Se o
Yurinho queria jogar sujo, então nós iríamos entrar no jogo dele. E, naquela
época, sujo era literalmente sujo mesmo.
Um dia, como de costume, ele
apareceu no portão.
- Posso jogar com vocês?
- Claro que pode, Yurinho. –
falei.
- Sério?! Jura?! – surpreendeu-se
o chato.
- É sério, sim. – disse meu
irmão.
Aí o Yurinho se animou e já ia
abrindo o portão quando eu o interrompi:
- Epa! Peraí. Aonde você pensa
que vai com essa pressa toda?
- Jogar com vocês, ué.
- Calminha aí, Yurinho. Calminha
aí. Você pode jogar, mas com uma condição.
- Que condição?
Era chegada a hora da vingança.
- Se quiser brincar, você vai ter
que chupar uma pedra aí da rua.
- Hã?? Mas isso é muito sujo.
- Pois é. – disse eu.
- É pegar ou largar. – sentenciou
meu irmão.
A rua da minha casa era cheia de
pedras, de todos os tipos. Grandes, médias, pequenas. E sujas também. Da lama
ao cocô do cachorro. Uma imundice só. Mas era isso. Se o Yurinho quisesse jogar
bola com a gente, teria que aceitar o desafio. Essa era a condição.
- Tá bom. Eu aceito.
E assim começou a nossa vingança.
Todas as vezes que ele aparecia no portão querendo brincar nós pedíamos para
ele chupar uma pedrinha. Escolhíamos sempre as mais sujas, que era pra ver o
sofrimento do infeliz. Ainda assim, depois da penitência do Yurinho, nós só
brincávamos por alguns minutos, para não dar muito gosto ao chato. Afinal, o
bom mesmo era assistir ao sacrifício do Yurinho ao chupar as mais nojentas
pedras da rua.
- Tá bom, Yurinho. A gente não
quer mais jogar.
- Mas já?! Não foram nem cinco
minutos?!
- É, eu sei. Mas já estamos
cansados. Amanhã brincamos mais. Tchau.
Mantivemos o plano durante muito
tempo. Tanto que cheguei a pensar que o Yurinho já havia lambido uma quantidade
de pedras suficiente para fazer uma calçada inteira. Mas meu irmão e eu não
tínhamos a menor pena do mau-caráter. Ele estava tendo o que merecia. Foi
quando um “pequeno” detalhe começou a mudar os rumos da história.
À medida que os dias e as pedras
chupadas passavam, uma notável alteração foi se dando no rosto do Yurinho. Ele
estava ficando amarelo. Mas muito amarelo mesmo. E tínhamos a impressão de que,
após uma nova pedra, o Yurinho ia ficando cada vez mais amarelo. Lembro,
inclusive, que em sua última aparição em tons de amarelo ele parecia molho de
mostarda. Isso mesmo. Última aparição. Porque teve um dia que o Yurinho não
apareceu mais no portão. Passou-se uma semana. Duas. Três. E nada.
Até que um dia vimos a vó do
Yurinho, vestida de preto, saindo de casa. Com o rosto vermelho de choro, ela
parou para conversar na porta da Dona Neide. Da conversa, meu irmão e eu só
conseguimos ouvir duas frases.
- Ele se foi, Dona Neide. Meu
Deus, o Yurinho me faz tanta falta. – disse a vó do moleque, desatando no
choro.
Pronto. Foi o suficiente.
- Puta que o pariu, João! A gente
matou o Yurinho! – desesperou-se meu irmão.
- A gente quem? Eu vou negar até
o fim. Quero falar com o meu advogado! Cadê o meu advogado?!
Ficamos naquela paranóia por uma
semana. Não podíamos revelar nosso crime para ninguém, havia o risco de sermos
punidos severamente, mas também não podíamos suportar a dor na consciência.
Tínhamos matado uma pessoa. Tudo bem que era o Yurinho, mas ainda assim era uma
pessoa. Pelo menos em tese. O que fazer, então? Contar toda a verdade e rezar
para sermos condenados, no máximo, por homicídio culposo? Ou não contar nada e
continuar insistindo no nosso próprio convencimento de que, afinal de contas,
era só o Yurinho mesmo?
- Bolívia! – disse eu.
- O quê?
- Vamos fugir para a Bolívia! –
repeti.
- Tá doido?! E dizer o que para a
mamãe? “Oi mãe. Estamos indo para a Bolívia porque matamos o Yurinho.”.
- Tem razão. Tô doido.
De fato, não sabíamos o que
fazer. Estávamos numa encruzilhada. Após um mês do sumiço do Yurinho, jogávamos
bola no terraço de casa. Ainda muito preocupados, brincávamos sem entusiasmo
nenhum. Foi quando ouvimos uma voz no portão:
- Oi. Posso jogar com vocês?
Meu Deus do Céu! Era o Yurinho.
- Yurinho! É você mesmo?! Não
pode ser! – eu gritei.
- Como não pode ser, João?! Cala
essa boca! Graças a Deus que é ele! Yurinho! – gritou também o meu irmão.
O Yurinho nunca entendeu por que
nós o abraçamos e o beijamos tanto naquele dia. E a gente mesmo nem quis falar.
Ninguém precisava saber.
- Poxa. Não sabia que vocês
gostavam tanto assim de mim.
- Ah, você realmente não sabe o
quanto. – falei.
Depois da recepção emocionada, o
Yurinho explicou o próprio sumiço.
- Fiquei doente. Vermes, sabe?
Sério mesmo.
- Verdade? Que coisa estranha,
hein?! – argumentei.
- Pois é. Comecei a ficar
amarelo.
- Jura? A gente nem notou. –
disse meu irmão.
O Yurinho falou que sua mãe achou
melhor ele passar o resto das férias com ela lá no sítio. Seria bom para se
recuperar e coisa e tal. Depois que estivesse bem, poderia voltar a morar com a
avó. Ela ficaria triste e sozinha, mas seria só por um mês. Logo tudo voltaria
ao normal. E o Yurinho se mandou pra casa da mãe.
- Sabe, fiquei tão doente que
quase morri.
- Mas não morreu! Vira essa boca
pra lá, Yurinho! O importante é que você não morreu! – falei com toda
convicção.
- Isso mesmo. Que bom que o
Yurinho não morreu. E a gente nem precisa mais falar disso. É hora de jogar
bola. Vamos jogar bola. – propôs meu irmão.
Aí o Yurinho já estava indo pegar
uma pedra quando eu gritei:
- Ei! O que pensa que vai fazer?!
- Ué, chupar uma pedra pra poder
jogar.
- Yurinho, larga já essa pedra!
Pelo amor de Deus! Larga isso já!
Hoje, alguns anos depois, faço
outra interpretação de nossa atitude. Na verdade, não estávamos castigando nem
nos vingando do Yurinho. Estávamos, inconscientemente, ensinando uma lição
aquele pequeno mau-caráter, que gostava de caluniar os outros. Queríamos mesmo
era mostrar ao Yurinho o quanto a vida era dura e suja, assim como as pedras lá
da rua. Sabe, era uma metáfora. Uma metáfora sobre as muitas pedras que ele
ainda encontraria pelo caminho.
Era, na verdade, aquela história
da pedra do Drummond, entende? Aquela do meio do caminho. Era isso que a gente
queria ensinar pro Yurinho. Mostrar pra ele que só um homem de bom coração
passaria pelas adversidades da vida. Não havia espaço para o mau-caráter, saca?
Bom, era isso. Estou convicto de que a História nos absolverá. E agora espero
que o Yurinho também. Era pro bem dele.
Um comentário:
João,
"ainda bem que não te conheci na infância"
foi a primeira coisa que pensei, ao vir comentar esse ótimo texto.
se tivéssemos nos conhecido antes, possivelmente o título da postagem seria 'Pobre Mizinha'. haha!
beijo!
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