domingo, 28 de fevereiro de 2010

No coletivo

Por João Paulo da Silva

Na literatura de Guimarães Rosa, o sertão é o mundo. Fantástico e absolutamente repleto de magia. Entretanto, na vida crua nossa de todos os dias o mundo é outra coisa. Onde o cotidiano corre sem freios e sem tempo para esperar por ninguém, o mundo é um coletivo. Não há deslumbramentos nem feitiços redentores. Lá, a vida não aceita ilusionismos. O coletivo é o mundo porque nele circulam pessoas reais. Gente que não usa black tie nem frequenta coberturas. Gente de carne e osso. Que não aparece nas revistas, nas colunas sociais nem nas telas do cinema. Gente que quase não é gente.

Os que circulam nos coletivos são os mesmos que fazem o mundo girar. Seres sem os quais a vida não seria possível. Homens e mulheres que movem a engrenagem em troca de mais um dia na vida. Pedreiros, garis, professores, técnicos de todos os tipos, vendedores, operários etc. São sombras disformes buscando, entre humilhações, a sobrevivência. E, pretensiosamente, talvez a felicidade. O coletivo é o mundo porque nele residem as tragédias humanas. Aquelas que não entram nos restaurantes, universidades e condomínios de luxo. Porque só dentro dos coletivos elas são aceitas.

No coletivo, sobem todos os dias inúmeras crianças vendendo balas. Muitas nem mesmo sabem falar direito, mas já foram obrigadas a aprender como se ganha o pão e se perde a infância. Dizem sempre as mesmas coisas, cantam sempre as mesmas canções ruins e imploram ajuda sempre em nome do mesmo Deus, que elas nem sonham não existir. Para boa parte delas, o futuro – se houver algum – será apenas a sensação daquilo que poderia ter sido. Aqui, a vida é uma tragédia de um ato só.

Na outra ponta do coletivo, em pé ou sentado, viaja um homem triste. Vai chegar em casa e dizer a mulher que agora faz parte das estatísticas do desemprego. Não. Ele não vai dizer isso. Ele não sabe o que são estatísticas porque não terminou nem mesmo o primeiro grau. Entretanto, sabe que não é preciso estudo para entender que, nesse mundo, sem emprego você morre de fome. É provável que ele não seja o único no coletivo a voltar desempregado para casa. Ninguém, no entanto, tem nada a ver com isso, não é mesmo? Que importa como os outros vivem ou deixam de viver?

Talvez as pessoas não saibam, mas no coletivo viajam alcoólatras, viciados, doentes contagiosos, mulheres que apanham do marido, aidéticos, miseráveis e famintos. Gente que acha que suas tragédias são só suas, íntimas, pessoais e intransferíveis, como cartões de crédito. Mal sabem elas que todas as tragédias humanas são tragédias públicas e coletivas. Muitas estão tão distraídas com o próprio sono e cansaço que não veem quando dois assaltantes entram no coletivo e levam tudo daqueles que já não tinham nada. É fim de mês. E nas bolsas havia salários recém recebidos.

As tragédias humanas dão origem a todo tipo de mal. E é dentro dos coletivos que elas trafegam, que elas se encontram, sem maquiagens nem magias. Duras, cruas e frias, como um ônibus coletivo. Mas você, claro, não tem nada a ver com isso.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Deus é muito complicado

Por João Paulo da Silva

O pai ajeitava o nó da gravata em frente ao espelho quando o filho, um pingo de gente, entrou no quarto e, disfarçadamente, sentou-se na beirada da cama. O pai já sabia que sempre que aquele moleque agia dessa maneira, entrando sorrateiramente no quarto, era porque alguma coisa o incomodava.
- O que é que há, guri?
- Estou com algumas dúvidas.

Sabia também que quando ele dizia que estava com algumas dúvidas era porque realmente havia algo lhe incomodando.
- Tudo bem. Vamos lá, pode perguntar.
- Pai, quem criou o homem?
- Bom, filho, acredita-se que tenha sido Deus.
- E como Ele é?
- Pra falar a verdade, eu não sei. Nunca nos encontramos pessoalmente. – riu levemente.
- E como é que o senhor sabe que Ele existe?
- Eu não sei. Eu só acredito. Não tenho outra explicação. – respondeu com desatenção.

O garoto estava intrigado. Resolveu perguntar de novo. Criança é um poço de curiosidades.
- Deus é homem ou mulher?
- Qual é cor do céu? – perguntou o pai.
- Ué?! É azul.
- Então Ele é homem. – o pai soltou uma risada.

Quanto mais respostas o pai dava, mais perguntas surgiam na cabeça do garoto.
- Deus é muito grande? – perguntou o moleque.
- É enorme, meu filho. Enorme. – respondeu o pai com uma expressão devota.
- Maior do que eu?
- Bem maior!
- Maior do que o senhor?
- Mil vezes maior!
- Maior do que um navio?
- Sem comparação. É gigantesco!
- E onde é que Ele mora?
- Veja, muitos dizem que Ele mora no céu, mas eu acho que Ele vive mesmo é dentro da gente.

O garoto ficou pensativo, parecia estar mais intrigado do que antes. Perguntou categoricamente:
- Se Ele é tão grande assim, como pode caber dentro da gente?
Pronto! Estava armada a confusão. O pai sentiu que a situação exigia um pouco mais de atenção. Sentou-se na beirada da cama ao lado do filho e falou como quem domina o assunto:
- Veja bem, filho, essa é uma questão muito complicada.
- Por quê?
- Porque Deus não é de carne e osso. Ele é espírito, não matéria.
- Ah! – fez o garoto, ainda sem entender.
- Deu pra entender?
- Mais ou menos.
- Eu sei. É complicado mesmo. Mais alguma pergunta?
- Sim. Quem criou Deus?

O garoto já estava pegando pesado. O pai pensou um pouco antes de responder.
- Ouça, na verdade foi o homem quem criou Deus.
Era o fim da picada. Se antes o garoto estava com dificuldade pra entender, imagina agora.
- Mas como é que pode? Não foi Deus quem criou o homem?
- Foi. Quer dizer, não foi. Foi, mas não foi.
- Tá ficando muito complicado, pai.
O pai pensou um pouco e finalmente disse:
- Olhe, o que eu quero dizer é que o homem imagina ter sido criado por Deus. Ele não tem certeza. É apenas uma suposição. A verdade é que a maioria dos homens não tem uma explicação “lógica” para a sua existência, por isso eles acreditam terem sido criados por Deus. Deus é uma projeção daquilo que o homem não é, entendeu?
- Mais ou menos.

Houve um breve silêncio. O garoto perguntou:
- Pai, e o que é que o homem não é?
O pai coçou a cabeça e respondeu meio desanimado:
- Humano, meu filho. Humano. Mas isso já é uma outra história ainda mais complicada. Vai brincar que é melhor.
E lá se foi o garoto. Sem respostas.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

O comunista

Por João Paulo da Silva

A vida de Antônio poderia ser normal e tranquila, como a de uma parte da sociedade, não fosse por um grande trauma que o marcou para sempre.



Antônio nasceu no ano de 1951, uma época conturbada, principalmente para uma criança. Mas seria apenas às vésperas do Golpe Militar de 64 que ele veria sua vida mudar. Antônio cresceu em meio às disputas ideológicas entre capitalistas e comunistas, o mundo vivia uma polarização imensa. Vivia a tal da Guerra Fria, que para alguns desavisados nada mais foi do que um bate boca entre potências.

A campanha norte-americana contra o comunismo era extremamente estapafúrdia, um ultraje à racionalidade. Mas a humanidade nunca foi muito racional mesmo. Você já deve ter ouvido que os comunistas eram conhecidos como “os comedores de criancinhas”. Que absurdo! No máximo eles poderiam comer os capitalistas e ainda teriam uma baita de uma indigestão! A verdade é que, naquela época, os comunistas estavam sendo caçados como baratas. Foi sem dúvida uma briga de foice. Aliás, de foice e martelo.

As ruas estavam repletas de cartazes anticomunismo. Alguns deles traziam a seguinte imagem: um brutamontes chicoteando um camponês inocente. Essa era a idéia que se tinha.

O Golpe Militar estava prestes a estourar, havia um clima de contradições entre os intelectuais. Alguns diziam:
- Os militares vão tomar o poder. Vai ser o fim!
- Isso irá impulsionar a nossa economia.
- Será uma ótima alternativa.

Antônio não entendia nada do que estava acontecendo no mundo, seu universo era recheado apenas por filmes do Zorro e gibis do Tex. Às vezes ele ouvia o Seu Godofredo, o vizinho caduco, gritando na rua:
- Matem estes comunas filhos do cão!

Antônio não entendia nada mesmo. Só tinha certeza de uma coisa. O mundo estava ficando como o Seu Godofredo, caduco.
Nunca passou pela cabeça do pobre menino que ele sofreria um trauma tão grande e irreversível como o que sofrera na escola. Ele tinha treze anos. E os anos de chumbo já estavam batendo à porta.

O recreio já havia terminado, mas alguns alunos ainda brincavam e corriam dentro da sala de aula. Antônio era um deles. A professora não estava na sala e a algazarra continuava. Foi aí que Antônio, acidentalmente, quebrou uma carteira. Fez-se um silêncio sepulcral, estavam todos apreensivos. Começaram a correr para seus lugares, pois a professora estava subindo as escadas. Antônio foi um dos primeiros a se sentar. A professora entrou na sala desconfiada e rapidamente notou o ocorrido, então ela disse:
- Quem quebrou esta carteira?
A turma estava em silêncio. Ninguém abriu a boca para dizer nada. A professora falou de novo:
- Ninguém vai se acusar? Então eu vou chamar o Dr. Bulhões.

O Dr. Bulhões era o inspetor de disciplina. Um homem demasiadamente cruel e carrasco, todos o temiam por sua famosa malevolência. O curioso é que todos os inspetores são iguais, todos eles são carecas e bigodudos.

Instantes depois, o homem mau da escola estava na sala. Com um ar autoritário e uma aparência de general, ele falou:
- Muito bem, quem foi o pestinha responsável por este ato subversivo? – tinha a sobrancelha direita erguida e a boca numa expressão semelhante a de um sorriso irônico.
O silêncio era absoluto. As crianças tinham os olhos arregalados, o medo estava visivelmente exposto em seus rostinhos inocentes. O inspetor, vendo que não arrancaria confissão nenhuma, ameaçou:
- A turma toda irá ficar até mais tarde se o culpado não aparecer. Só vão sair quando eu pegar o marginal. Acreditem, eu tenho todo o tempo do mundo. – a voz do Dr. Bulhões era de uma sonoridade metálica.

Antônio sentia a voz do inspetor lhe martelando nos nervos, aquele homem carregava na face um aspecto de ditador. Seus olhos fuzilavam a turma, eram olhos oblíquos e hostis. O tempo passava e Antônio precisava tomar uma decisão. Não podia deixar que todos os alunos sofressem as consequências do seu ato, mas a idéia de ficar até tarde na escola em companhia daquele “monstro” era aterrorizante. Foi aí que Antônio ouviu o Fernandinho, o garoto da carteira ao lado, murmurar:
- Tonho... ô Tonho...
- Hum...
- Se você não se entregar, eu mesmo te entrego.
Não havia mais escolha, estava tudo acabado. Ia se acusar, fosse o que Deus quisesse. Começou a erguer, timidamente, a mão. O inspetor o mirou com um olhar de êxito de caçador e disse:
- Antônio! Venha aqui na frente para que todos possam vê-lo. – o homem falava pausadamente, pronunciando bem cada palavra.

Antônio caminhava cabisbaixo, tinha o rosto vermelho de vergonha. Teve a sensação de estar caminhando no corredor da morte. Parou e se pôs ao lado do inspetor. Subitamente, o Dr. Bulhões agarrou-lhe a orelha e a torceu com força. Antônio soltou um grito. Bulhões tinha uma expressão enérgica no rosto. As crianças olhavam assustadas, o inspetor explodiu em gritos:
- Estão vendo isto?! Isto é um comunista! – Antônio estava com lágrimas nos olhos, não fazia idéia do que pudesse ser um comunista. Nem mesmo o inspetor sabia.

Antônio ficou de castigo na escola até tarde. Chegou em casa algumas horas após o meio-dia. Sua mãe já o esperava na porta. Com voz preocupada, ela perguntou:
- O que foi que aconteceu, meu filho? Por que demorou tanto?
- Eu fiquei de castigo por ter quebrado uma carteira. Juro que foi um acidente.
- E o que foi que disseram?
- O inspetor disse que eu era um comunista. – Antônio disse isso com a cabeça baixa.
- Meu filho, mas o que é um comunista? – perguntou a mãe de Antônio com ingenuidade.
- Eu não sei direito, mamãe. Deve ser alguém que quebra carteiras das escolas.