domingo, 25 de julho de 2010

Assaltos

Por João Paulo da Silva

Há situações na vida que possuem propriedades interessantíssimas. Encruzilhadas cotidianas em que as pessoas acabam por demonstrar quem realmente são. Na cama, ao volante, na prática política... São todas ocasiões de grande revelação. Outro dia, porém, me deparei com uma situação que talvez seja a mais reveladora de todas. O assalto! Eis o instante em que a moral burguesa é ofendida. Eis o encontro do capitalismo com seu Frankenstein. O criador e a criatura. Cara a cara! O assalto oscila entre a celebração do ridículo e o extremismo da barbárie. Pelo menos em alguns casos.

I

Eram 18 horas. Eu voltava pra casa tranquilo. Quando subia a ladeira da Catedral de Maceió, fui abordado por dois sujeitos. Um baixinho e um magricela.
- E aí, bicho? Me arranja um dinheiro aí pra eu comer qualquer coisa. – falou o baixinho, tentando a via pacífica.
- Pô. Você me pegou num dia ruim. Tô sem nenhum. – respondi.
- Que mané “tô sem nenhum”, rapá! Passa logo pra cá o celular que tá no teu bolso. Se não passar, te dou uma facada! – falou o magricela, bem menos diplomático.

Era a primeira vez que eu estava sendo assaltado. Tentei manter a calma, mas confesso que quase me borrei todo.
- Calma aí, amigo. Vamos conversar. Essa não é a melhor maneira de resolver os problemas. – falei sentindo um nó nas tripas.
- Olha, é só você entregar o celular e nós te deixamos em paz. – argumentou o baixinho, visivelmente um sujeito com muito mais tato pra essas coisas. Simpatizei logo com ele.
- Pô, cara. Meu celular não. Te dou todo o dinheiro que tenho na carteira. Mas o celular não. Preciso dele pra trabalhar. – menti.

Os dois hesitaram. O magricela resolveu:
- Tá, tá, tá! Me dá logo esse dinheiro antes que eu te fure todo.
Mal sustentando as pernas, abri a carteira e entreguei os únicos R$ 5,00 que eu tinha.
- Que porra é essa, malandro?! Tá querendo me enrolar?! – disse o magricela.
- É tudo que tenho.
- Toma essa bosta de volta! Num quero não! Que que vou fazer cum cinco conto, rapá?! Passa logo o celular senão te encho de bala!
- Bala? Não era uma facada? – perguntei, meio sem entender.
Os dois trocaram olhares confusos.
- É... que... ahhh... bom, era uma facada. Mas agora vai ser uma bala. Mudança de planos, sabe? – adiantou-se a explicar o baixinho.
- É isso mesmo. Mudança de planos. Agora passa o celular, os cinco conto e esse tênis aí. – ordenou o magricela.
Não me contive.
- Ah, não! Assim não! – disse eu, já invocado e resolvido a me espalhar – Agora não vão levar mais nada não! Tão pensando o quê?! Não é assim não, cara! Ou uma coisa ou outra! Palhaçada!

Às vezes a pessoa tem que se impor. Continuei:
- Eu tô na mesma situação que vocês! Não podem levar minhas coisas. – menti de novo, dessa vez descaradamente. – Por que não vão roubar o Renan, o Lula e o Zé Dirceu?! Garanto que vocês terão cem anos de perdão.

Nesse instante, para meu alívio (nunca pensei que fosse dizer isso!), apareceu no topo da ladeira um policial. O militar perguntou:
- O que tá acontecendo aí?
- Né nada não! Né nada não! – gritaram os assaltantes.
- É sim, seu guarda! É sim! É um assalto! – disse eu desesperado.
O baixinho e o magricela puseram-se a correr, desaparecendo numa esquina.

Voltei pra casa com todos os meus pertences. Mas voltei com a moral burguesa ofendida. Esta experiência mostrou-se bastante reveladora para mim. É praticamente uma tragicomédia perceber a quantidade de mentira e descaramento que cada um de nós carrega ao longo da vida. Hoje, analisando minha reação durante o assalto, não consigo me olhar no espelho e não ver o FHC.

Sou um canalha.

II

Essa aconteceu com um ex-cunhado. Mesmo com sua vasta experiência em ser assaltado (umas dez vezes, eu acho), flagrou-se outra vez diante do nosso Frankenstein social. Já era tarde da noite. Ele voltava da escola apressado, e as ruas do centro da cidade estavam vazias.

O sujeito caminhava em sua direção, vindo da outra extremidade da rua. Meu ex-cunhado já sabia o que estava pra acontecer.
- Muito bem. Isso é um assalto! – disse o sujeito com uma arma apontada na direção da vítima.
- Ok. Estou acostumado. O que vai ser essa noite? – quis saber o assaltado.
- Passa logo a bolsa!
- Calma aí. Não é assim. Vamos negociar. Pra que você quer minha bolsa? Ela só tem livros. Pra que você vai querer meus livros?

O assaltante ficou pensativo. Concluiu:
- Tá. Beleza então. Não levo a bolsa. Mas me dá a carteira.
- Não. Também não é assim. Vamos negociar. Pra que você quer minha carteira? Só tem meus documentos. Pra que você quer meus documentos?

Nova reflexão do bandido, desta vez mais profunda.
- Olha, tudo bem. Não vou levar a carteira. Mas me passa pelo menos o dinheiro que está na carteira, né?
- Agora sim. Agora estamos começando a nos entender. Veja, tudo bem que nos assaltem. Mas que tenham o mínimo de critério. Você não acha?

Meu ex-cunhado tinha R$ 20,00 na carteira. Tirou apenas dez.
- Ah, não! Que que isso, maluco?! Tá querendo me passar a perna?! Deixa de doidice e me passa os outros dez que eu já vi daqui! Nada de trapacear. Fair play, brother. Fair play.
- Tá. Tá bom. Foi mal. – disse o ex-cunhado, entregando os outros dez.

Eu ia terminar o texto aqui. Mas preciso fazer uma reflexão. Só pra constar.

Olha, tenho certeza de que a situação não pode ficar pior. Chegamos ao ponto mais alto da civilização. Já estamos criando regras para o “bom” funcionamento da barbárie. O fair play da barbárie. De fato evoluímos. Não somos mais a sociedade de consumo, nem a sociedade da informação. Somos mesmo é a sociedade do vexame. Vou escrever uma tese sobre isso. Ah, vou!

segunda-feira, 19 de julho de 2010

A Copa que a África do Sul não viu

Por João Paulo da Silva

Mesmo depois de seu fim, a primeira Copa do Mundo de futebol realizada no continente negro ainda será assunto durante algum tempo. Mais pelas contradições do que pelos acertos e pelo espetáculo. Foi uma Copa ímpar, uma Copa dos paradoxos. Gerou-se muita expectativa em tudo. Na seleção brasileira e na sua imbatível superioridade, como de costume, mesmo com o Dunga; no belo futebol e nos gols espetaculares de craques mundiais; nos jogos emocionantes e disputadíssimos; no desenvolvimento econômico que o maior evento esportivo do mundo traria para a África do Sul. Desgraçadamente, nada disso foi visto. Um tolo engano, como uma profecia de araque. A Copa da África do Sul só não foi pior por causa do polvo vidente, das peripécias do Maradona à beira do gramado e da musa paraguaia Larissa Riquelme. O resto, futebolisticamente falando, foi lamentável.

Dunga e seu esquema tático burocrático conseguiram anular o talento dos craques brasileiros. Isso quando os próprios “craques” não se anulavam sozinhos. Muitas vezes parecia que a seleção mandava ofícios aos adversários solicitando permissão para atacar. Não fomos desclassificados pela Holanda porque esta era superior ao Brasil. Só caímos porque não voltamos para o segundo tempo contra os mecânicos holandeses. Dunga esqueceu-se de dizer aos seus meninos que no futebol joga-se, no mínimo, dois tempos de 45 minutos. E o pior de tudo (incompreensível, meu Deus do céu!): o que fazia o Felipe Melo naquela Copa?

Foi uma das copas mais chatas de se ver, na qual os pernas-de-pau da competição acharam logo um bode expiatório: a pobre da Jabulani. Quer dizer, também foi uma Copa desonesta. Quem não sabe jogar sempre põe a culpa na bola. A baixa média de gols não foi o resultado da existência de defesas intransponíveis. Mas da falta de talento, aliada ao futebol de resultado (salvo raras exceções). Grandes seleções, como Itália e Inglaterra, foram precocemente mandadas para casa, contrariando todas as previsões. Foi uma Copa tão incomum que a única seleção a não ser derrotada foi a Nova Zelândia, que nem sabe direito o que é futebol. Só tiro o meu chapéu para Gana e Uruguai. Pela força e habilidade. Sobre a final, não poderíamos esperar outra coisa. Mero reflexo do nível do mundial.

Entretanto, nada chamou mais minha atenção do que a bola nas costas que a África do Sul levou. O país da Copa esperava ver os craques, as jogadas, os gols. Enfim, a Copa. Mas não viu. Pior: para que a competição fosse possível, nos moldes da FIFA e dos grandes investidores, muitos sul-africanos precisaram perder suas casas. As famílias que viviam no local onde hoje é o Soccer City foram empurradas para barracos de zinco. Elas não viram a Copa. Os operários que ergueram os templos do futebol, ganhando pouco mais de R$ 1,00 por hora, também não viram o espetáculo. Os meninos pobres de Soweto, que sonham todos os dias em serem como os craques brasileiros, não chegaram nem perto. As pessoas que assistiram aos jogos dentro dos estádios eram, majoritariamente, brancas. O Apartheid acabou, mas a realidade de “cada macaco no seu galho” ainda permanece.

Propositalmente, a imprensa mundial relativizou a situação dos sul-africanos. “Tudo bem que vocês tenham recordes de aidéticos e de miseráveis, mas vocês têm a Copa! Sorriam!” Esse era o espírito.

Entretanto, a Copa do Mundo, que é o maior evento do mais popular esporte do planeta, não pôde ser vista pelo povo sul-africano. Se a FIFA, o governo e os empresários farão com o Brasil em 2014 o mesmo que fizeram com África do Sul, então devemos reivindicar pelo menos a construção de um grande estádio de futebol no lugar do Congresso Nacional e do Palácio do Planalto. É só uma sugestão.