domingo, 30 de setembro de 2007

O incorrigível

Por João Paulo da Silva

Todos nós cometemos erros. Não há ser humano no mundo que nunca tenha cometido um errinho sequer nessa vida, principalmente quando se trata de erro gramatical. Eu tive um professor de Português que tratava desse assunto com uma peculiaridade absurda, algo jamais visto antes. Ele elaborou um termo extremamente objetivo e claro para designar o ato gramatical falho que qualquer indivíduo viesse a cometer. O professor costumava chamar de “jeguices” os equívocos em que as pessoas tropeçavam por descuido ou por pura ignorância mesmo. Concordo que parece um método um tanto quanto inadequado, mas funcionava.
- Pedrinho, faça o favor de vir aqui a frente. – era o chamado do carrasco.
- Pois não, professor?
- Meu filho, confesso-lhe que esta é uma das maiores jeguices que já presenciei em toda minha carreira como mestre. Onde já se viu escrever casa com “z”?! A palavra casa é grafada com a letra “s”, criatura! Que jeguice, meu Deus! Que jeguice!

Depois da condenação, a turma inteira deitava numa só gargalhada. Era o golpe de misericórdia, a execução. A vítima ficava vermelha de vergonha e os olhos se enchiam de lágrimas.

Muitos pais criticavam o método, mas nada tinham a dizer a respeito dos resultados. O professor garantia que, depois de ter passado pelo processo, o sujeito jamais voltaria a cometer outra jeguice. Os fins justificavam os meios.

Mas as particularidades do professor não param por aí, não se restringem aos alunos, vão aos extremos. Ele é dono de uma mania que sempre incomodou a todas as pessoas que o conhecem e até mesmo as que não o conhecem. Digo isso porque tenho conhecimento de causa. Ele não pode ouvir ou ver alguém cometer uma jeguice sem que lhe venha um desejo doido ao peito de imediatamente corrigir o infeliz. É praticamente uma doença, o que quase sempre lhe causa situações inusitadas.

No coletivo:
- Que ônibus cheio, não é? – comentou uma senhora gorda que estava sentada ao lado do professor.
- É, hoje realmente está lotado. – concordou ele.
- Ontem haviam menas pessoas.

Pronto! Diante de tal absurdo, o mestre não se conteve:
- Minha senhora, tenha santa paciência!
- Mas o que foi que eu disse de errado?
- Tudo, minha senhora! Tudo! Quando usado no sentido de existir, o verbo haver torna-se invariável, ou seja, não vai para o plural. E a palavra menos, por ser um advérbio, também é invariável. Não tem feminino. A senhora cometeu duas jeguices. Uma jeguice dupla!

Assustada, a senhora reagiu:
- E precisa me engolir? O senhor me respeite, viu? Eu nem conheço o senhor!
- A senhora não conhece é a gramática! E quer saber de uma coisa? Eu vou descer na próxima parada porque essas jeguices podem ser contagiosas. Passar bem!
E desceu mesmo.

Outra situação inusitada aconteceu no mercadinho da esquina. O professor caminhava por entre as prateleiras, analisando os preços, quando de repente se deparou com uma jeguice escrita numa placa. “Cocô por R$ 0,70”. Uma tristeza, pensou. O mestre deduziu que o proprietário quisera escrever a palavra coco, e não tamanha barbaridade. No entanto ele não tardou a corrigir o dono do mercadinho.
- Seu Zé, faça o favor de vir aqui.
- Pois não, doutor?
- O senhor me veja um cocô desses, sim?
- Um o quê?
- Isso mesmo que o senhor ouviu. Um cocô desses!
- O doutor deve ter se enganado. Esse tipo de produto eu não vendo não.
- Como não? Vende, sim senhor!

O professor mostrou a placa.
- Olha aí! – disse ele.
- Mas, doutor, isso aí é coco.

O professor não se conteve.
- Meu senhor, coco não é acentuado! O senhor escreveu foi cocô! Pelo amor de Deus! Que jeguice!

O pobre homem ficou extremamente constrangido. Soltou a primeira desculpa que lhe veio à cabeça:
- O doutor me perdoe. Deve ter sido a burra da minha mulher.
- É sempre assim. Nessas horas sempre sobra pra mulher. – disse o professor com uma sutil ironia. – Além de burro, é machista. E tem mais, hein! O senhor não me verá outra vez nesta espelunca. Passar bem!

Por muitas vezes o professor foi advertido. Não faltaram amigos tentando convencê-lo do perigo que ele corria. Qualquer dia iria acabar se arrebentando. Mas a mania já havia se tornado um mal compulsivo, era difícil de controlar. No entanto ele prometera tentar. Afinal, sua vida estava se tornando insípida. Não era mais convidado para festas, reuniões ou almoços. Estava se transformando num sujeito insuportável. Persona non grata.

Outro dia, ele caminhava tranqüilamente pela rua quando deu de cara com um absurdo escrito na placa de um estabelecimento.
“Concerto de liquidificador”.

Tentou conter o impulso, mas era mais forte do que ele. Ainda deu umas voltas pelo quarteirão, tentando controlar seu diabinho interior. Foi inútil, acabou entrando. Sentou-se num sofá e ficou olhando para o homem do balcão com a cara mais cínica do mundo. O sujeito do balcão se manifestou:
- Pois não? Posso ajudá-lo?
- Não, obrigado. Eu estou apenas esperando.
- Esperando o quê? O senhor deixou algo para consertar?
- Não, não, não. Só estou esperando.
- Mas esperando o quê, meu senhor?
- O espetáculo, ora essa!
- Que espetáculo, moço?!
- Não é aqui que ele vai se apresentar?
- Ele quem, homem de Deus?!
- O liquidificador! Ouvi dizer que será um grande concerto. O que vai ser? Chopin? Mozart? Bach?
- O senhor é algum tipo de maluco? Aqui não tem essas coisas de espetáculo! Eu conserto liquidificadores. Que história doida é essa?
- Está lá fora, escrito no seu letreiro.
- Que conversa! Me mostre isso que eu quero ver! – o homem já estava se irritando.

Foram para a rua. O professor apontou a placa:
- Vê? O senhor escreveu concerto com “c”, o que significa uma apresentação musical. Conserto com “s” é que corresponde ao ato de consertar algo que foi quebrado. Que jeguice, hein, amigo? Essa foi das grandes! – o professor deu uma risada.

O dono do estabelecimento ficou furioso. Aquilo era um desaforo!
- Escute aqui, meu senhor, você não tem nada a ver com isso! Não se intrometa na minha vida. O erro foi meu, não foi?
- Foi.
- O estabelecimento é meu, não é?
- É.
- Então vá pra merda! E não me encha o saco! – gritou.
- O correto é vá à merda. O senhor não aprende mesmo, hein?
- Suma da minha frente antes que eu lhe quebre a cara!
- Além de burro, ignorante e grosso.

O dono do estabelecimento não se conteve, era o fim da picada. Partiu pra cima do professor. Começou a distribuir socos e pontapés, encheu de cacetadas a cara do mestre. Nos intervalos das pancadas, o professor ainda encontrava forças para xingar o homem, mesmo estando praticamente sem dentes e falando fofo.
- Que jeguice!
- Cala essa boca!
E tome cacetada!
- O senhor é um néscio!
- Não sei o que é isso, mas cala essa boca!

E mais cacetada!
Quando o homem parou de bater, o professor já estava sem sentidos. Passou algumas semanas de molho no hospital, acabou sofrendo umas “fraturazinhas”.

De fato, após a humilhação e a tragédia, ficaram as cicatrizes e uma lição. De tanto corrigir os outros, acabou tomando um corretivo. Mas todos sabem que o professor é e sempre será um incorrigível. Certas coisas nunca mudam. Fazer o quê?

sábado, 22 de setembro de 2007

Lula-lá, os quarenta ladrões, Renan e as malufadas

Por João Paulo da Silva

"Lula malufou!”. A frase foi dita pelo Maluf numa entrevista no início do ano. Isso mesmo! Estou citando Paulo Maluf. Nunca pensei que um dia eu teria de citar um dos maiores símbolos da corrupção deste país. Isso não é um bom sinal. De fato, as coisas não vão nada bem. Mas o que me interessa mesmo em Maluf é apenas o seu neologismo.

A sujeirada que tomou conta dos noticiários nesses meses que passaram me fez chegar à conclusão de que o verbo mais conjugado no Senado, na Câmara e no Planalto é o verbo “malufar”. Nunca na história desse país – já ouvi esta frase antes – malufou-se tanto como hoje sob o comando de Lula. Malufou-se com o mensalão, com os sanguessugas, com os gabirus etc, etc, etc... Mas talvez as mais emblemáticas malufadas tenham ocorrido nos últimos dias.

No final de agosto passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) abriu processo criminal contra os 40 acusados no escândalo que abalou o primeiro mandato de Lula. Entre os mensaleiros, estão também algumas figurinhas carimbadas do PT, como Zé Dirceu, Delúbio Soares e José Genoíno. O leitor provavelmente deve estar pensando: “Tá vendo! Eu não disse. Agora todos serão condenados”. Não se iluda, caro leitor. O STF nunca condenou ninguém. Até mesmo o Collor escapou por “falta de provas”. Se o Congresso é marcado pela impunidade e corrupção, o Poder Judiciário não poderia deixar de dançar conforme a música. Os ministros que compõem o STF são diretamente indicados pelo presidente. Dos atuais 11 ministros que atuam no Supremo, 7 foram indicados por Lula. Dois outros foram indicações de FHC, um foi apadrinhado por Collor e o mais antigo por Sarney. O circo dos horrores armado com o julgamento dos mensaleiros é uma espécie de bóia salva-vidas para as instituições da democracia dos ricos, uma tentativa de “moralizar” as coisas. No entanto, nada garante que no final haverá justiça. Não há prazo para o fim dos processos, os crimes podem prescrever e o mais presumível é que ninguém seja degolado. Sem falar, claro, que o chefe da quadrilha e os corruptores por trás de tudo seguem preservados. Os bancos, as empreiteiras e Lula não foram processados. Enfim, Ali Babá não entrou na roda.
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Eu não ficarei surpreso se na próxima atualização da lista telefônica encontrar o número do Senado como a mais nova pizzaria do momento. Senado’s pizzas: a maior casa de pizzas do país. Entregamos em todo o território nacional e também em paraísos ficais.

- Alô? É do Senado’s pizzas?
- É sim, senhor. Pode fazer seu pedido.
- Qual é a boa de hoje?
- Olha, nós temos um vasto cardápio. PT ao catupiry, PP calabresa, PCdoB Margherita, PMDB mussarela, DEM Alcachofra, PSDB gorgonzola. Mas a mais pedida do momento é Renan quatro queijos.
- Hum... E as bordas são recheadas?
- São sim, senhor.
- Com o quê?
- Paulo Maluf.
A absolvição do Renan teve ao menos utilidade pública. Serviu para provar de uma vez por todas a falência das instituições burguesas e a liderança do Brasil nas pesquisas sobre clonagem. Afinal de contas, eles são todos Renans.
A verdade é que Renan não foi cassado porque é um dedo-duro. Quando as denúncias começaram a fechar o cerco, ele ameaçou revelar a sujeira de seus comparsas. Disse que se fosse cassado espirraria lama pra todos os lados. Durante a escandalosa e patética sessão escondida, os senadores trocaram ameaças, negociaram votos e acertaram favores. Tudo para preservar suas próprias cabeças e falcatruas. Conseguiram.

Lula e o PT foram os grandes pizzaiolos. Se Renan fosse degolado, o governo abriria uma crise com o PMDB que poderia prejudicar a aprovação das reformas neoliberais no Congresso. O senador Francisco Dornelles (PP-RJ) resumiu bem a sessão mafiosa: “Crime tributário não é causa para quebra de decoro. Amanhã, isso pode ser usado contra os senhores, porque muitos aqui têm muitos problemas fiscais”. Enquanto isso, a polícia prende e espanca os desempregados deste país que roubam para matar a fome. Tiro outra conclusão: a justiça burguesa não é cega. Ela tem olhos e nariz de classe. De fato, nunca se malufou tanto na história do Brasil.
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ERRATA
Sempre que falarem em CPI, não se deve ler Comissão Parlamentar de Inquérito. Leia-se Comissão da Pizza Institucional.

domingo, 2 de setembro de 2007

Uma lembrança natalina

Por João Paulo da Silva

Minha infância foi repleta de acontecimentos intrigantes, muitos relacionados ao dia 25 de dezembro. Um dos momentos mais mágicos do Natal é sem dúvida nenhuma o ato de montar a árvore. Tudo bem que a minha era pequena, feia e com poucos enfeites, mas o que é que eu podia fazer? Não tinha dinheiro pra comprar uma nova, fui obrigado a me conformar. Mas o bom mesmo era ficar esperando o presente do Papai Noel. Ah! Eu adorava isso. Pendurava minha meia na janela da sala de visitas (na minha casa não tem chaminé) e ia dormir cheio de expectativas. No dia seguinte, eu acordava eufórico. Corria até a janela para ver se havia algum presente. Tsc, tsc, tsc. Que nada! Papai Noel nunca deixou brinquedos em minha meia. Cheguei a pensar que talvez fosse por conta do buraco que nela havia. Tolice! Com certeza não era esse o motivo. O velhinho de barbas longas devia ter uma péssima memória. Mas eu nunca perdi as esperanças de que um dia ele pudesse lembrar de mim.

Foi no Natal de 1991 que ocorreu um dos fatos mais intrigantes de minha infância. Eu dormia um sono tranqüilo e sem sonhos quando fui acordado por um barulho vindo da sala de visitas. Ergui-me rapidamente ao ouvir a janela sendo aberta, alguém estava entrando na casa. Meu coração começou a bater descompassadamente, minha respiração tornou-se ofegante. Era ele! Só podia ser ele! Finalmente Papai Noel havia lembrado de mim! Corri apressadamente para a porta, pensei em ir até a sala. Pus a mão na maçaneta, mas estanquei. Não podia ir. Lembrei que as crianças não deviam ver o velhinho pôr os presentes. Era um ritual, fazia parte do encanto natalino. Voltei para a cama e tentei dormir novamente. Não consegui. Era difícil conter a emoção, comecei a sentir uma pressão no estômago e a garganta seca. Fiquei a noite inteira ouvindo os ruídos que o Papai Noel fazia em minha sala de visitas. Móveis arrastando e pesadas botas contra o chão.

Ao amanhecer, corri até a sala de visitas. Fui tomado por uma desconfiança intrigante. Olhei ao meu redor e senti falta da televisão, do rádio, de algumas cadeiras, da mesinha de centro e de minha meia. Perguntei-me o que teria acontecido durante a madrugada. Estivera mesmo o Papai Noel em minha casa? Claro que sim! Eu o ouvi chegar! Foi aí então que uma idéia me atravessou a cabeça. Eu não queria acreditar. Mas não havia outra explicação, pelo menos para mim. Conclui que o Bom Velhinho devia ser um sujeito bem mais pobre do que eu. Pra ter levado até a minha meia, com certeza o pobre Noel se achava em maus lençóis (se é que tinha lençóis!). Esse Natal marcou para sempre minha infância.

Os anos foram passando, eu cresci e acabei descobrindo que essa história de Papai Noel é uma tremenda invenção, lenda mesmo. Aqui em casa, o único que ainda acredita é meu pai. Todas as vezes que chega o Natal, ele acomoda-se diante da janela da sala de visitas, numa das últimas cadeiras que nos restou. Espera com os olhos sempre muito abertos, dificilmente pisca. Minha mãe já pediu pra ele desistir dessa história, já falou que é loucura, mas meu pai não dá ouvidos. Com sua velha espingarda calibre doze apontada na direção da janela, ele aguarda ansiosamente a volta do Bom Velhinho.