domingo, 30 de novembro de 2008

O dia em que me tornei amigo do Moacyr Scliar

Por João Paulo da Silva

Foi com “O Exército de Um Homem Só” que tive meu primeiro contato com a literatura de Moacyr Scliar. Mesmo sendo ainda um moleque, achei o livro fabuloso, cheio de pequenas e grandes revelações. Mas o fato é que esta obra me permitiu conhecer muitos outros livros do Moacyr, como “Mês de Cães Danados” e “A Guerra no Bom Fim”. A admiração pela prosa humana e reveladora do Scliar me levou a assistir, na noite de sexta-feira, 28 de novembro de 2008, sua palestra sobre Graciliano Ramos e os 70 anos de Vidas Secas. É claro que Graciliano sozinho já é um espetáculo, entretanto, naquela noite, fiquei com a sensação de que o Velho Graça não era a estrela absoluta.

A palestra do Moacyr em Maceió estava marcada para as 19h30, mas só foi começar mesmo depois das 20 horas. Eufórico como uma tiéte, me sentei na terceira fileira das cadeiras do auditório. Nas mãos, eu segurava apenas minha caneta e meu exemplar de “Mãe Judia, 1964”, pronto para conseguir um autógrafo. Quando vi o Moacyr Scliar entrar no auditório, virei para um amigo e falei extasiado:
- Lá vem ele! É o Moacyr! Lá vem o Moacyr, caramba!
- Sossega o fogo aí, rapaz! – repreendeu o amigo.

Minha tietagem só não foi maior porque não levei pompons e não fiquei gritando: Moacyr, Moacyr, Moacyr! O que por um lado foi bom, me fez evitar o ridículo. Mas devo confessar que uma forte emoção me assaltou naquele momento. Era a primeira vez que eu estava diante de um dos meus escritores prediletos. Além disso, também era a primeira vez que eu estava vendo de perto um gaúcho, que só conhecia das histórias que contam por aí. Fiquei esperando o momento em que ele usaria o “tu” ao invés do “você”. E ele usou. Após a palestra, fiz uma observação sobre Graciliano Ramos. Aí o Scliar respondeu: “Tu tens toda razão no que tu falas”. Achei muito engraçado aquilo. O Moacyr usou o “tu” com aquele sotaque gaúcho, mas ficou devendo um “barbaridade, tchê”.

Durante toda a palestra, fiquei atento ao que o Moacyr Scliar falava. Por quase duas horas, ele falou da vida do Graciliano, da força de Vidas Secas, revelou algumas fofocas do meio literário e contou anedotas da literatura em geral. Mas duas coisas me chamaram a atenção no palestrante. A primeira é que o Moacyr parece um bom velhinho, com aquela cara de vovô bonachão. Um pouco mais de barba e cabelo fariam dele um simpático Papai Noel. A segunda, e mais engraçada, é que ele é bem rosadinho, o que acabou me dando a impressão de estar vendo um desenho animado.

Terminada a palestra, começou a sessão tietagem. E eu estava no meio, claro. Para onde ia o Moacyr, eu ia atrás. Não sairia dali sem meu autógrafo e pelo menos uma foto. Se, por acaso, ele esboçasse qualquer movimento de fuga, eu não hesitaria em pular em seu pescoço.

Depois de ficar na cola dele por um tempo, finalmente consegui. Não tirei uma foto, tirei três. Sempre muito simpático, ele autografou meu livro com os seguintes dizeres: “Para João Paulo, leitor brilhante. Abraço do Moacyr.”. Foi o primeiro autógrafo que recebi na minha vida. E isso não é qualquer coisa. Eu até ganhei um elogio do cara, pô!

Agora, depois de ter conhecido o Moacyr Scliar, ter tirado três fotos e ter ganhado um autógrafo, vou exigir mais respeito em todos os lugares. Tão pensando o quê?! Agora eu sou amigo do Moacyr, rapá!

Na escola, durante as aulas de literatura, quando um aluno estiver bagunçando, vou dizer:
- Ô rapazinho! Você sabe com quem está assistindo aula? Com o amigo do Moacyr Scliar! Então, por favor, mais respeito, hein!

Na hora de reivindicar um salário melhor:
- Não vou aceitar essa ninharia não. Vocês sabem quem eu sou? Sabem? Sou amigo do Moacyr Scliar. Quantos amigos do Moacyr vocês conhecem, hein?! Vamos, respondam!
Bom, tudo bem que o Moacyr ainda não sabe que somos amigos. Mas nisso eu penso depois.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Quando o latido é maior do que o cachorro

Por João Paulo da Silva

Ainda não sei dizer exatamente quanto tempo vai durar a euforia mundial em torno da eleição de Barack Obama. Talvez dure o suficiente para causar muitos estragos e desenganos entre os milhões que votaram desejando mudança. Ou não. Talvez, quem sabe, nem dure tanto tempo assim, pois as principais peças do tabuleiro de xadrez já começaram a se mexer.

Com seu neoliberalismo afiado e suas guerras assassinas, a Era Bush deixou na história uma enorme mancha de sangue, um déficit fiscal gigantesco e um recorde de impopularidade. Amargando uma rejeição de mais de 70%, o xerife texano acabou sujando demais a imagem da espoliação imperialista. Os milhões que disseram “sim” ao Barack estavam, na verdade, dizendo “não” à política representada por Bush. Não foi à toa que a campanha de Obama se apoiou no slogan de “mudança”.

Tudo o que a grande burguesia norte-americana desejava era um novo rosto para camuflar sua política de rapina pelo mundo. Precisava de alguém que pudesse segurar a crescente onda de insatisfação no planeta, alguém que criasse esperanças de dias melhores nos corações de uma infinidade de pessoas. Era preciso alguém que fizesse tudo isso, e que continuasse com os saques do imperialismo. A burguesia norte-americana encontrou no jovem, negro e carismático senador de Illinois o rosto ideal.

Entretanto, muitos podem argumentar: “Ora, mas você vai negar que a eleição do primeiro presidente negro dos EUA é um marco na história desse país?”. Não, de modo algum. Isto é inegável, sobretudo em um lugar que tem a história marcada pela desgraça do racismo. Mas o fato é que, em alguns momentos da vida, é preciso ceder um pouco para não perder tudo. O imperialismo fez uma concessão histórica ao permitir que um negro chegasse à presidência. No entanto, só o fez porque estava em jogo algo mais importante do que a cor da pele. “Negócios são negócios. E não se pode fazer uma omelete sem quebrar alguns ovos.”, imagino que estejam dizendo agora os magnatas.

De todo modo, Obama sofreu bem menos do que a maioria dos negros pobres de seu país. Formou-se em Direito em Harvard e se tornou um patrício. É um fiel defensor dos interesses capitalistas. E isso também não se pode negar. Ele e McCain foram financiados pelos mesmos senhores. O setor financeiro, por exemplo, agraciou os dois candidatos com quantias semelhantes. Os bancos, seguradoras e imobiliárias deram a McCain cerca de US$ 15 milhões. Obama recebeu US$ 16 milhões.

O que há ao redor de Obama é uma grande ilusão, em especial por parte dos trabalhadores negros e latinos. E isso é outra coisa inegável. O problema com as ilusões é que elas, além de atrasar as vidas, costumam deixar profundas decepções entre as pessoas. Obama passou toda a campanha ligando seu nome à palavra mudança. No discurso da vitória, reforçou a idéia com a frase “a mudança chegou à América”. Não há o que estranhar até aqui. Esquisito seria se ele ganhasse as eleições dizendo a verdade. Algo como “Olhem, eu sou o continuísmo! Atenção! Vou salvar os capitalistas e deixar os pobres e negros a ver navios!”. Isso, sim, seria estranho. Obama é a representação típica daquela imagem na qual o latido é maior do que o cachorro. Com promessas mentirosas e apoiado num discurso de transformação, o democrata latiu muito alto e acabou gerando ilusões. Mas, definitivamente, não é o cachorro grande que os povos oprimidos pensam que ele é.

Bush vai sair e deixar um pepino para Obama descascar. O aprofundamento da crise econômica não irá permitir titubeações. Ou se estará de um lado ou se estará do outro. E o presidente eleito nem de longe se assemelha a um vacilante. Antes mesmo de assumir a Casa Branca, já deu demonstrações do lado que escolheu. Ainda durante a campanha, enquanto milhões de famílias perdiam suas casas, Obama aprovou o plano de Bush de US$ 700 bilhões para socorrer os bancos. No que diz respeito às guerras, falou em tirar tropas do Iraque e colocar no Afeganistão, o que na prática não muda nada. Também já engrossou o discurso pra cima do Paquistão e do Irã, prometendo apontar os canhões de sua “democracia” para este último se continuar insistindo com essa história de pesquisa nuclear.

Já eleito, Obama começou a montar sua equipe de governo. Em meio aos escolhidos, alguns republicanos estão cotados para o governo. É pra acabar com essa conversa de que há diferenças entre democratas e republicanos. A confusão vai ficar mesmo é na cabeça de quem achou que a mudança havia chegado.

Mundo afora, as revistas estampam manchetes nas quais ponderam: seria Barack Obama um messias? Talvez. Mas um messias que veio para salvar apenas um dos lados, pois a história dos homens já mostrou a impossibilidade de salvar os dois. O mundo adora Obama. E o capitalismo também.

domingo, 9 de novembro de 2008

Doadores

Por João Paulo da Silva

“Você desmaia quando vê sangue? Tem gente que morre porque não vê.” Jurandir tinha visto este anúncio publicitário não sabia onde. Numa revista, talvez. Mas já fazia um tempo. Era uma dessas campanhas de incentivo à doação. Achou criativa. Ele nunca tinha doado sangue na vida. Pelo menos até a semana passada. Não que fosse um sujeito egoísta, mas é que sempre foi um daqueles que desmaia quando vê sangue. Principalmente se for o próprio sangue.

O fato é que o sogro do Jurandir arrebentou-se numa queda. Ia fazer uma cirurgia e precisava de uma transfusão.
- Você vai sim! Ora essa!
- Não, mozinho. Por favor. Olha, você sabe que tenho medo de agulha. Que não posso ver sangue. Ai, meu Deus!
- O que foi?
- Já estou com vertigens. Tá vendo só?! Pense direito, minha filha.
- Deixa de frescura, Jurandir! Você vai e ponto final!
Intimado pela mulher, o Jurandir foi. Mas levou também o irmão.
Chegaram ao laboratório especulando sobre o procedimento.
- E a agulha? Como deve ser a agulha? – perguntou o Jurandir ao irmão.
- Sei lá. Deve ser maior.
- Maior?! Cacete! Vou embora! Tu fica aí e diz eu que passei mal.
- Nada disso! Não vou doar sozinho não!
- Ai, meu Deus do céu!

Entraram no laboratório. Após terem feito o cadastro de doadores, ficaram esperando na recepção. Depois de alguns minutos, apareceu uma moça de branco na porta:
- Senhor Jurandir da Silva?
O frouxo fingiu não ouvir.
- Senhor Jurandir da Silva? – repetiu a moça.
- É tu, porra. Vai ser o primeiro. – falou o irmão, cochichando e rindo.
- O senhor é Jurandir da Silva? – disse a moça.
- Sou. Quer dizer, não agora.
- Me acompanhe, por favor.
Quando Jurandir já estava na porta praguejando, a enfermeira voltou-se e disse:
- Ah, o senhor Adalberto da Silva?
- Sou eu. – disse o irmão do Jurandir.
- Venha também.
O Jurandir, triunfante, olhou para ele e murmurou:
- Otário.

Foram encaminhados para uma sala menor. Havia uma balança, uma pia e um balcão com alguns equipamentos. A enfermeira disse:
- Vamos primeiro fazer um furinho no seu dedo pra ver se tá tudo ok com seu sangue.
- Eu vou morrer? – perguntou o Jurandir, querendo descontrair o ambiente.
- Vai. Mas não por isso. – respondeu a enfermeira, sem sorrir.
Beleza. Um a zero pra você, infeliz. – pensou o Jurandir.

Após os exames preliminares, os dois se dirigiram para uma cantina. Lá, perguntaram se eles queriam tomar um suco. Tomaram. Depois, outra enfermeira chamou o Jurandir para uma salinha com os seguintes dizeres: triagem clínica. Ele sentiu que a hora se aproximava.
Entrou na sala e sentou numa cadeira. Do outro lado de uma mesa, mexendo num computador, estava a enfermeira.
- O senhor é professor, certo?
- Isso.
- Já teve alguma doença infectocontagiosa?
- Olha, não que eu me lembre.
- Está tomando algum medicamento?
- Não.
- O senhor já tomou as vacinas contra o tétano e a hepatite?
- Acho que sim. Mas faz tempo.
- Bebeu ontem?
O Jurandir começou a estranhar as perguntas. Mesmo assim respondeu:
- Não, não bebi.
- O senhor usa drogas?
Hesitou um momento. Pensou em confessar que tomo uns refrescos vagabundos desde os dez anos. Mas desistiu.
- Não. Nunca usei.
- É casado?
- Sou.
- Tem relacionamentos fora do casamento?
Aí o Jurandir ficou nervoso.
- Como assim?! Aonde a senhora quer chegar com essas perguntas?! Tá insinuando o quê?! Isso aqui é algum tipo de pegadinha? Algum teste de fidelidade? Cadê a câmera? Cadê a câmera?
- Calma, senhor. Calma. Essas perguntas fazem parte do procedimento. É pra saber se o sangue não está contaminado.
- É?
- É.
- Ah, tá. Desculpe. Sendo assim, tudo bem. É claro que não tenho nada fora do casamento. Ora essa.

Levaram o Jurandir para a sala de doação. Seu irmão já estava deitado numa espécie de cama. Ele deitou numa outra e aguardou. Foi quando entrou aquela primeira enfermeira.
- Vamos começar? – disse ela.
- Não senhora! Me deixa ver o tamanho dessa agulha!
- Não. É melhor que o senhor não veja. Não agora.
- Ai, meu Deus!
- Calma. Não vai doer nada.
- É?! Então vem pra cá e deixa eu tirar o teu sangue.
Ela olhou para o Jurandir, séria novamente, sem sorrir. Amarrou seu braço com um elástico e se preparou para introduzir a agulha. Foi quando ele viu o tamanho da coisa.
- Epa! Afasta esse negócio de mim! Olha só a espessura dessa coisa, minha filha! Deve ter uns cinco centímetros de diâmetro!
Não adiantou protestar. O Jurandir acabou cedendo. Mas não deixou de gritar quando sentiu a picada da agulha.
- Ui, ui, ui. Ai, ai, ai.
- O que foi, rapaz? É só uma picadinha de formiga.
- Só se for uma formiga do tamanho de um javali! – berrou.
O irmão do Jurandir assistia a tudo isso rindo. Canalha. A enfermeira deu aos dois uma bolinha de borracha pra ficar apertando. Era pra ajudar a bombear melhor.
- Escuta, minha filha. – falou o Jurandir – Vai demorar muito?
- Só um pouquinho. Até encher aquela sacolinha.
- O quê?! Aquele saco todo?! Mas assim vai embora meu sangue! Ai, meu Deus do céu!

Os minutos passavam, o sangue ia embora e o Jurandir pensando no sogro. “Velho filho da mãe! Tinha nada que cair! Ao invés de se lascar sozinho, lasca os outros também! Ai, meu Deus! Meu sanguinho.”
Enquanto se doa sangue, ficam perguntando direto se está tudo bem. Se as pessoas não estão sentindo nada estranho. Essas coisas. Perto do final da doação, o Jurandir resolveu fazer uma brincadeirinha com a enfermeira.
- Enfermeira, me ajude! – ele falou.
- O que foi?
- Não sei. Tô ficando tonto! Minha vista tá escurecendo! Socorro! Ai minha nossa Senhora! Me acuda, moça, que eu tô morrendo!
Fechou os olhos.
- Moço! Moço! Fale comigo! O que é que tá havendo?
- Brincadeirinha!
Ela fechou a cara de novo. Dessa vez numa expressão de fúria.
- Idiota. – disse.
Agora o Jurandir tinha ido longe demais.
Terminada a doação, ele perguntou se podia tomar mais um suco.
- Vão servir um lanche pra vocês lá fora. – disse a enfermeira sem olhar para ele.
Serviram um sanduíche de queijo com suco de cajá.
- Ei, será que podemos doar sangue os três horários? Manhã, tarde e noite. Assim a gente já garante as três refeições. – perguntou o Jurandir para a moça da cantina.
Ela ficou séria. Não deve ter achado graça da piada.
Não sei se você já doou sangue. Mas, para o Jurandir, a pior coisa não foi a agulha. Foi o mau humor do pessoal. Ô povinho ranzinza!