domingo, 25 de dezembro de 2011

Ideia para uma história de Natal

Por João Paulo da Silva

É noite. E Papai Noel viaja em seu trenó da Lapônia até o Brasil, puxado por suas renas. Pousa com segurança no telhado de uma casa e, cuidadosamente, entra pela janela. Uma vez dentro, dá de cara com o Robertinho e a Jandira.
- Papai Noel! Você veio de verdade. – falam as crianças magricelas.
- Pois é, garotada. Mas não posso demorar muito. Agora deixa eu ver aqui o que foi que vocês me pediram.


domingo, 18 de dezembro de 2011

Prefácio

(O texto abaixo trata-se do prefácio que escrevi para um recente livro - Crônicas do Nova Natal - publicado por jovens cronistas, alunos da professora Amanda Gurgel, sobre situações vividas no bairro em que eles moram e estudam: o Nova Natal, na Zona Norte da capital do Rio Grande do Norte. Foi um grande prazer escrevê-lo. Agora, é um grande prazer publicá-lo aqui em meu blog.)

O escritor Ariano Suassuna costuma dizer que “a literatura é uma forma de protestar contra a morte”. Gosto de citar essa frase sempre que me perguntam por que escrevo. Se existir é doloroso, abandonar a vida sem deixar registros deve ser ainda mais. Há outras razões que levam as pessoas a escreverem, claro. Mas, ao que me parece, o escritor também escreve para ser lembrado. Não necessariamente por um exercício de vaidade, e sim porque acredita que todo mundo deve passar pela vida e marcar suas digitais na história. Na verdade, quem escreve tem medo do esquecimento. E a morte não deixa de ser uma forma de ser esquecido. Por isso, escrever e fazer literatura, além de serem artes, são também maneiras de impedirmos que as pessoas se esqueçam de nós e do mundo que as cerca.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Dando corda ao relógio do mundo

Por João Paulo da Silva

Tem uma frase do poeta Mário Quintana que diz: “Os que fazem amor não estão fazendo apenas amor: estão dando corda ao relógio do mundo.”. A chegada do pequeno João Gabriel na minha vida me fez pensar bastante sobre a questão. Quem deixa uma vida nestas terras deixa mais do que simplesmente um ser com identidade genética e semelhanças físicas. Deixa uma marca. Um desígnio de humanidade. Ter um filho é ter a chance de ser alguém melhor. Mas criar um filho é mais bonito. É experimentar a possibilidade de continuar existindo nos sonhos das gerações seguintes. Por inúmeras razões, muitas crianças são geradas sem nenhum tipo de sentimento de amor. Vem ao mundo e pronto. Na adoção, não. É um pouco diferente. Gerar não é o que define. Cuidar, criar e formar. Isso é o que basta. Adotar um filho é necessariamente um ato de amor. O pequeno João Gabriel é o meu.

domingo, 13 de novembro de 2011

Coçadinha

Por João Paulo da Silva

Quando temos febre, é sinal de que as coisas não andam muito bem. Podemos estar doentes. Há em nossa sociedade uma febre. Você já deve ter notado (se ainda não notou é porque é um tapado!) que somos vigiados em todos os lugares. As câmeras estão por toda parte. Quer dizer, por quase toda parte. O banheiro ainda é a última trincheira da privacidade. Mas o fato é que tem sempre alguém bisbilhotando a gente através das lentes das câmeras. Aquela história de que estão nos filmando para a nossa própria segurança é pior do que conto da carochinha. A única segurança que importa não é a nossa, é a das mercadorias que não podem ser roubadas. Nossa sociedade aprofundou de tal forma a desigualdade entre os homens que precisa vigiar a si mesma, em praticamente todas as situações. Este é apenas um dos sinais de nossa doença, os outros são ainda mais cruéis.

domingo, 6 de novembro de 2011

Profissão

Por João Paulo da Silva

- O que o filhinho do papai vai ser quando crescer?

Praticamente todas as crianças escutaram ou escutam essa pergunta de seus pais. O problema é que não se trata de uma mera pergunta. É um pacote completo. Já vem até com a respo
sta. Parece haver uma vontade tácita em alguns pais de se verem realizados nos próprios filhos. Desejam que seus filhos tenham a vida profissional que eles não tiveram. E nisso consiste parte de nossas frustrações.

domingo, 30 de outubro de 2011

“Mandrake”

Por João Paulo da Silva

A gente sempre acha que já viu de tudo nessa vida. E é aí que mora o perigo. Na maioria das vezes, subestimamos a cota de bizarrices que cada um de nós possui. Certo professor de Língua Portuguesa, na tentativa de ganhar a simpatia de seus alunos, resolveu entrar numa popular brincadeira proposta pela turma da 6ª série. Se você foi uma criança normal, com certeza já brincou de “Mandrake”. Não lembra? É simples. Quem estiver brincando, precisa ficar o tempo todo com os dedos de uma das mãos cruzados. Do contrário, se alguém disser “Mandrake”, o participante que foi pego com os dedos descruzados não poderá se mexer até receber permissão.

Na ânsia de conseguir a confiança dos alunos, o professor entrou na brincadeira. Só teve um problema: ele levou tudo a sério demais. Dava aula com os dedos cruzados, escrevia no quadro com os dedos cruzados, corrigia as atividades da turma com os dedos cruzados. Tudo isso para não ser pego no “Mandrake”. Passou uma semana, e a brincadeira persistia. Nem ele nem os alunos se descuidavam.

domingo, 23 de outubro de 2011

Sobre cheiros, músicas e outras coisas

Por João Paulo da Silva

É engraçado como um sentimento nostálgico vai tomando conta da gente com o passar do tempo. À medida que nos afastamos do passado, começamos a sentir saudades de uma porção de coisas. Os amigos, o primeiro carrinho, a primeira namorada, os pais que se foram... Tudo. Tudo um dia faz falta.

As melhores definições sempre foram dadas pelos poetas. Mario Quintana definiu bem aquele aperto no peito que sentimos diante do passado: “A recordação é uma cadeira de balanço embalando sozinha”. A tecnologia nos permitiu registrar o tempo em pixels, mas não conseguiu evitar que ele nos escapasse por entre os dedos. Afinal, não podemos voltar.

domingo, 16 de outubro de 2011

Invenções

Por João Paulo da Silva

Fico intrigado com a engenhosidade humana quando observo tudo o que inventamos até hoje, seja para satisfazer as necessidades mais básicas ou mesmo as mais estapafúrdias. Incrível essa capacidade do homem de modificar o ambiente em benefício próprio, criando objetos que não existiam antes de precisarmos deles. E o mais curioso: depois dos muitos inventos e melhoramentos que fizemos em nosso planeta, a vida tornou-se praticamente impensável sem eles. Nos primórdios da humanidade, por exemplo, quando mal tínhamos descido das árvores e a sobrevivência era ainda mais difícil do que é hoje (mas pelo menos não havia imposto de renda), o homem das cavernas enfrentou sérias dificuldades para poder abrir um simples coco. Batia numa pedra ali, batia em outra acolá. E nada. Até que resolveu colocar seu cérebro primitivo para funcionar. Uniu um toco de madeira a um pedaço de pedra lascada, amarrou os dois com cipó e... “Voilà!”. Surgia o primeiro machado da História, e nunca mais tomar água de coco foi um martírio. Melhor do que o machado para abrir coco só mesmo o vendedor de água de coco. Facilitou ainda mais a vida. Mas o importante é que, depois de nossa primeira invenção, não paramos mais. A cada nova necessidade, uma nova criação. E estamos assim até hoje.

domingo, 9 de outubro de 2011

Por um sorvete

Por João Paulo da Silva

A hostilidade do mundo quase sempre nos obriga a viver numa sufocante solidão. Vivemos como a última gota de uma cachaça barata na garrafa de um Deus mendigo, onde constantemente nos encontramos perdidos e sós, mesmo cercados por algumas centenas de pessoas.

É com tristeza que percebo o quanto o homem se afasta de si mesmo, se distanciando da essência da condição humana, numa crise de identidade que o levará para o vácuo das gargantas dos próprios demônios. Dia desses, contra minha vontade, pude comprovar o que digo hoje.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Agora sim!

Por João Paulo da Silva

Dessa vez foi pra valer. Não houve engano. Sem essa de me confundirem com outro escritor. Eu fui eu mesmo de verdade, para mim e para os outros. Estava ficando famoso realmente. O prelúdio da fama havia chegado e ninguém poderia me roubar esse momento. Finalmente eu possuía mais leitores do que os habituais seis fãs que lêem as minhas crônicas periodicamente, contando já com meus pais e meus dois irmãos. De certa forma eu até desconfiava que o reconhecimento fosse só uma questão de tempo. O problema era a quantidade de tempo. Felizmente, o começo tímido do sucesso chegou antes da morte, o que já é um consolo. Graças a um projeto da professora Amanda Gurgel, fui chamado para um bate-papo sobre o “ofício do cronista” com alunos do ensino médio, numa das escolas onde a educadora mais famosa do país na atualidade leciona.

domingo, 18 de setembro de 2011

Canibal

Por João Paulo da Silva

Você não sabe o que é voltar para casa todos os dias com uma dúvida lhe devorando o juízo.

Ele sobe as escadas sentindo o cheiro forte do alho que vem da cozinha. Da cozinha do seu apartamento. Para diante da porta, gira a chave, torce a maçaneta e, antes de abrir, pensa meio perturbado:
- É hoje. Só pode ser hoje.

domingo, 4 de setembro de 2011

De onde vem os bebês?

Por João Paulo da Silva

A Júlia tinha acabado de completar cinco anos. Uma gracinha, a garota. Super esperta, inteligente, atenta a tudo e a todos, até muito sagaz para a idade e, para o terror dos pais, questionadora ao extremo. Em geral, fazia mais perguntas do que um agente da CIA durante um interrogatório. Estava naquele momento da curiosidade excessiva pelo qual, normalmente, toda criança passa. Tudo indicava, porém, que com a Júlia as coisas eram um pouco diferentes, digamos, meio exageradas. Perguntas feitas por crianças são muitas vezes saudáveis, pois também são através delas que os pequeninos vão descobrindo o mundo. Afinal, é da dúvida que nasce a luz. “Ou as trevas.”, como diria o Roberto, o pai da garota, numa discussão com a esposa, logo depois de mais uma perigosa sessão de perguntas da filha.

domingo, 21 de agosto de 2011

Sinal de Deus

Por João Paulo da Silva

Histórias existem aos montes. Relatos de que Deus envia mensagens cifradas para alertar os humanos sobre coisas que estão prestes a acontecer são muito comuns. Gente que diz, por exemplo, que o atraso por causa de um pneu furado a caminho do aeroporto foi um sinal de Deus para não entrar no avião, que cairia pouco depois de decolar. Coisas desse tipo alimentam os mitos da existência de forças incontroláveis que governam o mundo. Mas o fato é que estes “sinais” nem sempre são muito claros, o que dificulta muitas vezes a compreensão. Um amigo meu, mistura de cético com gozador, tem uma tia beata que acredita nessas crendices. Na oportunidade certa, ele não perdeu a chance de sacaneá-la.

domingo, 14 de agosto de 2011

Você sabe com quem tá falando?!

Por João Paulo da Silva

Dia desses me chegou uma história daquelas. Caso impressionante e “cabeludíssimo”, como se diz na minha terra. Daqueles que contando ninguém acredita, mesmo quando o acontecido é narrado pela própria mãe da gente, que é a coisa mais sagrada do mundo. Trata-se de uma situação na qual fica meio impossível afirmar se tudo foi realmente verdade ou se não passou de uma grande mentira. Tanto é assim que estou na corda bamba do agnosticismo até agora. É uma história sobre coragem e inteligência, ou sobre covardia e burrice. Depende muito do ponto de vista. Você, leitor, é quem vai dizer. Vá vendo aí.

domingo, 7 de agosto de 2011

Arte? Eu hein!

Por João Paulo da Silva

Depois de muita insistência, resolvi aceitar o convite de minha irmã para ver um festival de performances artísticas, realizado por jovens atores de vários estados do Nordeste brasileiro. Segundo ela, seria algo bem underground e experimental, algo que exploraria o íntimo e as sensações corpóreas dos presentes. Na hora, pensei: “Isso só pode ter safadeza no meio. Que negócio é esse de explorar o íntimo do corpo dos outros, rapaz?!”. Prometi a minha irmã que só daria uma olhada no dia em que ela fosse se apresentar, pois estava curioso para vê-la atuando depois que iniciou o curso de teatro. O festival durou toda uma semana, e minha resistência em ver as outras apresentações era fruto exatamente dos relatos que recebi sobre as primeiras performances.

domingo, 31 de julho de 2011

Enfim, a fama

Por João Paulo da Silva

Tinha dúvidas de que ela um dia realmente fosse chegar. Ainda mais sendo eu um sujeito desprovido de nome artístico. Afinal, assino minhas crônicas como João Paulo da Silva, nome bastante comum escolhido por meus pais. E, convenhamos, ninguém pode ficar famoso com um nome desses, a não ser que você seja o Papa. Não que seja feio. Ao contrário, acho o nome até bonito. Mas é diferente de assinar como Luis Fernando Veríssimo, Carlos Drummond de Andrade, Graciliano Ramos, Pablo Neruda, T.S Elliot, etc etc etc. Sempre achei que parte da popularidade de um escritor vinha do nome. Artista tem que ter nome de impacto. Se uma parte dos leitores compra livros por causa da capa, outra parte deve comprar pelo nome do autor. Óbvio que o mais importante é o conteúdo da obra, e que muitas pessoas buscam a sinopse antes de qualquer coisa. Entretanto, o nome devia ter alguma influência no sucesso ou fracasso de um escritor. Bom, era o que eu pensava até bem pouco tempo, quando tive meu primeiro encontro com ela. Aquela doce e cruel senhora de quem todo mundo deseja tirar uma lasquinha. Enfim, encontrei a fama. Contrariando todas as previsões.

domingo, 24 de julho de 2011

Esse tal de mercado

Por João Paulo da Silva

Era uma bela manhã de sábado. Eu estava assistindo ao futebol de areia pela televisão quando minha mulher gritou da cozinha:
- Querido, venha cá!

Levantei-me com relutância. O jogo estava emocionante e eu não queria perder nenhum lance.
- O que foi, meu amor? – eu disse.
- Querido, eu estou querendo fazer uma macarronada, mas não temos massa de tomate. Você poderia ir comprar?
- Logo agora que estamos metendo três na seleção de Portugal?! Não pode deixar isso pra depois?!
- Não! Tem que ser agora!
- Tá. Tudo bem. Eu vou.

domingo, 3 de julho de 2011

Seu Neco e o Apocalipse

Por João Paulo da Silva

Conheci o Seu Neco quando eu ainda era menino. Ninguém sabe ao certo o dia ou o ano em que o homem chegou ao lugar – uma periferia lá pelas bandas de Maceió. Todo mundo diz a mesma coisa:
- Sei não. Quando cheguei, ele já morava aqui.

Até a Dona Zefa, que vive há oitenta e oito anos na região, chegou ao bairro e o Seu Neco já estava pelas redondezas. E – pasmem! – já era homem feito. A idade do sujeito permanece uma incógnita, nunca descobriram. Seu Neco é bastante conhecido entre as pessoas da comunidade, os moradores admiram a sua sabedoria popular e encontram nele resposta para qualquer problema.

domingo, 26 de junho de 2011

Quem te viu, quem te vê!

Por João Paulo da Silva

Tudo começou na Antiguidade. Para os povos desse período, junho era um mês especial. A primavera chegava ao fim e o verão se aproximava. E, com a nova estação, dias mais longos e quentes. Provavelmente eles não sabiam, mas era o solstício de verão: época ideal para o plantio. Sem ciência que explicasse o funcionamento do universo, os antigos atribuíam as alterações climáticas (dias quentes e ensolarados etc.) aos deuses. Daí o costume de promover festejos para “garantir” a boa vontade das divindades pelos próximos períodos. Os antigos também não sabiam. Mas provavelmente foram os primeiros puxa-sacos da História.

A festa junina só ficou mesmo mais parecida com o que nós conhecemos hoje quando a Igreja Católica meteu o bedelho. A antiga comemoração relacionada ao solstício de verão, celebrada no dia 24 de junho, era uma celebração pagã. Durante a Idade Média, a Igreja, estendendo ainda mais seus tentáculos sobre as pessoas, caçou os festejos pagãos e os transformou em rituais e mitos cristãos, tratando logo de meter um de seus santos no meio disso tudo. São João Batista era o nome do sujeito. E a comemoração ficou conhecida como festa joanina, o famoso São João. Quando os portugueses chegaram aqui com essa história, a geografia do local, o calor dos trópicos e a mistura que deu origem ao povo brasileiro se encarregaram dos últimos retoques. Inclusive a mudança do nome para festa junina.

Hoje também já não é como antes. Nas cidades, já não é mais tão comum encontrar comemorações juninas tradicionais. As bandas de forró eletrônico, estilizadas ou de plástico, com letras machistas e homofóbicas, estão cada vez mais presentes nas festas organizadas para o povão dos bairros periféricos. Isso para não falar dos outros “gêneros musicais” que aparecem de penetras. Embora algumas coisas permaneçam iguais, como as comidas típicas, por exemplo, outras começam a se perder. São poucos os trios de forró nas grandes festas. Sinto falta do zabumba, do triângulo e da sanfona. O palhoção mesmo está desaparecendo. Esse ano a comunidade do meu bairro não fez nenhum. Tá. Tudo bem. Ainda soltam fogos de artifício e acendem fogueiras. Mas não é a mesma coisa. Sei que algumas comunidades resistem. Mas... sei lá. Algo de mágico se foi. Devem ser os efeitos da pós-modernidade.

Êita, festa junina. Quem te viu, quem te vê. Até as quadrilhas perderam fôlego. Atualmente, as que ganham mais notoriedade são as existentes no Congresso Nacional. É outro tipo de quadrilha, claro. Mas com direito até a forrobodó. Forrobodó como sinônimo de desordem, evidentemente.

domingo, 19 de junho de 2011

Obsoletos

Por João Paulo da Silva

Uma pesquisa publicada recentemente na revista Nature trouxe uma revelação importante sobre o papel social das mulheres na pré-história e em nossos dias atuais. A análise de paleontólogos da Colorado University Boulder, nos Estados Unidos, indica que as fêmeas das espécies Australopithecus africanus e Paranthropus robustus, que viveram há mais de um milhão de anos, no sul da savana africana, passavam a maior parte do tempo caçando, enquanto os machos ficavam em casa lavando os pratos. Os pesquisadores chegaram a esta conclusão graças a um estudo realizado com 19 dentes que pertenceram a estes nossos parentes mais peludos. A observação aponta que mais da metade dos dentes femininos foi encontrado longe do local onde viviam as espécies, contra apenas 10% dos dentes dos homens, o que sugere que a macharada vivia cuidando do lar e as fêmeas saiam para conseguir comida.

Todas as pesquisas honestas que se debruçam sobre existência da vida humana na Terra caminham no sentido de mostrar que, antes da civilização, da propriedade privada e do casamento monogâmico, não havia essa conversa mole de “trabalho de homem” ou “trabalho de mulher”. As mulheres nem sempre dependeram dos homens, como gostam de afirmar os defensores do machismo. Mesmo porque essa propalada dependência foi imposta logo depois que os homens surrupiaram boa parte das invenções e descobertas das mulheres. Se observarmos atentamente a história, perceberemos um fato: em casa ou na rua, foram elas que começaram a longa jornada que arrastou a humanidade até aqui.

Eu já sabia que tinham sido as mulheres as responsáveis pelo desenvolvimento da cerâmica, da curtição de peles, da tecelagem e da construção de habitações. Até as primeiras experiências da botânica, da química e da medicina começaram com elas. A mesma coisa com a colheita de frutos, o cultivo da terra e a domesticação de animais, entre eles o próprio homem. Entretanto, agora, com esta novidade sobre as mulheres caçadoras, estou ainda mais convicto de que elas possuem condições de atuar em todas as áreas de atividades humanas. Mesmo com o capitalismo barateando a mão de obra feminina para nos explorar cada vez mais, é inegável que as mulheres estão ocupando profissões e espaços antes dedicados exclusivamente ao sexo masculino. Inclusive, o número de famílias chefiadas por elas tem aumentado bastante.

Mas por que estou fazendo todo esse preâmbulo? Já me explico. Considerando que as mulheres assinam a obra social de praticamente toda a pré-história e que, nas últimas décadas, depois de milênios de opressão e exclusão, elas reiniciam sua jornada em busca da igualdade, eu sou obrigado a aceitar que nós, homens, estamos obsoletos. Nem mesmo para ter filhos e prazer as mulheres precisam mais de nós. Hoje, a ciência e uma infinidade de “brinquedinhos” sexuais já dão um jeito nisso. Durante muito tempo, acreditamos cegamente que elas sempre necessitariam de nossas habilidades para realizar as tarefas mais pesadas, como matar baratas e instalar a antena parabólica. Entretanto, acabei descobrindo, da pior forma possível, que perdemos totalmente a utilidade.

Era domingo. Em casa, eu e minha companheira aproveitávamos o dia de folga. Estávamos deitados no sofá vendo TV, quando ela falou:
- Tô com um pouco de fome. Acho que vou pegar alguma coisa pra comer na cozinha.

Instantes depois, ela voltou com um pote de azeitonas aberto. Espantado, perguntei:
- Você abriu isso sozinha?!
- Abri.
- Como assim “abri”?! Por que não me chamou?!
- Porque não foi preciso. Eu mesma abri, ué! Pode ser?!

Aquilo me deixou abatido e me fez pensar seriamente no futuro sombrio que nos espera. O que será do gênero masculino se, por exemplo, não pudermos mais abrir potes de azeitonas?! É uma triste constatação, eu sei. Estamos ficando cada vez mais obsoletos. Mulheres, eu vos imploro! Tomem o mundo, mas nos deixem ao menos trocar as lâmpadas.

domingo, 12 de junho de 2011

Heróis e vilões

Por João Paulo da Silva

A maioria de vocês, assim como eu, provavelmente acompanhou nos gibis ou nos cinemas as aventuras de conhecidos super-heróis, imortalizados pela cultura pop, como Homem-Aranha, Super-Homem, Capitão América, X-Men etc etc etc. Gente que utiliza super poderes para salvar vidas, impedir o fim do mundo e lutar por justiça e liberdade. Gente que pode voar, desviar de balas, escalar paredes com as próprias mãos e levantar toneladas. Longe da ficção e da fantasia, essa gente não existe. Na vida real, os heróis são outros. São de carne e osso, sangram, pagam contas, recebem salários de fome, andam em ônibus lotados e passam horas em filas de hospitais. Mas, entre os personagens dos gibis e os humanos da realidade, existe ao menos uma semelhança: todos eles possuem terríveis vilões para enfrentar.

No universo das histórias em quadrinhos, os inimigos querem dominar o planeta, fazer experimentos perigosos e mirabolantes e espalhar maldade por todos os lados. No mundo real, é um pouco diferente, mas não menos terrível. Os vilões já controlam o mundo, através de bancos, grandes empresas, latifúndios e governos opressores. Exploram o trabalho da maioria dos povos e fazem guerras para garantir lucros altos. Com uma ganância sem limites, os inimigos da vida concreta ainda cortam verbas dos serviços públicos essenciais, só para alcançar um superávit primário maior e encher cada vez mais os próprios bolsos de dinheiro. O desemprego, a fome, a miséria e a violência são as consequências que vêm com os atos dos verdadeiros vilões.

Assim como os super-heróis dos gibis, os heróis de carne e osso também lutam todos os dias. Lutam para salvar vidas de incêndios, lutam para salvar vidas em hospitais, lutam para guiar vidas nas salas de aula e lutam pela própria sobrevivência. Mas quando estes heróis decidem lutar cruzando os braços em defesa de melhores salários e condições de trabalho, os vilões da História, da mesma forma como nos gibis, respondem com ações inescrupulosas e violentas. Chamam os mocinhos de vândalos, bandidos e delinquentes, além de convocar a polícia para reprimir.

No entanto, igualando-se aos super-heróis das histórias em quadrinhos, os heróis que sangram e recebem salários de fome também resistem e enfrentam seus inimigos. Às vezes perdem, às vezes ganham. Mas sempre retiram lições importantes de suas batalhas. Descobrem que, ao contrário dos super-heróis dos gibis, eles não podem vencer seus próprios vilões sozinhos. Precisam estar juntos, unidos como um time, um grupo, uma liga, uma classe.

Os bombeiros do Rio de Janeiro e todos os trabalhadores que fazem greves neste país e enfrentam seus inimigos mostraram ao mundo que é possível lutar, que é possível vencer. Mesmo sem possuir super poderes.

domingo, 5 de junho de 2011

O homem que jogava damas

Por João Paulo da Silva

Artur adorava jogar damas. Desde criança, ele vivia agarrado com as damas. Era a única coisa que despertava seu interesse. Nada de pipa, nem bola de gude ou pião. O negócio mesmo era jogar damas. Em qualquer lugar que estivesse, o tabuleiro e as pecinhas sempre estavam com ele. No início até parecia natural.
- Vai ser bom pra desenvolver mais rápido o intelecto. – dizia o pai, seu Matias.

Mas aí o que era exercício de inteligência acabou se transformando em obsessão. Artur começou a deixar de lado outras atividades. Não via mais televisão, não lia os gibis que o pai lhe dava, deixou até de fazer as tarefas da escola. Só queria saber de jogar damas. Não parava nem para ir ao banheiro. Fazia ali mesmo. Dizia que era pra não perder a concentração. Quem não gostava nadinha disso era a mãe, dona Vânia. Ficava louca. “Arturzinho, meu filho, assim não dá!”. Os coleguinhas do bairro, que já haviam perdido para Artur inúmeras vezes, estavam de saco cheio.

Decidiram que não jogariam mais com ele. Parecia que o problema tinha chegado ao fim. Sem oponentes, Artur não podia jogar. Aí ele teve uma brilhante idéia.
- Dona Márcia, o Juca tá em casa? – perguntou o obsessivo jogador depois que a mãe do amigo abriu a porta.
- Claro que tá, Arturzinho. Vai lá no quarto dele.
O Juca sobressaltou-se quando viu o Artur entrar.
- O que é que você quer aqui?!

O Arturzinho tirou detrás das costas o tabuleiro e as pecinhas. Olhou para o amigo com malícia e disse:

- Você vai jogar comigo.
- De jeito nenhum! Nem pensar! – resistiu o Juca.
Artur puxou do bolso um lápis com uma ponta bem afiada.
- Ou você joga, ou eu te furo! – ameaçou o obsessivo.
- O que é isso, Arturzinho? Não é bem assim. Sou teu amigo, lembra? – fraquejou o Juca.
- Se é meu amigo, então joga!!
- Tá bom. Mas só uma.
- Certo.

Não havia dúvidas, a obsessão do Artur tinha passado dos limites. Os pais resolveram tomar uma providência. Destruíram o tabuleiro e as pecinhas e internaram o garoto.

Algum tempo depois, o Arturzinho parecia curado. Tinha se tornado um belo adolescente e estava até namorando a Marta. Voltou a estudar e a praticar outras atividades. Os pais se orgulhavam da cura do filho. Levava uma vida normal. Era o que parecia até chegar o dia do seu aniversário. Estava completando dezesseis anos. Dona Vânia fez um bolo, preparou uns salgadinhos e chamou todos os amigos do filho. Ele soprou as velinhas e começou a abrir os presentes. Parou no da Marta.
- Abre, amor. Você vai gostar. – incentivou ela.

Quando o aniversariante abriu o pacote, todos se entreolharam num silêncio angustiante e constrangedor. Era um jogo de damas. Ninguém pôde culpar a Marta. Ela não sabia. Após alguns minutos de apreensão, Artur se despediu de todos e subiu para o quarto. Levou a Marta com ele. Ninguém disse nada.

As horas passavam e os pais ficavam cada vez mais nervosos. Queriam saber o que estava acontecendo lá em cima. Resolveram subir. A mãe encostou a cabeça na porta e ouviu as vozes:
- Vai, amor. Só mais uma, vai.
- Tô ficando cansada, Arturzinho. Não agüento mais.
Dona Vânia não vacilou. Tomou distância e se jogou contra a porta, arrombando-a. Pegou o filho na cama com a namorada. O que seria absolutamente normal se eles não estivessem jogando damas.
- Por que, meu filho? Por quê? – disse a mãe em lágrimas.
- Não resisti, mamãe. Não resisti.

O vício voltou mais forte. O furacão hormonal da adolescência aumentou de algum modo o desejo obsessivo do Arturzinho pelo jogo.
- Por que você gosta tanto de damas? – quis saber um amigo no meio de uma partida com o Arturzinho.
- Porque é excitante.
- Como assim?
- O lesbianismo me excita.
- Ainda não entendi. – disse o amigo.
- Um jogo onde uma dama come a outra é na verdade um jogo de lésbicas. – respondeu o obsessivo sem tirar os olhos das peças.
O amigo não riu da piada de mau gosto. Estava sentindo pena do Arturzinho.

A Marta tentou de tudo para livrar o namorado do vício. Apelou até para o erotismo. Tinha perdido as contas de quantas partidas já havia jogado com o Artur. Não agüentando mais, resolveu usar sua sensualidade.
- Amorzinho... – começou ela levantando a saia e mostrando a calcinha.
- O que é? – falou sem tirar os olhos do tabuleiro.
- Dá uma olhadinha pra mim.
- Daqui a pouco. Daqui a pouco.
A Marta abriu a blusa e mostrou os seios.
- Mozinho... Dá só uma olhadinha, vai?
- Depois, Martinha. Depois. Preciso me concentrar. – continuou sem olhar.
Aí a Marta tirou toda a roupa e começou a dançar de forma insinuante para o Artur.
- Ei, gatinho. – disse ela rebolando – Olha como eu tô agora, gatinho. Olha, vai.
- Fica quieta, Marta! Tá atrapalhando.

A pobre Marta recolheu as roupas, encostou-se num canto e começou a chorar baixinho. Aquilo era um absurdo. Um machismo sem tamanho. Como é que ele pôde trocar a Marta pelas damas?! Minutos depois, ela ouviu um “Psiu!”. Virou a cabeça. Era o Arturzinho.
- Martinha... – começou ele.
- O que foi, Arturzinho? – disse ela enxugando as lágrimas.
- É a tua vez de jogar.
A Marta desatou num choro descontrolado.

O tempo passou, e o Artur ficou maduro. Mas o vício persistia. Os pais resolveram não mais tentar salvar o filho. Estavam cansados. Tinham tentado de tudo. Psicanálise, terapia de grupo, choque elétrico. “Não tem mais jeito, Vânia. Não tem mais jeito”. – lamentava-se o seu Matias. Artur se formou em Direito (não havia faculdade para jogo de damas), abriu um escritório e marcou o casamento com a Marta. Apesar de tudo, ela ainda o amava. No dia do casamento, antes da noiva subir ao altar, dona Vânia perguntou:
- Minha filha, você tem certeza do que está fazendo?
- Certeza mesmo a gente nunca tem. Mas eu o amo.
- Como vai conviver com as damas, minha filha?
- Dá-se um jeito, dona Vânia. Dá-se um jeito.
A Marta realmente amava o Arturzinho.

Quando a noiva entrou na igreja, viu que ela estava lotada. Havia parentes, amigos de infância e da faculdade, gente que conhecia o casal e também a obsessão do Arturzinho. No altar, Marta percebeu a ausência do noivo e do padre. Indignada, chamou o seu Matias num canto.
- Cadê o padre, seu Matias?! E o Arturzinho?!
- Não sei, minha filha. Não sei.
Quando um possível tumulto parecia iminente, ouviu-se um grito vindo do confessionário.
- Socorro!!

Dona Vânia correu na direção do grito. Parou diante da porta do confessionário, estava temerosa. Temia que seu maior pesadelo estivesse do outro lado. Ouviu novamente o grito, agora mais fraco.
- Socorro!

Abriu a porta e deu de cara com seu pesadelo. O Arturzinho estava estrangulando o padre. Espalhados pelo chão do confessionário, estavam o tabuleiro e as pecinhas do jogo de damas. “Vamos, canalha! Jogue comigo! Você prometeu!”. – gritava o Artur com as mãos no pescoço do sacerdote. Dona Vânia olhou com pesar para o filho, visualmente decepcionada. Virou-se e encarou a nora nos olhos. Não foi preciso dizer nada para que a Marta compreendesse o que a sogra havia visto. A Marta começou a chorar descontroladamente, mas se casou mesmo assim.

O casamento nem durou muito. O Arturzinho acabou morrendo. Quer dizer, acabou se matando.

A Marta sempre foi muito chegada em sexo. Gostava mesmo. Na adolescência até ganhou a fama de ninfomaníaca. Tudo bem. Antes sexo do que damas. Mas aí o Arturzinho acabou pegando pesado com a Marta. Apelação mesmo. Quando ela o procurava antes de dormir, ele era categórico:
- Só se você jogar uma partidinha comigo.
- Mas Arturzinho...
- É pegar ou largar.

No início ela até aceitou. Queria preservar o casamento, salvar a relação, ainda amava o Artur, essas coisas. Aí o tempo passou e ela se encheu dessa situação. Estava disposta a resolver definitivamente o problema do marido. Pediu a todos os amigos do Artur – os da infância, os do escritório, da faculdade, do barzinho – para que parassem de jogar com ele. Organizou um movimento chamado “Salvem o Artur”. Havia cartazes espalhados por todos os lugares. Até outdoor e tempo na TV a martinha conseguiu.
- Mas... E se ele nos ameaçar? – perguntaram os amigos.
- Chamem a polícia.

Rapidamente o resultado começou a aparecer. O Artur ficou três semanas sem jogar, estava acuado. Ainda tentou persuadir a Marta, mas foi em vão.
- Vai, Martinha. Eu juro que brinco de papai e mamãe se você jogar só uma comigo.
- Nem pensar, Arturzinho!

Não tinha mais jeito. O obsessivo estava encurralado. O plano tinha dado certo. Os amigos se afastaram, os parentes sumiram. Ninguém mais jogava com o Artur. Quer dizer, quase ninguém.

Um dia a Marta chegou do trabalho e pegou o Arturzinho na mesa da sala com o maldito jogo. Mexia uma peça, levantava-se da cadeira, ia até o outro extremo da mesa, mexia mais uma peça e voltava para onde estava sentado. Repetia esse movimento inúmeras vezes. Aí a Martinha sacou.
- Ficou maluco, Artur? Deu pra jogar sozinho agora, foi?
Não houve resposta. A Marta deu de ombros. “Dessa vez ele desiste.” – pensou. E saiu pra comprar pão.

Quando voltou da padaria, encontrou a sala em total desordem. Mesa e cadeiras tombadas, vasos quebrados e o tabuleiro e as pecinhas espalhados pelo chão. Num canto da sala, estava o Arturzinho. Estava deitado sobre uma poça de sangue. Numa mão segurava a faca que usara para cortar o pulso; na outra, um bilhete manchado de sangue.

Querida, me desculpe. Fiquei louco por não ter ninguém pra jogar. Você sabe, né? Eu adoro damas. Não posso viver sem jogar. Meus amigos me abandonaram, você não jogava mais comigo. Fiquei isolado. Desde que comecei a jogar, nunca perdi pra ninguém. O bom era ganhar de todo mundo. E eu ganhava! Mas hoje sofri minha primeira e última derrota. Sem oponentes, resolvi jogar contra meu maior adversário: eu mesmo. Perdi. E perdi feio! Isso me irritou profundamente – desculpe pelos vasos. Era um desaforo, uma humilhação. Tenho certeza de que pior que viver sem jogar seria ter de conviver com a presença desagradável da derrota. Não suportaria. Não tive escolha. Espero que me perdoe.

Com amor,

Arturzinho.

P.S.: Gostaria de ser enterrado com as damas. Não fique chateada, querida. Você entende, né? Te amo.

Artur

Todo mundo compareceu ao funeral do Arturzinho. Amigos, familiares, vizinhos etc. Dona Vânia e seu Matias estavam inconsoláveis. Desgraça maior não poderia ter acontecido. A viúva, de pé em frente ao caixão, com os olhos fundos e o rosto vermelho, escutava com desatenção as palavras do padre. Pensava na parte do bilhete que ela havia omitido da família do falecido. A Marta não contou para os pais do Artur que seu último desejo era ser enterrado com o maldito jogo. Rasgou essa parte. Talvez quisesse poupá-los. Nunca descobriu se o seu Matias e a dona Vânia a culparam pela morte do filho. Eles nunca disseram nada. Depois da última pá de terra e dos últimos “meus pêsames” o funeral se desfez. A Marta foi para casa, levando com ela um segredo. Antes de fechar o caixão, ela pôs o jogo dentro. Chorou descontroladamente, mas mesmo assim acabou enterrando as damas com o marido. É que a Marta amava realmente o Arturzinho.

domingo, 29 de maio de 2011

As coisas e o que fazemos com elas

Por João Paulo da Silva

Ceará-Mirim, Rio Grande do Norte. Maio de 2011. Eu tinha ido cobrir um protesto de 200 trabalhadores rurais sem terra naquele município. Com suas camisas e bandeiras vermelhas, eles deslizavam pela principal avenida do centro da cidade como um rio de sangue, som e fúria. Era o sangue dos companheiros mortos em Eldorado dos Carajás, o som das reivindicações urgentes e a fúria da necessidade de viver. A caminhada ia em direção à sede da Prefeitura, onde o MST exigiria do chefe do executivo municipal a construção de uma escola nas proximidades de seus assentamentos na região.

A exigência dos sem terra era apenas para ter o direito à educação, mas a polícia foi chamada e os supermercados fecharam as portas. Aglomerados em frente à Prefeitura, homens, mulheres e crianças cantavam e pediam para ser recebidos. Entre eles e o prefeito, um cordão de policiais armados. Entre os pobres e a educação, as armas. Entre o povo e o futuro, o descaso. Historicamente, sempre foi assim. A violência sempre chegou primeiro do que os direitos.

Mas o impasse estava posto. Os trabalhadores não sairiam dali enquanto não fossem recebidos pela Prefeitura. E a polícia não sairia da frente enquanto não recebesse a ordem. Provavelmente para evitar desgaste político, o prefeito resolveu atender uma comissão de sem terras. Por alguma razão que até hoje desconheço, eu acabei indo junto com o grupo de negociação. Naquela euforia toda, ainda pude ouvir um trabalhador dizer: “Ele é jornalista. Ele é jornalista. Bota ele na comissão também.”. Talvez fosse pela possibilidade de registrar tudo. Não sei.

Acompanhei toda a conversa entre o prefeito e os trabalhadores. Horas depois, ficou a promessa de atender a reivindicação do MST. Educação nos assentamentos. Simples assim. Mas a lição dessa história é outra. Não é sobre como podemos conseguir nossos direitos exercendo pressão sobre os governantes. Muito embora esta seja uma boa lição. A aula mesmo é sobre as coisas e o que fazemos com elas.

Dentro do prédio da Prefeitura, na ante-sala do gabinete do prefeito, eu aguardava a comissão ser recebida. Do lado de fora, com a rua fechada, o restante dos trabalhadores cantava hinos de luta. Como quem não quer nada, um policial se aproximou de mim e perguntou:
- Você está com eles?
- Só acompanhando a negociação. Sou jornalista.
- Hum... Queria ver uma coisa com você.
- Pois não.
- Veja, lá fora tem muita gente armada com facões e foices. E nós não queremos que nenhuma confusão aconteça. Não poderíamos ver a possibilidade desse pessoal aí entregar essas armas? Nós recolhemos e depois devolvemos. Só por segurança. – argumentou ele.
- Acho muito difícil, policial. Mesmo porque não há ameaça de nada lá fora.
- E aquelas armas?
- Que armas?
- Aqueles facões e foices.
- Não são armas, policial. São instrumentos de trabalho. Foram feitos para o serviço no campo. Não têm como finalidade ferir ninguém.
- Sim, eu sei. Também tenho meus instrumentos de trabalho. – disse ele, batendo de leve em sua pistola presa ao coldre.
- É diferente. Não é a mesma coisa. O seu instrumento de trabalho foi feito com o objetivo específico de matar. – respondi eu.

Mas o policial já estava se afastando com um riso no canto da boca.

domingo, 22 de maio de 2011

O Censo e a nova classe média

Por João Paulo da Silva

Foi só depois que o IBGE divulgou os resultados finais do novo Censo que eu consegui descobrir quem é a nova classe média da qual o governo tanto fala. Estou abismado. Como não pude vê-la?! Como não pude encontrá-la, esbarrar com ela por aí?! Dizer um “Olá! Olha, parabéns, viu?! Isso é que é ascensão social, hein!”. Estava tão próxima a mim, e eu não consegui distingui-la. Santa Desatenção! Ela estava praticamente embaixo do meu nariz. Aliás, para minha completa e absoluta surpresa, eu também faço parte dessa nova classe média! Meu Deus, preciso urgentemente visitar o oftalmologista e trocar esses óculos. Francamente. Vai vendo aí.

Pobreza? Que pobreza?

Nos últimos 10 anos, a pobreza caiu 50,64%. Isso porque, no Brasil, o pobre é o sujeito que possui uma renda mensal menor que R$ 151, segundo as pesquisas. Já na extrema pobreza encontra-se o sujeito que possui renda mensal de até R$ 70. Em geral é menos, não se chega nem a isso, mas até setenta você é extremamente pobre. Quer dizer, bastou ganhar R$ 1 a mais e já saiu da pobreza ou da extrema pobreza. Entretanto, eu entendo a intenção do governo e dos institutos de pesquisa ao apresentarem os cálculos com base nesse critério. É para levantar o moral dos brasileiros. Convenhamos, ser pobre é deprimente e não ajuda a viver bem. Por isso, o melhor é acreditar que fazemos parte de uma nova classe média. Ou, como diria Millôr Fernandes, “classe mérdia”.

Sendo assim, é só através do critério dessa nova classe média que é possível compreender um diálogo entre dois desempregados numa esquina qualquer do país.

- Rapaz, esse mês, se Deus quiser, eu entro pra essa tal de nova classe média.
- É mesmo?
- Com certeza. Andei fazendo minhas contas. Tudo indica que com mais alguns bicos que já acertei pra fazer essa semana vou apurar uns R$ 160 esse mês.
- Mas olha só! Que coisa boa, hein! Parabéns, meu amigo.
- Pois é, rapaz. Vai dar até pra pagar um Chicabom pra patroa lá em casa.

O mistério do banheiro em casa

No país do futuro, o banheiro ainda é um mistério para os brasileiros alojados em 3,5 milhões de casas. Isso significa que nem na Idade Média essas pessoas se encontram, uma vez que neste período da história havia ao menos um lugarzinho com buracos no chão para lá deixarmos as “necessidades”. Inclusive, penso eu, que essa parte da população sem banheiro também deve estar enquadrada na nova classe média. Bom, na mérdia eles já vivem e acho que até o penico é um mistério.

Fico imaginando os moradores destas mais de três milhões de residências (estou sendo generoso) passeando pelas orlas de algumas de nossas cidades. Quando menos se espera, pimba! Dão de cara com um desses banheiros químicos. Emocionados, entram e saem diversas vezes do pequeno recinto. Não acreditam nos próprios olhos. Nem mesmo o Sílvio Santos e sua Porta da Esperança seriam capazes de proporcionar aquele momento. Ainda que a necessidade fisiológica não venha, passam horas sentados no vaso. A Maria, esposa do Zé, até pergunta ao marido:

- Será que deixam a gente levar um desses pra casa, meu filho? A cor combina direitinho com os tamboretes da sala.

O Censo é ainda mais terrível quando revela que 55,5%, das pessoas vivem sem saneamento básico. Ou seja, quase metade da população nunca viu água tratada, coleta de lixo e rede de esgoto. Mas o governo também deve ter uma justificativa para isso. Afinal de contas, para quê serve saneamento básico quando não se tem nem mesmo banheiro?

Incentivando jantares à luz de vela

O Censo também revelou uma preocupação dos governos em fazer com que a nova classe média seja mais romântica. Não é à toa que mais de 700 mil famílias não possuem energia elétrica em casa. Isso só pode ter uma explicação. Tanto o FHC quanto o Lula, e agora a dona Dilma, incentivam os jantares à luz de velas. Compulsoriamente, é claro. Mas não se pode negar que os governos querem salvar casamentos, ver os casais mais felizes, impulsionar o romantismo e fazer do Brasil o país do amor.

- Querida, você não vai acreditar no que eu preparei pra você.
- O que foi, Josimar?
- Vem por aqui que eu te mostro. Cuidado aí que tá escuro. Tcharam! Olha só o que fiz pra você.
- O que é isso, Josimar?
- Ué, um jantar à luz de velas. Não tá vendo as velas?
- As velas eu tô vendo. Não tô vendo é o jantar!
- Bom, a gente não tem energia e o dinheiro só deu pra comprar as velas. Mas já é um começo, não acha?

Joãozinho, o pai de família

Depois de um dia inteiro de trabalho, guardando carros e limpando pára-brisas nos semáforos, Joãozinho, um guri de nove anos, chega em casa exausto.

- Mãe, cheguei! Cadê o rango?
- Oi meu filho. Já tá saindo. Como foi no serviço?
- Foi duro, mãe. A vida tá ficando cada vez mais difícil. Hoje o dia foi brabo. Peguei um monte de cliente unha de fome. Quase não apurei o suficiente para o almoço. Coisa séria essa inflação, hein! Se continuar assim, o que eu ganho não vai dar nem pro café. Imagine pagar luz, água, aluguel e alimentação.
- Mas meu filho, eu também posso arrumar um emprego...
- Nem pensar! A obrigação de sustentar a casa é minha. O pai de família aqui sou eu.

Da mesma forma que o Joãozinho, mais de 130 mil crianças brasileiras são responsáveis por chefiar famílias. Elas, provavelmente, também fazem parte da nova classe média do governo. Como se pode ver, a ascensão social no Brasil é realmente coisa de país do futuro. Futuro sombrio, verdade seja dita. Nos últimos vinte anos, a classe que reúne pobres e miseráveis não deixou de existir. Apenas mudou de nome.

domingo, 15 de maio de 2011

À frente de seu tempo

Por João Paulo da Silva

Em 1968, aos 17 anos, meu pai era um jovem à frente de seu tempo. Sem saber, é claro. Mas ainda assim estava à frente de muitos outros homens da época. No momento em que grandes transformações sociais e comportamentais percorriam o mundo, meu velho dava sua contribuição inadvertidamente. Como alguém que faz o que é correto de maneira inconsciente, meu pai foi parte involuntária daquelas mudanças. No melhor estilo “gaiato no navio”, acabou dando sua cota para aumentar a independência das mulheres. Principalmente, a independência financeira. Tudo isso, óbvio, foi ele mesmo quem me contou. Não tenho nenhuma responsabilidade sobre o conteúdo desta história. Estão avisados.

Convidar uma garota para ir ao cinema era uma espécie de código através do qual você mostrava, implicitamente, que estava interessado nela. É claro que só o fato de a moça ir ao cinema com você não garantia que algo pudesse rolar. Mas, aceito o convite, as chances aumentavam bastante. Afinal, quando uma mulher não quer fazer alguma coisa, ela diz “não” e pronto. Ciente destas condições, meu pai – sempre que possível – convidava uma garota pela qual estivesse a fim para pegar “um cineminha”. Até aí tudo normal.

O discurso do convite de meu pai, independente da garota, não variava muito.
- Oi Fulana. Tudo bem?
- Oi Antônio. Tudo sim.
- Então, tava pensando se você não tava a fim de pegar um cineminha comigo essa tarde. Tá passando o Zorro. O que me diz?
- Ah, claro. Eu adoraria.

Parte da diferença entre meu velho e os demais garotos da época, na hora de ir ao cinema com alguém, estava no momento do encontro.

- E onde a gente se encontra, Antônio? Pode ser em frente ao cinema?
- Ah... então... acho melhor de outra forma. Vamos fazer assim: quem chegar primeiro à sessão, entra e espera o outro lá dentro, guardando o lugar. É porque tem sido um filme muito concorrido, sabe? Se ficarmos esperando um pelo outro do lado de fora, podemos não encontrar mais lugares. Vai que um de nós chega atrasado, entende? Questão de segurança, saca broto?
- Certo. Tudo bem. Sem problema, gracinha.

E assim acontecia.

Meu pai chegava ao local faltando uma hora para a sessão começar, comprava o próprio ingresso e esperava lá dentro. Quando a garota chegava, cerca de 40 minutos depois, se dirigia direto aos lugares escolhidos por meu pai, de onde ele acenava efusivamente. Daí por diante, era só deixar rolar. Na maioria das vezes, dava certo. Foi dessa forma com todas as garotas com as quais meu velho saiu. Ele chegava primeiro, elas depois.

- Ah! Agora eu entendi qual era a do senhor. – disse eu para meu pai outro dia.
- Como assim, filho?
- O senhor entrava primeiro e esperava lá dentro só para não pagar o ingresso da garota. Que mão de vaca, safado!
- Olha o respeito, moleque! Tá me chamando de pão duro?!
- Quem? Eu? Imagina!
- Não era que eu não quisesse pagar o ingresso delas. Mas... veja bem. Havia na sociedade um acordo tácito que de certa forma obrigava os homens a pagar as contas das mulheres. E eu não achava isso correto.
- Quer dizer, o senhor era pão duro mesmo!
- Não é bem assim, filho. Ouça. Eu não achava correto pagar o ingresso do cinema para elas porque aquilo representava mantê-las dependentes financeiramente de mim. E eu não queria isso, entende? Queria que elas tivessem independência.
- Tá bom. Me engana que eu gosto.
- Certo. Ok. Tudo bem que naquela época eu não sabia disso. Fazia tudo de forma inconsciente. Mas, de algum modo, eu ajudei muitas mulheres a se tornarem mais independentes, deixando que elas mesmas pagassem seus ingressos. Mesmo sem saber, filho, eu estava à frente de meu tempo. O problema é que só descobri isso agora, depois de velho.
- Tá. Sei, sei. Mas e hoje? Como é que é? Quem paga os ingressos?
- Óbvio que hoje são elas que pagam. E pagam os dois, inclusive. Estão mais independentes financeiramente. Além do mais, os ingressos de cinema estão pela hora da morte.
- Ou seja, o senhor deixou de ser pão duro para se tornar um gigolô.
- Olha o respeito, moleque!

segunda-feira, 9 de maio de 2011

No avião

Por João Paulo da Silva

Eu estava indo para Santos, cobrir um congresso nacional de trabalhadores. Foi a primeira vez que entrei em um aeroporto com o objetivo de voar. Até então, só tinha estado em um para acompanhar ou esperar alguém. Sempre tive um misto de curiosidade e medo de viajar de avião. O poeta Mário Quintana dizia que “o mal dos aviões é que não se pode descer a toda hora para comprar laranjas.”. Também é verdade que não se pode abrir as janelas para entrar um ventinho, a não ser que você queira tomar o ventinho lá fora. Seria muito bom se estes fossem os únicos males. Mas, infelizmente, não são.

Quando se viaja de avião, por exemplo, as chances de sobrevivência em caso de desastre são bem menores do que em um acidente de ônibus. Em geral, toda vez que um boing se esborracha no chão ou cai no meio do oceano é quase improvável encontrar alguém vivo. Além disso, não há muitas notícias de terroristas sequestrando ônibus e arremessando-os contra edifícios. Bom, já com aviões... Mas, de todo modo, segundo o Superman, voar ainda é a maneira mais segura de viajar. E foi pensando nisso que eu entrei no avião naquela madrugada.

Era uma bobagem achar que alguma coisa poderia acontecer naquele dia, e justamente comigo. Por isso, mesmo eufórico com meu primeiro vôo, procurei relaxar e aproveitar o momento. Afinal, seriam quatro horas com a cabeça, literalmente, nas nuvens. Estava tão emocionado com a viagem que na hora nem notei que minha passagem não era de primeira classe. Mas só o fato de viajar de avião já faz a gente ficar metido à besta. Enquanto arrumava a bagagem de mão, ainda pensei em perguntar ao passageiro da frente se o caviar servido pela companhia era proveniente do Mar Cáspio e do tipo beluga. É óbvio que desisti rapidamente, tanto pelo ridículo quanto pela absoluta certeza de que não serviriam nem mesmo um ovo frito.

Já acomodado em meu assento, depois de acompanhar atentamente as instruções de segurança dadas por um comissário de bordo que mais parecia um guarda de trânsito epilético, resolvi pegar um livro para passar o tempo. Desgraçadamente, da mesma forma que os ônibus, os aviões também estão munidos de passageiros impertinentes, daqueles que ficam a viagem inteira falando sem parar, mesmo que você não diga nada e demonstre não querer conversa. Para minha infelicidade, um desses passageiros estava ao meu lado. Uma passageira, na verdade. E o pior: a poltrona dela era a da janela, o que me impedia até de usar o recurso de virar a cabeça para ver a paisagem.

Não demorou muito e ela fez a primeira investida.
- Sabe, eu gosto de viajar de avião. Estou sempre viajando, meu trabalho exige. Às vezes mais de uma vez por dia. E você? Viaja muito?
- Não muito. De avião é a primeira vez. – respondi, me arrependendo logo em seguida.
- Sério? Não diga. Que coisa. Ah, mas você vai adorar. É claro que tem seus riscos e problemas...

Pronto. Era tudo o que eu não precisava ouvir.

- Sabe, assim que a gente decolar, você vai sentir uma coisa estranha nos ouvidos. Uma pressão, é como se estivessem sendo tapados.
- Entendo... – falei – Se eu ficar sem ouvir a senhora, até que não será mau negócio. – completei, dessa vez bem baixinho.
- Hein? O que disse?
- Não, não foi nada.

Juro que ainda pensei em gritar no meio do avião que aquela mulher tinha uma bomba e que era membro da Al-Qaeda. Na confusão, quem sabe até retirassem ela do vôo. Mas não dava mais tempo. O boing já se preparava para decolar e nós tínhamos de permanecer sentados. Na subida, foi dito e feito. Meus ouvidos ficaram tapadinhos. E por um breve momento eu achei que fosse vomitar. Até virei o rosto para minha inoportuna passageira, na esperança de ver despejado nela o meu eu interior. O enjôo, porém, passou rápido. Mais para sorte dela, claro.

Já no ar, estiquei um pouco o pescoço na direção da janela e pude ver tudo lá embaixo ficando cada vez menor, as luzes da cidade bem pequenas. Que emoção. Que sensação boa. Eu estava voando. Pensei com carinho em Santos Dummont e em sua maravilhosa engenhosidade. Agora, nós podíamos ir de uma ponta a outra do mundo em questão de horas, com conforto e tranquilidade. Tudo bem. Eu sei que às vezes nem sempre com tanto conforto. Mas, no meu caso, até poderia ser com tranquilidade, não fosse por minha trágica companheira de vôo.

- Olha só! Agora que notei. – recomeçou ela.
- O quê?
- Nossas poltronas ficam no meio do avião, bem ao lado das asas.
- E o que é que tem isso?
- Ora, você não sabe? Nas asas é que fica o combustível. Se o avião pegar fogo, nós morreremos primeiro. A explosão começa logo por aqui.

Isso é coisa que se diga para quem viaja de avião? Não, não é. Ainda mais quando se trata de alguém que está tentando relaxar e esquecer os riscos em caso de acidente. Ao que parecia, ao meu lado eu não tinha uma companheira de viagem, e sim um mau agouro. Comecei a ficar inquieto e preocupado com qualquer coisa que acontecesse. Por duas ou três vezes, quando o piloto informou que estávamos passando por “uma pequena turbulência”, cheguei a ficar visivelmente nervoso com o balanço do avião.

- Engraçado. – atacou de novo a passageira trombeteira do Apocalipse. – Nos filmes, os pilotos sempre dizem isso quando o problema é mais grave do que parece.
- E a senhora acha isso engraçado?!
- E o que se pode fazer? Se tiver de cair, vai cair, meu filho. Ultimamente os aviões tem caído tanto.

Ah, que maravilha! Agora, nem se quisesse (e ela deixasse) eu conseguiria me concentrar para ler meu livro. Dormir, então, estava fora de questão, já que a ansiedade não deixava fechar os olhos. Para piorar, nossas poltronas estavam ao lado de uma das portas do avião, que a todo instante dava umas tremelicadas. Se era algo normal, eu não sabia. Mas, àquela altura da situação, tudo parecia errado.

Notando meus olhos na porta que tremelicava, a mulher ainda encontrou cara para comentar:
- Já pensou se essa porta abre? Nós todos seríamos sugados para fora do avião, hein. Que loucura. Cairíamos não sei quantos mil pés já sabendo que não haveria escapatória. Tão angustiante.

“A senhora com certeza não teria a chance de se esborrachar no chão ainda com vida. Eu faria questão de apertar o seu pescoço enquanto estivéssemos caindo.” – pensei. Mas me arrependo amargamente de não ter dito. Meu suplício só teve um intervalo quando começou a amanhecer. Pela janela, entravam os primeiros raios de sol. Lá fora, eu podia ver com clareza que estávamos acima das nuvens. Era como se o avião deslizasse sobre um enorme tapete branco. Um belíssimo espetáculo ver o sol nascer assim, digamos, mais pertinho de nós.

Para minha sorte, antes que a infeliz ao meu lado estragasse o momento, uma comissária de bordo passou com o café da manhã. Com a boca atolada de comida, pelo menos ela estaria impedida de dizer besteiras. Aí aproveitei também para beliscar alguma coisa antes de pousarmos. Porém, nem isso deu para fazer. O café servido não passava de uma torrada integral com uma pequena porção de requeijão light. Na hora de abrir o pacote da torrada, fiz muita força e acabei esfarelando tudo. Só me restou beber um copo de suco de caixinha.

- Cuidado, viu? Às vezes esses sucos que eles servem estão fora da validade. Faz um mal danado.

Era a maldita passageira, de novo. Me levantei desesperado, em busca daquelas cordinhas presas ao teto dos ônibus que servem para avisar que vamos descer na próxima parada. Não encontrei, obviamente. Mário Quintana tinha razão. “O mal dos aviões é que não se pode descer a toda hora para comprar laranjas.”. Ou para fugir de todo tipo de maluco.

domingo, 1 de maio de 2011

O ladrão intelectual

Por João Paulo da Silva

Quando um amigo me contou, eu não acreditei.
- Fala sério! Cê tá de brincadeira, né?!

Não. Não estava. Existia realmente um ladrão diferente a solta pelas ruas de Maceió. Já havia assaltado cerca de trinta pessoas em menos de um mês. Mais impressionante do que isso, só o fato de que o sujeito não roubava dinheiro, relógios ou celulares. Roubava livros! Isso mesmo. Livros!

Quando eu era mais novo, minha mãe costumava dizer (e ainda diz!) que meu futuro estava nos livros. Dizia que eu tinha de comer os livros pra virar gente de verdade. “Um homem só cresce na vida através dos livros!” – declarava. Era um claro exagero, não tenho dúvidas. E um pouco de ingenuidade também. Mas não pude deixar de lembrar dos conselhos de minha mãe ao saber da existência de um ladrão intelectual. “Ai, meus clássicos! Ai, meus clássicos!”. – pensei.

Também não tive como não lembrar dos cuidados que minha sábia mãezinha exigia de mim.
- Menino, cuidado com os assaltos! Se o ladrão pedir, entregue tudo!
- Tá, mãe. Tá. Mas eu só tenho livros na bolsa. A senhora já viu algum ladrão roubar livros?

O fato é que o caso havia me intrigado. Procurei pensar no lado positivo da coisa. Se a moda pegasse, o Brasil poderia até deixar de ser um país de analfabetos. Resolvi, então, conversar com algumas pessoas que tinham sido atacadas pelo tal ladrão intelectual. Queria saber como o sujeito agia. Estava na hora de exercitar meu jornalismo investigativo.

Como a maioria dos gatunos, ele também tinha hábitos noturnos e um local preferido para atacar. Todos os assaltos ocorreram dentro da universidade por volta das 20 horas. Uma das vítimas, uma estudante de pedagogia, afirmou que não se tratava de um ladrão como outro qualquer.
- Ele não roubou meu dinheiro. Roubou meus livros! Levou o meu Pedagogia do Oprimido!
- Certo. Isso eu já sei. Além de roubar livros, você percebeu mais alguma coisa de incomum? – perguntei.
- Ele usava uma máscara.
- Mas isso não tem nada de incomum. Muitos ladrões usam máscaras. – retruquei.
- Com o rosto do Paulo Freire?
De fato era um caso estranho.

Seu método se diferenciava pouco dos outros. Se houvesse resistência ao roubo dos livros, ele ameaçava as vítimas com um canivete. Tudo bem que era um canivete suíço, mas ainda assim era um canivete. Demonstrava total frieza e indiferença na hora da ação. Mas não aparentava seguir um padrão único. Às vezes agia com muita cordialidade. Nem parecia que era um assalto. Foi assim com um estudante de letras num ponto de ônibus escuro e vazio.
- Boa noite. – disse o sujeito com uma máscara do Jorge Amado.
- Ai, meu Deus! – assustou-se a vítima – Mas o que é isso? Tem alguma festa à fantasia hoje?
- Não é nada. Só uma comemoração boba. – disfarçou – Escuta, posso dar uma olhada nesses livros?
- Claro. Fique à vontade.
- Hum...
- Que foi?
- Tolstoi, Joyce, Machado de Assis. Muito bom. Boas leituras. Vou levá-los.
- Ahn? Como assim “vou levá-los”?
- Ah, desculpe. Esqueci de avisar. Isso é um assalto.

Mas o larápio de livros também já demonstrou alguns lapsos de descontrole emocional. A vigésima vítima, um estudante de filosofia, me deu um relato interessantíssimo. O rapaz contou como se dera o ocorrido.
- Boa noite. – disse uma voz calma e educada no meio da penumbra.
- Quem está aí?
- “O homem é condenado a ser livre”. – afirmou a voz.
- Sócrates?
- Não, seu burro! – disse a voz alterada – É Sartre!

O rapaz sentiu uma forte dor na cabeça e caiu desacordado. Quando recobrou a consciência, seus livros tinham sumido. Tudo indica que tenha sido uma paulada. Parece que o gatuno não suporta burrice. Um pouco intolerante, eu acho. Mas também com uma jeguice dessas, quem não seria?!

A situação começou a se agravar ainda mais. O ladrão intelectual já havia surrupiado Sartre, Piaget, Freud, Poe, Marx e muitos outros. A comunidade acadêmica estava apavorada e ninguém sabia exatamente o que fazer.

Foi aí que, recentemente, as idas e vindas da história apontaram um possível caminho. Foi com uma menina do curso de administração. Ela saía da aula quando viu se aproximar o Graciliano Ramos.
- Muito bem. Sem muitas delongas. Isso é um assalto!
A moça começou a abrir a carteira.
- Não. Não é isso que eu quero. Quero os livros.
- O quê?
- É o que você ouviu. Passa os livros.

A menina entregou-os sem se queixar. Momentos depois, o ladrão explodiu:
- Mas o que é isso?! Você tá de sacanagem, né?! Que palhaçada é essa?!
- Ora! Eu gosto, ué?!

Os livros eram Brida e Diário de um Mago.
- Como assim? Você gosta de Paulo Coelho?! Você tá lendo Paulo Coelho?!
- Tô. Qualé o problema?
- Você não tem vergonha na cara não, menina! Ai, meu Deus do céu! Sidney Sheldon eu até aceito. Mas Paulo Coelho já é apelação! Aí já é demais!

Largou os livros da moça no chão e fugiu indignado.
Foi como um antídoto. Todo mundo começou a andar com livros do Paulo Coelho embaixo do braço. Parece que deu certo. Até o momento não houve mais registros de incidentes com o gatuno intelectual. Finalmente encontraram uma solução para o problema dos roubos. E uma finalidade para o Paulo Coelho. Mas já tem gente preocupada, achando que só o Paulo Coelho talvez não resolva. Tão querendo andar com livros da Zíbia Gaspareto. Não sei, não. Aí eu já acho sacanagem. Com o ladrão, claro.

domingo, 24 de abril de 2011

Crime contra a Língua

Por João Paulo da Silva

Em outra ocasião, já falei de um professor que não tolerava erros de Língua Portuguesa. Tratava cada deslize dos alunos como “jeguices”. Seu método se baseava no princípio da vergonha absoluta. Se alguém cometesse qualquer tipo de jeguice, era sumariamente humilhado pelo professor. O resultado desse tratamento de choque se apresentava de duas formas: ou o moleque se matava de estudar para não cometer mais erros, ou nunca mais abria a boca pra falar merda.

O fato é que me chega mais uma história do professor intolerante.
Durante a aula, a turma discutia em grupos o crescimento da violência no Brasil. Seqüestros, roubos, assassinatos. Foi quando o professor interrompeu o debate e disse:
- Vocês estão acompanhando através dos meios de comunicação o crescimento da violência. Principalmente a elevação de crimes como o famoso “roubo seguido de morte”. Alguém saberia me dizer que nome é dado pelo Código Penal a esse tipo de crime?

O Fernandinho, desesperado para responder, levantou logo o braço.
- Eu sei, professor! Eu sei!
- Pois então pode dizer, Fernandinho.
- O nome é laticínio.

O professor começou a se contorcer de raiva.
- Que jeguice, meu Deus! Está errado, Fernandinho. O correto é latrocínio, infeliz! É quando alguém, no ato de roubar, acaba matando a vítima.
- É isso mesmo, seu burro! – interrompeu o Pedrinho, todo metido a esperto – Só seria laticínio se o queijo roubasse o leite e matasse a vaca! Mas tu é um burro mesmo, hein!

O professor não suportou e sofreu uma parada cardíaca. Está internado e seu estado é grave.