Por João Paulo
da Silva
Numa loja, a
gerente da grife e a cliente rica conversam.
- Ai, querida...
não sei você, mas eu ando tão assustada com essa onda de... como é mesmo que
eles chamam? ‘Rolezinhos’, não é? Isso tem tirado o meu sossego, acredita?! A
gente nem pode mais fazer compras em paz. Ai, que absurdo.
- É verdade,
querida. Virou uma bagunça. Eles entram, passeiam pelo shopping inteiro, ficam
na praça de alimentação, cantam funk. Um horror. Se ao menos eles comprassem
alguma coisa, não é? Mas não. Só fazem atrapalhar as vendas.
- Com certeza. Olha,
eu sou bem sincera. Não me sinto segura com essas pessoas ao redor. Não é que
eu seja racista, longe de mim. Até tenho um primo distante que é preto. Mas
aqui é um lugar para gente, digamos, mais civilizada, concorda?
- Completamente.
Nós temos que proporcionar todo o conforto e segurança aos nossos clientes. Imagine
o absurdo que é uma pessoa importante como senhora vir ao shopping e se deparar
com esse tipo de gente batendo perna por aqui. Inaceitável.
- Exato. É como
dizem por aí: cada macaco no seu galho. Ou melhor, cada macaco na sua
periferia. Para falar a verdade, querida, eu não sei nem o que faria se me
deparasse com um ‘rolezinho’ no shopping. Acho que morreria do coração. Olha,
fico toda arrepiada só de pensar.
- Eu posso
imaginar, querida. Mas já estamos tomando providências. Ao menor sinal desse
pessoal, nós fechamos a loja e chamamos a polícia. Nunca roubaram nada, nem
entraram aqui. Mas a gente tem que se prevenir. Não é preconceito. É só para
garantir que as vendas não serão atrapalhadas por essa gente que acha que pode
vir ao shopping. Concorda comigo?
- Completamente.
Ai, que absurdo.
***
Numa mesa da
praça de alimentação, um grupo de jovens negros conversa, brinca, dá risadas e
toma milkshake. A presença deles incomoda. A segurança é chamada, logo a
polícia aparece.
- Posso saber o
que tá acontecendo aqui?! – indaga o capitão da PM aos jovens.
- Oi, policial.
A gente só tá aqui, de boa, curtindo. Esperando a galera. – explica um dos
rapazes.
- “De boa”? “Curtindo”?
“Esperando a galera”?
- É. Só isso. Tem
algum problema?
- Tem sim. A
presença de vocês. Incomoda os clientes. Vou ter que pedir pra vocês se
retirarem.
- Como assim?! A
gente tem os mesmos direitos dos outros, policial. – estranha um garoto.
- Olha, vocês tão
pedindo para serem tratados como bandidos. – ameaça o capitão.
- Mas nós não fizemos
nada. Por que temos que sair daqui?
- Chega de
conversa! Vamo, encosta ali. Todo mundo pra parede. Oliveira, revista um por
um. – ordena o capitão a outro policial.
- Vamo lá. Mão na
parede, perna aberta. Ninguém se mexe.
- Mas a gente
não fez nada. Isso é um absurdo! – insistiu mais um jovem.
- Não fizeram
nada?! Vocês vem ao shopping, ficam andando, conversando na praça de
alimentação, dando risada e ainda dizem que não fizeram nada. Isso tudo é muito
suspeito. Ainda mais com um bando de neguinho que nem vocês. – dispara o
capitão.
- O que é isso? Não
pode falar assim, não. Isso é preconceito. Racismo é crime, policial.
- Cala a boca e
fica quieto, moleque! Não existe racismo nesse país. Agora, todo mundo sabe que
negro parado é suspeito, correndo é ladrão. E vocês estavam parados, o que é
muito suspeito.
- Suspeito de
quê? De frequentar o shopping? Quem o senhor pensa que é pra fazer isso? Isso é
um abuso. – protesta um dos rapazes do grupo.
- Olha o
desacato, pivete! Viu só, Oliveira? Não pode dar liberdade. Quando começa a
reclamar assim é porque aí tem coisa.
- E tem mesmo,
capitão. Olha só o que eu encontrei aqui.
- Opa, opa,
opa... celulares. Muito suspeito. Na verdade, suspeito até demais.
- Não tem nada a
ver. A gente só tava trocando mensagem entre os amigos, policial.
- Trocando
mensagem? Que tipo de mensagem? Verifica aí, Oliveira.
- Tá escrito
assim, capitão: “Galera, vamo dar um rolezinho no shopping. Zoar, dar uns
beijos, rolar umas paqueras”.
- Olha aí! Tô
falando. É suspeito, sim. Aí tem coisa. Devem ser aquelas mensagens em código
que os vagabundos gostam de usar.
- Isso não é
verdade. Desde quando é proibido usar celular? – questiona outro garoto.
- Depende de
onde você estiver usando. No presídio, é proibido.
- A gente não é
bandido. Nem tá no presídio.
- Ainda não. Mas
vocês chegam lá. Encontrou mais alguma coisa aí, Oliveira?
- Encontrei, capitão.
O senhor não vai acreditar. Estão portando um coquetel molotov.
- Isso é o meu
milkshake de Ovomaltine! – reclama o jovem que teve o sorvete apreendido.
- Milkshake de
Ovomaltine? Tu tá pensando que eu sou otário, rapaz?! Pensa que eu não sei do
que vocês são capazes?! Já ouvi a conversa de que era vinagre, pinho sol, água sanitária.
Mas milkshake é a primeira vez.
- O que é isso,
policial? Olha aí... é só creme com chocolate no copo.
- Você é da perícia
por acaso?! Faz laudo técnico?! Quer ensinar o padre a rezar missa?
- Isso é
discriminação. Agora ser negro e pobre é crime, é? – pergunta o rapaz.
- Oficialmente, não.
Mas já é metade do caminho. Agora rolezinho é crime, sim. Onde já se viu?! Negro
e pobre circulando no shopping tranquilamente. Não pode, não. – sentencia o capitão.
- Quer dizer que
se fosse branco poderia então?
- Se fosse
branco, não seria rolezinho. Seria flash mob.
- Terminei aqui,
capitão.
- Ótimo. Vamo
embora, Oliveira. Apreende tudo e leva todo mundo pra delegacia. E cuidado aí
com o MacGyver do milkshake.
Um comentário:
Ainda vigora neste País a regra dos três P's, Preto, Pobre de Periferia.Com toda certeza isso causa indignação a qualquer cidadão de bem.
Postar um comentário