domingo, 21 de novembro de 2010

De volta ao estado de natureza selvagem

Por João Paulo da Silva

Acho que foi o Rousseau, aquele filósofo francês do século XVIII, que disse que no início de tudo o estado de natureza selvagem do homem garantia a sua liberdade plena. Guiado apenas pelos próprios instintos, o ser humano precisava somente satisfazer as necessidades mais básicas. Comer e dormir, por exemplo. Com o surgimento da civilização e de todas as suas moléstias sociais, como a sociedade de classes, o casamento monogâmico e o capitalismo, nós teríamos nos distanciado de nossa condição natureba, e, portanto, dado adeus ao estado de liberdade. Excetuando-se o romantismo do Rousseau, talvez essa história de estado de natureza dos homens garantisse mesmo uma vida menos aprisionada, na qual fosse permitido o gozo de uma existência sem grandes preocupações. Resumindo: o direito de comer e dormir tranquilamente. Bom, foi nisso em que eu estava pensando quando me refugiei no meio do mato, num feriadão desses aí.

O refúgio foi o sítio de uma amiga, no município de Rio do Fogo, litoral norte do Rio Grande do Norte, a 85 km de Natal. Para fugir do corre-corre da cidade, das buzinas, da poluição e do ritmo alucinante de trabalho, era preciso voltar ao nosso estado natural de vida. Para reconquistar a liberdade usurpada, era necessário retornar à existência selvagem, ao convívio com os animais, aos braços da mãe natureza. Enfim, não podia haver contato com o mundo moderno e suas loucuras. Era um isolamento. Nada de celular nem internet. Entretanto, é claro que eu também não estava querendo viver como um autêntico homem das cavernas. E por isso a casa em que me hospedei possuía geladeira, fogão e TV. Afinal, tudo tem limite. Mas as experiências vividas longe da civilização me proporcionaram descobertas fantásticas sobre mim e o mundo selvagem ao qual renunciamos.

Logo que cheguei ao sítio percebi, rapidamente, o estrago que a distância da natureza havia feito comigo. Caminhando pelo terreno e contemplando alguns bichos, tive dificuldades para distinguir uma ovelha de uma cabra, assim como também não soube dizer o que eram tetas ou testículos em um desses animais. Mas com cavalos foi diferente, não tive grandes problemas. Inclusive, durante o meu refúgio, cheguei a montar um. Experiência fascinante. Parecíamos um só, era como se fôssemos da mesma família. Porém, apenas a mãe dele era uma égua, e que isso fique bem claro.

Com o equino devidamente selado (me refiro ao cavalo, não a mim), calcei as botas de vaqueiro e saltei no lombo do pobre. Confesso que demorei um pouco para descobrir qual das rédeas era o freio e qual era o acelerador. Depois, foi moleza. E quando percebi que para fazer o bicho disparar bastava dar umas batidinhas com os calcanhares e dizer “heyah, heyah”, aí então foi um sucesso. Cavalgando no meio da mata, com chapéu de cowboy, eu me sentia o próprio Clint Eastwood ou até mesmo o José Mayer, numa daquelas novelas de peão bruto. Mas minha investida equestre também trouxe consequências dolorosas. A falta de prática na montaria me deixou todo assado e com praticamente uma “gemada” entre as pernas. A cada galope, uma esmagada. Se é que vocês me entendem.

Outras situações da vida natureba também foram marcantes para mim, como a difícil convivência durante a noite com as muriçocas pré-históricas do sítio. Sim, porque com certeza elas pertenciam ao período Jurássico da Era Mesozóica, e não aos dias atuais. Eram dinossauros, sem a menor dúvida. Avalio que cada uma daquelas criaturas deveria medir pelo menos umas duas ou três polegadas, com ferrões do tamanho de uma seringa veterinária. Enquanto as muriçocas voavam ao meu redor, em busca de um local para picar, era possível ouvir não só o bater de suas asas como também o piscar de seus olhos. Quero cegar, se estiver mentindo. Cada “toc” que eu ouvia, era uma piscada que elas davam. Posso dizer, com toda segurança, que as bichas não picavam não. Elas mordiam mesmo. E não tinha repelente que resolvesse. A sorte da humanidade é que as muriçocas vivem apenas alguns meses. Se vivessem mais, dominavam o mundo.

Entretanto, a experiência mais reveladora que vivi nesse meu retorno ao estado de natureza selvagem foi, certamente, um rápido (mas intenso!) contato com um de nossos ancestrais primitivos. Já no final da manhã, um pouco antes do almoço, saí andando pelas redondezas do sítio em busca de árvores frutíferas. Na tentativa de encontrar uma boa fruta para um suco ou uma sobremesa, percorri alguns bananais e meio mundo de mato. Até que finalmente avistei um graúdo cajueiro, onde os cajus mais pareciam cocos, de tão grandes que eram. E que eu cegue do outro olho se estiver mentindo.

Levei um tempinho para subir na árvore, dadas as minhas condições físicas e ao fato de não existirem equipamentos apropriados, como uma escada, por exemplo. Agora, você veja o que é a civilização. Há uns dois milhões de anos, nossa espécie subia em árvores tão bem quanto qualquer chimpanzé. Hoje, sem uma forcinha da tecnologia, é uma complicação da peste. Acho que perdemos um pouco mais do que a liberdade quando nos afastamos do estado de natureza. Bom, enfim, o importante é que subi na árvore.

Eu já havia pego alguns cajus, mas fiquei hipnotizado por um bem grande e vermelho, quase no topo da árvore. Aí fui subindo um pouquinho mais, me pendurando aqui e acolá, quando ouvi uns guinchos e assobios. Instintivamente, me virei na direção do som e dei de cara com um terrível e ameaçador sagui. Ele estava a uma distância de mais ou menos uns cinco ou seis metros, o que não me impediu de perceber nos olhos do animal que minha presença não era bem-vinda ali.

- Opa, seu sagui! Então, assim, tô só passando pra pegar uns cajuzinhos. Na boa, na paz, sem conflito. – comecei a argumentar.

Mas o pequeno símio não quis conversa. Mostrou os dentinhos afiados e começou a guinchar e assobiar novamente. Aí eu também resolvi engrossar.

- Peraí, meu camaradinha. Não é assim não, hein! Tem que compartilhar as coisas, rapaz. Larga de ser egoísta. Só quero uns cajus e pronto.

Nisso, ele se enfureceu de vez e partiu na minha direção, pulando de galho em galho e guinchando com os dentes de fora. Dessa vez, quem não quis papo fui eu. Desci numa velocidade tão grande e desesperada que acabei me arranhando todinho pelo caminho, provando que o medo, em alguns casos, pode ser uma das mais poderosas forças motrizes do mundo. Foi uma cena ridícula, eu sei. Mas o fato humilhante já estava posto e era irrefutável. Eu havia levado uma carreira de um sagui, o menor de todos os primatas.

Durante dias, já de volta à civilização, fiquei pensando em todas as experiências vividas no meio da natureza selvagem, principalmente no episódio do pequeno macaco. Cheguei a duas conclusões. A primeira é a de que a ideia de propriedade privada está tão impregnada no mundo que acabou contaminando até um sagui potiguar. Do contrário, teria permitido a retirada de alguns cajus. A segunda, e talvez mais grotesca, diz respeito a minha reputação. Ter fugido da forma como fugi, diante das ameaças de um simples macaquinho, faz de mim um péssimo representante da raça humana, o que possivelmente acarretará no meu rebaixamento para outra categoria de mamíferos. Ou talvez algo pior.

Meu pai era quem tinha razão, quando muitas vezes me perguntou inconformado: “Você é um homem ou um rato?”. Sem comentários.

domingo, 7 de novembro de 2010

Sem saúde

Por João Paulo da Silva

Se você não é o Eike Batista, não é dono de banco, não acertou na loteria, vive de salário (principalmente se for o mínimo), é pobre ou está desempregado, então seja bem-vindo ao clube. Você e eu fazemos parte de um “seleto” grupo de milhões de brasileiros que não têm acesso aos serviços mais básicos para qualquer ser humano. Assim como numerosos outros companheiros, você e eu não temos direito a uma boa alimentação, a boas roupas, boa moradia, boa educação, boa saúde e um imenso etc., tão longo quanto a Muralha da China.

Quando não nos negam tudo, nos negam a qualidade de tudo. E isso só acontece porque você e eu, além de mais da metade do país, não temos dinheiro suficiente. Ou, na pior das hipóteses, não temos nem o suficiente. No Brasil e no mundo, a lógica do “pegue e pague” se impõe. Quem não tem como pagar fica à mercê do público. E o público, como se sabe, é sabotado pelos governos justamente para não funcionar e jogar você e eu nas mãos do privado, ou da privada.

Veja, por exemplo, o meu caso. Dia desses descobri, da pior forma possível, que eu tinha cálculo renal (popularmente conhecido como pedra nos rins). Tive uma crise dolorosa, mais parecia que estava parindo, e fui levado para um hospital público. Depois de um rápido exame de urina, o médico que me atendeu constatou o que a dor já havia anunciado. Em seguida, ele pediu um raio-x do abdômen para ver o tamanho do “problema” e decidir qual tratamento aplicar.

- Mas você vai ter que fazer na clínica particular aqui ao lado. A máquina do hospital está quebrada. – falou o médico.
- Quebrada? Há quanto tempo, doutor?
- Ah... deixa ver... 2, 3, 4, 5... ahhh... Bom, deixa pra lá. Há muito tempo.

Resultado? Novas consultas, exames e tratamento não puderam ser feitos no setor público. Meu cálculo renal não podia esperar seis meses por uma consulta especializada nem meu bolso aguentaria pagar novos exames particulares sempre que fossem solicitados. Mas não havia com o que se preocupar. Os planos de saúde já estavam de braços abertos, esperando por mim com todo carinho e atenção. E lá fui eu para o privado. Fiz um plano caro e tratei logo de marcar uma nova consulta. O médico passou uma bateria de exames, dos quais eu só pude fazer a metade. A outra parte, a carência do plano impedia. Mas isso eu só descobri na hora.

- Sinto muito, o plano do senhor ainda não permite a realização de raio-x do abdômen. – disse a atendente do laboratório.
- Como não?! Por quê?
- Porque a doença do senhor é preexistente. Ou seja, o senhor já tinha cálculo renal quando fez o plano.
- Mas é claro que eu já tinha! Só fiz o plano porque fiquei doente e a saúde pública não funciona, ora! Se não tivesse doente, não tinha feito o plano, cacete!
- Pois é, senhor. Nesse caso, por causa da carência do plano, o senhor só poderá fazer o raio-x do abdômen daqui a 24 meses. Mas o senhor já tem direito a raio-x do antebraço.
- E pra quê que eu quero raio-x do antebraço, moça?! Eu estou doente é dos rins!
- Infelizmente, só quando o plano de saúde completar 24 meses.
- Mas daqui a 24 meses eu não terei mais pedra nos rins, moça. Terei é o Everest nos rins! Isso é um absurdo! A gente paga a saúde privada porque a pública não funciona. Aí quando precisa usar o serviço privado, que já está pagando, não pode usar! Que loucura, meu Deus!
- Todo plano de saúde tem sua carência, senhor. É uma garantia financeira para as seguradoras.
- Garantia do quê?! De que eu não vou usar todos os serviços e depois dar um calote em vocês?!
- Exatamente.
- Ah! Então, agora eu sou caloteiro?! Era só o que me faltava.
- Acalme-se, senhor. Aceita uma água, um cafezinho?
- Aceito. Mas vão servir agora ou daqui a 24 meses?! Hein, hein!

Como não poderia ficar sem tratamento nenhum, procurei uma senhora que vende umas ervas no centro da cidade. Ela me vendeu uma planta para fazer um chá e disse que era tiro e queda contra cálculo renal. É um escândalo, eu sei. Mas se você não é pobre, não está desempregado, não vive de salário, e ainda por cima é o Eike Batista ou um banqueiro, então não precisa se preocupar. Essa não é a sua vida.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Presidente ou presidenta?

Por João Paulo da Silva

Eu poderia ter feito duas crônicas diferentes, uma para cada resultado da eleição. Mas me poupei do trabalho inútil e desgastante, já que é difícil escrever sobre diferenças entre iguais. Com Dilma ou Serra, os vencedores não seriam muitos. Nada mais do que um punhado de grandes empresários e alguns investidores de Nova Iorque. Aliás, estes têm sido os vencedores há muito tempo. A eleição de Dilma não impediu o retorno da direita ao poder. Por um motivo muito simples: a direita nunca saiu do poder. No Brasil, há oito anos a burguesia descobriu a melhor maneira de manter os trabalhadores quietos e continuar controlando o país. Trouxe o PT e sua principal liderança para o governo. Em troca, pediu que aquela história de esquerda, socialismo e luta de classes fosse deixada de lado. E foi.

Em oito anos, Lula foi um replay de Fernando Henrique. Só que mais “eficiente”. Fez os bancos e as empresas lucrarem mais do que na época dos tucanos, algo que o próprio presidente admite sem o menor constrangimento. Enquanto os lucros dos donos da festa cresciam quatro vezes mais com Lula do que com FHC, o salário mínimo crescia no mesmo ritmo daquele personagem dos Trapalhões, o Ananias. Ou, se preferirem, como gostam de fazer os trapaceiros na hora de repartir a riqueza: “quatro pra mim, meio pra você.”. Governar para todos onde as classes sociais têm interesses contrários só poderia dar nisso. Alguém tem que sair perdendo, ainda que pareça estar ganhando.

Os petistas dizem que a vitória de Dilma impediu a volta ao passado, que a vitória da ex-ministra fortalece o projeto da esquerda, que favorece a continuação das mudanças de Lula. Palavras e conceitos confundem, mas fatos e ações esclarecem. Governos de esquerda (ou dos trabalhadores, como quiserem) não enviam tropas militares para massacrar um povo de outro país, principalmente se este for o povo mais miserável das Américas. Governos de esquerda não pagam dívidas com banqueiros enquanto pessoas morrem em filas de hospitais públicos, sobretudo quando as dívidas já foram pagas uma dezena de vezes. Governos de trabalhadores não permitem demissões durante crises econômicas, não reduzem impostos para empresários e não doam R$ 370 bilhões para meia-dúzia de ricos em falência. Governos de trabalhadores não fazem reformas da previdência para dificultar a aposentadoria de quem passou a vida inteira trabalhando, muito menos vetam o fim de fatores previdenciários. Governos de esquerda não chamam latifundiários e usineiros de heróis, tampouco reprimem ocupações de terra e não fazem reforma agrária. Governos de esquerda não organizam mensalão nem mensalinho e não governam com corruptos, principalmente se eles forem Sarney, Collor e Renan Calheiros. Governos de trabalhadores não aceitam privatizações do patrimônio público, não fazem leilões de petróleo, nem dividem o pré-sal com empresas privadas. Governos de trabalhadores não permitem que um milhão de mulheres realizem abortos clandestinos e sem segurança todos os anos, correndo o risco de morrer ou ficar com seqüelas, ainda que isso incomode católicos e evangélicos. Governos de esquerda não chamam de distribuição de renda um programa que oferece apenas R$ 130,00 por mês para uma família inteira sobreviver. Governos de esquerda, depois de oito anos, não permitiriam a existência de mais de 50 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza, sobretudo num país que é a oitava maior economia do mundo.

Bom, de fato existe, sim, uma diferença entre Dilma e Serra. Ele seria presidente, ela será presidenta. E é só.

Obs.: Por problemas de preguiça crônica, o blog As Crônicas do João só fez sua postagem hoje, e não no domingo como de costume. Próximo domingo tudo volta ao normal.