domingo, 27 de julho de 2008

O banqueiro e o ladrão de galinha

Por João Paulo da Silva

Eu cheguei até a pensar que jamais o encontraria. Pensei mesmo que ele fosse parte do folclore nacional. Uma lenda e coisa e tal. Eu estava enganado. Você deve conhecê-lo. Ele é a prova de que a Justiça condena os pobres e deixa livre os ricos. Ora, vamos. Você com certeza já ouviu falar dele. O tão mencionado ladrão de galinha. Sua existência é a comprovação de que a Justiça não é cega e de que sabe muito bem para onde está olhando. Nestes últimos dias, tive a oportunidade de encontrá-lo. Lá na redação do jornal me pediram pra fazer uma reportagem sobre o que anda pensando o ladrão de galinha a respeito da prisão do banqueiro Daniel Dantas.
- Você tá de brincadeira? – falei para meu editor.
- Não tô não, João. Vai lá e procura saber o que ele acha disso tudo.
Eu fui. E, para minha surpresa, ele existia. Dentro do presídio, atrás das grades, espremido numa cela superlotada, estava um genuíno ladrão de galinha. Bom, depois descobri que ele havia roubado mesmo era um galo. Mas isto é apenas um detalhe. O fato é que Everaldo já estava ali há três anos. Trabalhou muito tempo como auxiliar de limpeza. Um dia foi demitido e nunca mais encontrou emprego. O resto da história todos já sabem.

Fui ao presídio na terça, 8 de julho, algumas horas depois de decretada a prisão de Dantas. Everaldo ainda não sabia muito bem o que estava acontecendo. Tinha ouvido pouca coisa a respeito.
- Bom, seu Everaldo. Acabaram de prender o banqueiro Daniel Dantas.
- Mentira?! Sério? Prenderam um banqueiro? Tá de brincadeira comigo, rapaz?!
- De jeito nenhum, seu Everaldo. Falo sério. Te juro. Prenderam o sujeito por desvio de verbas públicas e lavagem de dinheiro.
- E isso lá dá cadeia, meu filho?! No dia que isso for crime, vão ter que prender o Congresso e tudo que é presidente da República!
- É verdade. Prenderam hoje, seu Everaldo.
- Humm... Algemaram o “homi”?
- Sim, sim. O banqueiro e mais tantos outros envolvidos. Até aquele ex-prefeito de São Paulo, Celso Pitta, tá no meio.
- É mesmo? Que esquisito.
- Então, seu Everaldo, eu vim aqui pra saber o que o senhor acha disso tudo.
- Meu filho, se isso for verdade mesmo parece ser um bom sinal. Deixa a gente até feliz de saber. Eu, por exemplo, roubei pra comer. Esses aí não. Roubam por safadeza mesmo.
- Na sua opinião, o senhor acha que essa prisão pode significar uma mudança na Justiça?
- Olhe, acho que sim. Pode ser que agora as coisas se ajeitem, né? Tem mais é que botar esses caras na cadeia mesmo.
Saí do presídio com uma imagem na cabeça: o rosto do seu Everaldo na expressão de “agora esse país toma jeito”.
Mas não durou muito. Na noite de quarta-feira, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, mandou soltar o banqueiro Daniel Dantas. Na quinta pela manhã, fui novamente ao presídio.
- Seu Everaldo! Péssimas notícias. Soltaram o banqueiro.
- O quê?! Já soltaram o “homi”?! Mas isso é uma esculhambação mesmo! Quem foi que soltou o infeliz?
- Foi o presidente do Supremo Tribunal Federal, o ministro Gilmar Mendes.
- Eu sabia. Eu sabia que ia dar nisso. Rico, preso?! Onde já se viu isso?! Agora comigo não! Comigo é essa safadeza toda. Esses caras roubam milhões e não vão em cana! Eu peguei uma galinha pra comer e tô preso! Palhaçada! Depois vem aquela conversa mole de que a Justiça é cega. Uma banana!
- O ministro concedeu um habeas corpus na noite de ontem.
- Habeas corpus? Que diabo é isso?
- É uma garantia constitucional em favor de quem sofre violência ou ameaça de constrangimento ilegal na sua liberdade de locomoção, seu Everaldo.
- Violência?! Constrangimento?! Vê se eu posso me locomover aqui dentro com esse monte de gente. Eu é que sei o que é isso! Quando fui preso, não me deram nada de habeas corpus não! Me deram foi um porradeas corpus! Isso sim.
Saí de lá com a imagem de desiludido do seu Everaldo. Mas horas depois eu estaria de volta ao presídio. Na tarde do mesmo dia, dez horas após a libertação, a Polícia Federal recebeu ordem para prender novamente o banqueiro Daniel Dantas.
- Seu Everaldo, trago boas notícias.
- Vão me dar também um daqueles habeas corpus?
- Bom, não é bem isso.
- E o que é?
- Prenderam de novo o banqueiro.
- Mentira?!
- Verdade. E dessa vez ele foi acusado de corrupção ativa. Tentou subornar o delegado pra que seu nome fosse tirado da investigação. Filmaram tudo!
- Ahhhh! Dessa vez esse tal de Daniel tá lascado. Quero só ver soltarem o bicho agora que tem tudo filmado.
Mas não deu tempo nem do seu Everaldo se animar direito. Na tarde da sexta-feira, o ministro Gilmar Mendes mandou soltar pela segunda vez o desgraçado do banqueiro. A história se repetiu. Agora, combinando a tragédia e a farsa. Eu já não tinha nem mais cara para olhar pro seu Everaldo.
- Seu Everaldo...
- Nem precisa me dizer, rapaz. Já sei. Soltaram de novo o pilantra do banqueiro.
- Pois é. Essa Justiça... não sei pra que que serve.
- Mas eu sei! Serve só pra prender pobre e acobertar rico. Você, por exemplo, já viu algum desses poderosos ir pra cadeia?!
- E o que é que o senhor acha que deve ser feito, seu Everaldo?
- Meu filho, agora tem que prender também a Justiça, começando por esse tal de Gilmar Mendes.

segunda-feira, 21 de julho de 2008

Pelos olhos murchos de uma vida seca

Por João Paulo da Silva

Desde 1988, dona Marlene dos Santos acorda todos os dias às 5h30 da manhã. De estatura baixa, negra e com fortes marcas da ação do tempo no rosto, ela diz já estar acostumada a levantar cedo. Durante estes últimos 20 anos, não houve nenhuma grande mudança em sua vida. Seus dias de vendedora de macaxeira se repetem miseravelmente iguais, como uma espécie de condenação sem a qual seria impossível sobreviver. Aos 49 anos de idade, dona Marlene empurra seu carrinho de macaxeira até o início da Avenida Maceió, no Tabuleiro dos Martins. Há duas décadas, a Feirinha do Tabuleiro é o lugar onde ela encontra o sustento para não morrer de fome.

Nascida em Pernambuco, ex-costureira e mãe solteira de duas filhas, Marlene vive hoje com um sobrinho numa casa simples, localizada algumas ruas depois do seu ponto de trabalho. Quando veio para Maceió, capital de Alagoas, a vendedora de macaxeira – que estudou só até a 2ª série do Ensino Fundamental – ainda tentou encontrar emprego. Mas, assim como milhões de outros brasileiros, não conseguiu. “Eu não tinha estudo. Não tinha leitura de nada. Por isso vim pra cá.”, ela explica. Semi-analfabeta, não encontrou outra maneira para sobreviver. Era a informalidade ou a fome e a miséria absoluta. Numa tarde de sexta-feira, num 4 de julho, dona Marlene, entre um freguês e outro, contou um pouco de sua vida. Na ocasião, usava uma blusa azul, uma saia verde e sandálias. No rosto, estava estampada a expressão daqueles para os quais o mundo nunca sorriu.

Marlene dos Santos chega à Feirinha do Tabuleiro todos os dias às 6h e só recolhe a mercadoria por volta das 19h30. Comprando o saco de macaxeira com 60 quilos por R$ 40,00, dona Marlene afirma que a melhor época para faturar é o verão. De domingo a domingo, vendendo o quilo do produto por R$ 1,00, a ex-costureira precisa trabalhar cerca de 14 horas por dia para que, no final do mês, possa apurar em média R$ 400,00. “A gente não tem outro meio de viver, não dá nem pra pagar os pregos da gente”, ela confessa. Dona Marlene é uma mulher que vive no século XXI, mas trabalha como um operário do século XIX. Ao voltar para casa, às 20h, ainda tem de enfrentar, depois de um cansativo dia de trabalho, os mortificantes serviços domésticos. Uma dura realidade de dupla jornada que não atinge apenas esta pernambucana, mas a vida de milhares de outras mulheres brasileiras.

Como se já não fossem muitas as adversidades do trabalho de dona Marlene, o juiz Emanuel Dórea notificou e estabeleceu um prazo para que a prefeitura transferisse a Feirinha do Tabuleiro para um terreno adquirido pelo município, localizado atrás de um supermercado da região. Em janeiro deste ano, a transferência foi concluída e dona Marlene, assim como os outros feirantes, teve uma diminuição nas suas vendas. “Nem trabalhar nas pistas a gente pode mais, porque eles não querem. Ficou muito ruim”, ela reclama. Mas mesmo com essa medida dona Marlene insiste: “Eu fico aqui, na beira da pista, de segunda a sexta. Só vou pro terreno da prefeitura no final de semana”, argumenta.

Talvez esta vendedora de macaxeira, negra e pobre desconheça o fato de que, diante do descaso de tantos governos, ela representa apenas mais um daqueles números que engrossam as estatísticas de desemprego. De acordo com um estudo divulgado pelo Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) no final do ano passado, observa-se que o desemprego é sistematicamente mais elevado entre a população negra, qualquer que seja o nível de escolaridade pesquisado. As taxas de desemprego entre os negros chegam a ser 46% mais altas que a dos brancos. Dona Marlene não é apenas uma vítima da falta de trabalho, tendo de recorrer à informalidade para se sustentar, ela é também uma vítima do racismo.

Com quase meio século de vida, Marlene já começa a sentir no corpo o peso de 20 anos de trabalho com a macaxeira. As mãos secas e calejadas retratam uma pessoa que não passou a vida contando dinheiro. Os fios de cabelo branco e o rosto fincado de rugas são reflexos de uma velhice que chegou antes do tempo. As enormes varizes que marcam suas pernas e as fortes dores de coluna mostram a imagem de um corpo necessitado de descanso. Descanso que, talvez, não venha em vida. Comentando as eleições municipais de outubro deste ano, dona Marlene demonstra não ter mais confiança. “A gente já foi enganado um bocado de tempo”, desabafa.

Dona Marlene dos Santos, vendedora de macaxeira na Feirinha do Tabuleiro, bem que poderia ser parte de um dos romances do escritor alagoano Graciliano Ramos. Uma daquelas personagens que observam o mundo pelos olhos murchos de uma vida seca. Sinhá Vitória, mulher do personagem Fabiano na obra Vidas Secas, possui um grande sonho: ter uma cama de lastro de couro, onde pudesse dormir como gente de verdade. Dona Marlene também possui um sonho. Perguntada sobre isso, ela confessou: “Meu sonho é um salão. Nunca fiz curso, mas tenho muita fé em fazer um. Queria ter um salão de cortar cabelo.”.