domingo, 27 de abril de 2008

O Múmia

Por João Paulo da Silva

Há anos faço a barba e o cabelo com o Múmia. Não gosto de ficar trocando de barbeiro. Já me acostumei com ele. Sempre caladão, sério, com aquele olhar bovino, inofensivo. Deve ser por isso que o chamam de Múmia. Nunca descobri o seu verdadeiro nome. Também acho que nunca tive muito interesse. Ninguém o chamava pelo nome real. Todo mundo o conhecia mesmo era por Múmia.

A gente se entendia bem. Eu chegava no salão e ia logo dizendo:
- O de sempre, ô Múmia.
As pessoas até tentavam puxar conversa com ele, mas era uma dureza fazê-lo falar. O máximo que podia sair daquela boca, escondida atrás de um bigodão, era um grunhido ou qualquer coisa que o valha. Às vezes um ruído de aprovação ou desaprovação, dependendo do assunto. Na maioria das ocasiões, o Múmia se comunicava mesmo era por meio gestos e meneios de cabeça. Mas todos sabiam que ele não era mudo.
A reviravolta veio há algum tempo, quando ele resolveu se manifestar.
Vou contar do começo. Assim como milhões de trabalhadores, o Múmia também votou no Lula. Esperava grandes mudanças, sonhava com uma vida melhor, saúde, educação, emprego, um salário digno. Achava mesmo que tudo seria diferente. Quando o Lula chegou à presidência, dava pra ver a esperança na cara do Múmia.
- Ô Múmia! E esse governo, hein?! Será que agora vai?
Com um sorriso que não cabia no rosto, ele balançou a cabeça com firmeza e soltou um ruído parecido com um “oh, se vai!”. Alguns meses depois, já tinha gente provocando o Múmia.
- Olha aí! Tá vendo só?! Ainda não mudou foi nada! O Lula nem mexe no salário. Fica só falando nesse negócio de Alca. Sei não... Boa coisa não é.
O Múmia ficava ouvindo, sempre calado. De vez em quando encolhia os ombros e fazia cara de “calma aí, pessoal. Deixa o homem trabalhar”.
A verdade é que o tempo passava e as mudanças não vinham. Não veio reforma agrária, nem saúde, nem emprego. O que se via mesmo era rico ficando mais rico e pobre ficando mais pobre. Mesmo com uma pontinha de decepção, o Múmia se mantinha firme. Afinal, era um dos “nossos” que estava lá.
- E agora, ô Múmia? Mais de um ano de governo e nada! Tão matando sem-terra e a política econômica ainda é mesma dos tempos do Fernando Henrique. – diziam no salão.
E o Múmia sempre na dele. Mas já não tinha aquele sorriso do começo. Sabia que tinha alguma coisa errada.
Aí veio a história do mensalão.
- Eu não falei?! Não disse?! É tudo igual, Múmia. Todos eles roubam o povo. A gente aqui, dando um duro danado e esses caras do PT batendo a nossa carteira. E o Lula dizendo que não sabe de nada. Tu acredita nisso?!
O Múmia era só decepção. Parecia não saber o que dizer. E mesmo que soubesse não diria. O PT e o Lula eram iguais aos outros. Disso talvez ele soubesse.
Quase quatro anos depois, já perto das eleições, o Múmia não tinha sentido nem mesmo o cheiro das mudanças. Só algumas migalhas.
- Vai votar no Lula de novo, Múmia? – perguntaram no salão.
Meio receoso, hesitante e sem jeito, o Múmia fez uma cara onde se podia ler “mas ele veio do povo”. Assim como milhões de trabalhadores, o Múmia também votou de novo no Lula. Mas as caras e suspiros que ele deixava escapar demonstravam que aquela antiga esperança já não existia mais. O que havia era uma vontade de não perder as migalhas concedidas. A economia estava crescendo. Pouquinho, mas estava. No rosto do Múmia, via-se a expressão de “deixa como tá pra ver como é que fica”.
O segundo mandato começou como uma reprise do primeiro. Só com uma diferença: o que o Lula não conseguiu fazer de ruim com os trabalhadores no primeiro governo começou a fazer no início do segundo. E isso o Múmia sentia na pele e via pela TV.
No salão diziam:
- Ele agora vai mexer na nossa aposentadoria, não quer que ninguém faça greve, anda dizendo que usineiro é herói. Sei não, Múmia. Tá ficando pior.
O Múmia agora só balançava a cabeça em sinal de desaprovação. No rosto, a expressão de “na década de 80 não era assim”.
Esse ano começou ruim para o Múmia e milhões de trabalhadores. Começou mais caro. A cesta básica disparou. E o feijão? Este nem se fala. Assim como tantos outros milhões, o Múmia ia ter de apertar o cinto.
Foi aí que tudo aconteceu.
Eu tinha ido cortar o cabelo e fazer a barba. O Múmia estava passando a navalha no meu pescoço quando a TV deu a notícia. “Novo mínimo de Lula é de R$ 415,00”.
O Múmia arregalou os olhos e, com a navalha ainda no meu pescoço, disse:
- Isso é uma palhaçada! Um absurdo! O que que eu vou fazer com trinta e cinco reais de aumento?! Isso não dá nem pra cobrir o aumento do ônibus!
- Calma aí, Múmia. Espera um pouco. Olha essa navalha. – falei.
- Calma uma ova, seu João! – deu um salto pra trás e começou a sacudir a navalha no ar. – Eu esperei vinte anos da minha vida por um governo do povo. Votei muitas vezes no Lula e confiei no PT. E agora?! O que foi que eu ganhei?! Nada! Nesse governo, os ricos lucram fortunas! E os pobres pagam a conta, seu João. Esperei vinte anos por emprego, reforma agrária, educação, saúde, salário digno. Eu e milhões de trabalhadores!
Depois do desabafo, o Múmia sumiu do salão. Não voltou mais pro trabalho. E levou a navalha. Na barbearia até já tem outro no lugar dele. Está um clima diferente, todo mundo apreensivo, cheio de expectativas, como se algo estivesse prestes a acontecer. Todos achavam que ele ficaria sempre assim. Mudo. Mas até mesmo os mais calados uma hora acabam botando a boca no mundo.

terça-feira, 1 de abril de 2008

Pro meio do oceano!!

Por João Paulo da Silva

Atualmente assistimos a um show de patifaria. O grau de cinismo se tornou escandaloso na República do aedes aegypti. O surto de dengue no Rio de Janeiro revelou, entre outras coisas, que o governador Sérgio Cabral e o prefeito César Maia são dois debochados sem escrúpulos. E tudo o que o Rio não precisa agora é de autoridades debochadas. Ainda mais quando o deboche é direcionado aos que estão morrendo nas filas e corredores de hospitais públicos.

Diante da epidemia – que o Maia só há pouco tempo admitiu, mesmo com 45 casos da doença por hora – os governos municipal e estadual vêm divulgando as mais esquizofrênicas medidas para combater o mosquito. O Cabral, por exemplo, anunciou o disque-dengue e orientou a população a usar calças e camisas de manga comprida. Vê se pode?!

Você está em casa e escuta um zumbido. De repente, surge em sua frente um mosquito preto com manchas brancas. É ele! Você não tem dúvidas. Devagar, sem estardalhaço, você vai até o telefone.
- Alô? Alô? É do disque-dengue?
- É sim. Em que posso ajudar, senhor?
- Socorro, moça. Tem um aedes na minha casa!
- Não se apavore. Procure manter a calma. O senhor tem certeza que é ele? É pretinho com manchas brancas?
- Claro que tenho certeza! Ai meu Deus! Ele está olhando pra mim! O que que eu faço?!
- Senhor, não demonstre que está com medo. Ele pode achar que tem o controle da situação. Faça o seguinte. O senhor tem calças e blusas compridas em casa?
- Tenho sim.
- Vista essas roupas e não deixe que ele se aproxime.
- Mas... e se ele se aproximar?
- Caso o mosquito avance sobre o senhor, corra! Corra e não olhe pra trás!
***
O César Maia foi mais longe na cretinice. Tendo viajado para a Bahia, o prefeito do Rio disse ter rezado para o Senhor do Bonfim. “Pedi ao Senhor do Bonfim que nos ajude, que leve o mosquito da dengue em direção ao oceano.”. A declaração do Maia me fez refletir sobre uma coisa. Não há limites para um crápula. Ainda mais se ele for do Partido Democratas (antigo PFL). É uma pena que a TV ainda não nos permite esganar alguém através da telinha.

Embora o Cabral e o Maia tentem jogar a culpa nas chuvas e no clima tropical, a calamidade carioca já revelou seus verdadeiros culpados. A redução dos gastos com prevenção e combate à dengue e os sistemáticos cortes de verbas da saúde em geral demonstram o completo desprezo dos governos diante das vidas humanas. Não bastasse o grande número de pessoas infectadas pelo mosquito, ainda temos que enfrentar a falta de leitos e atendimento médico nos hospitais públicos. Lula, Sérgio Cabral e César Maia formam um perfeito eixo do mal. Há duas explicações para justificar os atos daqueles que retiram dinheiro das áreas onde, na verdade, os investimentos deveriam ser maiores: burrice ou ação criminosa. No caso de nossos governos, a segunda opção cai como uma luva.

Bom, caso o Senhor do Bonfim resolva mesmo dar uma forcinha, que não leve apenas o aedes aegypti pro meio do oceano. Pode levar o Lula, o Cabral e o César Maia também. Já ajudaria bastante.