terça-feira, 27 de outubro de 2009

O morro veio nos chamar...

Por João Paulo da Silva

Dia e noite, a fúria dos grandes centros urbanos nos persegue como se fosse uma sombra eterna, dando a entender que, por mais que a gente se vire, ela sempre vai estar no nosso encalço. Parece com aquele pesadelo inacabável que insiste em nos interromper o sono, cotidianamente. Um sono que, via de regra, já é sobressaltado. Um sono de quem sabe que não pode dormir.

O caos que estourou – mais uma vez! – no Rio de Janeiro nestes últimos dias não guarda muitos mistérios. A sombra e o pesadelo da “cidade maravilhosa” revelam-se claros e cruéis, mesmo com os governos e a mídia tentando maquiar o espetáculo. Parafraseando Chico e Tom, o que houve na capital fluminense foi o seguinte: o morro veio nos chamar. Os graves problemas sociais desse país, geradores diretos da violência, deram seu recado. Ou acabamos com a miséria e o desemprego ou a barbárie acaba conosco.

A imprensa falou em guerra de policiais e bandidos. De fato, é uma guerra. Mas uma guerra dos famintos, dos sem emprego, dos sem educação, dos miseráveis. Daqueles que o governo Lula empurra todos os dias para o narcotráfico, porque nas favelas brasileiras o Estado só sobe o morro na forma de chumbo grosso. No meio das balas da polícia corrupta e dos traficantes, estão os trabalhadores, negros e pobres. Ao que parece, as Olimpíadas do Rio já começaram. E a modalidade preferida pelos governos é o tiro ao alvo.

Bastou o circo pegar fogo para Lula e o ministro da Justiça, Tarso Genro, afirmarem que vão aumentar os investimentos na segurança pública do Rio em 2010. Traduzindo: mais armas, viaturas, helicópteros e pólvora nas favelas. Do jeitinho que os fascistas do Palácio Laranjeiras querem. Para o governador do Estado, Sérgio Cabral, e seu secretário de segurança, José Beltrame, nos morros do Rio, a única linguagem é a das metralhadoras.

Dessa forma, chegaremos em 2016 com várias estatísticas impressionantes, dignas de recordes olímpicos. Mas nenhuma delas nos dará orgulho.

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É triste, mas poderia ser pior...

Enquanto o Rio de Janeiro guerreava, o Rio Grande do Sul brincava. Calma. Vou explicar.

É que alunos da 4ª série de uma escola pública gaúcha, em Sapucaia do Sul, foram flagrados pela professora brincando de traficantes. Os garotos quebraram o giz da lousa, moeram até virar pó e embalaram em plásticos. Assim como na vida real, na brincadeira o objetivo era atrair mais usuários e ganhar outras bocas de fumo. Tudo ocorreu dentro da sala de aula, envolvendo crianças entre nove e dez anos.

Obviamente que isto é um reflexo da realidade pobre desses alunos, completamente entregues ao violento mundo da falta de saídas. Um mundo de absoluta responsabilidade dos governos. Mas, analisando com atenção e sem querer necessariamente menosprezar o fato, a verdade é que o caso poderia ser pior. Como?

Imagine se essas crianças estivessem brincando, por exemplo, de serem deputados e senadores. Já parou pra pensar como seria? Alunos desviando verbas públicas, empregando parentes, negociando cargos, criando funcionários fantasmas, corrompendo a tudo e a todos, votando projetos contra os mais pobres e beneficiando ricos e poderosos. Imaginou? Pois é. Um terror, não?

No meio da aula, crianças gritam:
- Eu quero ser o Arthur Virgílio!
- E eu o Collor!
- Ah, eu posso ser o Sarney? Deixa, vai, deixa!
Ai, ai... me dá até náuseas.
Enquanto no Rio Grande do Sul crianças brincam de traficantes, no Rio de Janeiro Sérgio Cabral e José Beltrame brincam de Hitler e Mussolini. A diferença é que a brincadeira dos governantes mata de verdade. E, na maioria esmagadora das vezes, não são os bandidos que morrem.
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OUÇA A MÚSICA ZEROVINTEUM, DA BANDA PLANET HEMP. UM RETRATO DO RIO DE JANEIRO.


terça-feira, 20 de outubro de 2009

Pobre Yurinho

Por João Paulo da Silva

Quando era criança, lá pelos doze anos, eu costumava jogar bola com meu irmão no terraço da nossa casa. Ficávamos horas brincando de chute ao gol. Como não tínhamos autorização para jogar na rua, aquela acabava sendo a nossa diversão. Mas a gente até que gostava. Só não gostávamos mesmo era do Yurinho, o vizinho da frente. Ô moleque chato.

Ele sempre aparecia no portão lá de casa, pedindo pra jogar com a gente. Ficava um tempão implorando e enchendo o saco. Foram poucas as vezes em que permitimos. Eu e meu irmão tínhamos um motivo para não deixá-lo jogar. Qualquer coisinha o Yurinho chorava. Se levava um frango, chorava. Se perdia um pênalti, chorava. Se tomava uma bolada mais forte, chorava. E o pior: saía correndo e gritando que a gente tinha batido nele. Quer dizer, além de frouxo, o Yurinho também era mau-caráter.

Depois que passamos a impedi-lo de jogar com a gente, o safado começou a apelar para a deslealdade. Chegava no portão,todo malicioso, e falava:
- Oi. Posso jogar com vocês?
- Sai fora, Yurinho. Você só sabe chorar e mentir. – dizia eu.
- Mas eu quero!
- E você tem o que querer aqui, seu cagão?!
- É isso mesmo. Sai fora, Yurinho. – meu irmão completava.


Ele corria chorando para casa e contava para a avó que a gente não queria deixá-lo jogar e que, ainda por cima, tínhamos batido nele. Não demorava muito e a velha aparecia para reclamar. Ficava um tempão nos esculhambando, dizendo que não tínhamos coração, que éramos seres abomináveis etc. Com medo, eu e meu irmão corríamos para nos esconder. Só voltávamos depois que a vó do Yurinho saía. O mau-caráter fez isso várias vezes. Até que um dia resolvemos nos vingar.

Aí mudamos de tática. Se o Yurinho queria jogar sujo, então nós iríamos entrar no jogo dele. E, naquela época, sujo era literalmente sujo mesmo.
Um dia, como de costume, ele apareceu no portão.
- Posso jogar com vocês?
- Claro que pode, Yurinho. – falei.
- Sério?! Jura?! – surpreendeu-se o chato.
- É sério, sim. – disse meu irmão.
Aí o Yurinho se animou e já ia abrindo o portão quando eu o interrompi:
- Epa! Peraí. Aonde você pensa que vai com essa pressa toda?
- Jogar com vocês, ué.
- Calminha aí, Yurinho. Calminha aí. Você pode jogar, mas com uma condição.
- Que condição?
Era chegada a hora da vingança.
- Se quiser brincar, você vai ter que chupar uma pedra aí da rua.
- Hã?? Mas isso é muito sujo.
- Pois é. – disse eu.
- É pegar ou largar. – sentenciou meu irmão.

A rua da minha casa era cheia de pedras, de todos os tipos. Grandes, médias, pequenas. E sujas também. Da lama ao cocô do cachorro. Uma imundice só. Mas era isso. Se o Yurinho quisesse jogar bola com a gente, teria que aceitar o desafio. Essa era a condição.
- Tá bom. Eu aceito.

E assim começou a nossa vingança. Todas as vezes que ele aparecia no portão querendo brincar nós pedíamos para ele chupar uma pedrinha. Escolhíamos sempre as mais sujas, que era pra ver o sofrimento do infeliz. Ainda assim, depois da penitência do Yurinho, nós só brincávamos por alguns minutos, para não dar muito gosto ao chato. Afinal, o bom mesmo era assistir ao sacrifício do Yurinho ao chupar as mais nojentas pedras da rua.
- Tá bom, Yurinho. A gente não quer mais jogar.
- Mas já?! Não foram nem cinco minutos?!
- É, eu sei. Mas já estamos cansados. Amanhã brincamos mais. Tchau.

Mantivemos o plano durante muito tempo. Tanto que cheguei a pensar que o Yurinho já havia lambido uma quantidade de pedras suficiente para fazer uma calçada inteira. Mas meu irmão e eu não tínhamos a menor pena do mau-caráter. Ele estava tendo o que merecia. Foi quando um “pequeno” detalhe começou a mudar os rumos da história.

À medida que os dias e as pedras chupadas passavam, uma notável alteração foi se dando no rosto do Yurinho. Ele estava ficando amarelo. Mas muito amarelo mesmo. E tínhamos a impressão de que, após uma nova pedra, o Yurinho ia ficando cada vez mais amarelo. Lembro, inclusive, que em sua última aparição em tons de amarelo ele parecia molho de mostarda. Isso mesmo. Última aparição. Porque teve um dia que o Yurinho não apareceu mais no portão. Passou-se uma semana. Duas. Três. E nada.

Até que um dia vimos a vó do Yurinho, vestida de preto, saindo de casa. Com o rosto vermelho de choro, ela parou para conversar na porta da Dona Neide. Da conversa, meu irmão e eu só conseguimos ouvir duas frases.
- Ele se foi, Dona Neide. Meu Deus, o Yurinho me faz tanta falta. – disse a vó do moleque, desatando no choro.
Pronto. Foi o suficiente.
- Puta que o pariu, João! A gente matou o Yurinho! – desesperou-se meu irmão.
- A gente quem? Eu vou negar até o fim. Quero falar com o meu advogado! Cadê o meu advogado?!

Ficamos naquela paranóia por uma semana. Não podíamos revelar nosso crime para ninguém, havia o risco de sermos punidos severamente, mas também não podíamos suportar a dor na consciência. Tínhamos matado uma pessoa. Tudo bem que era o Yurinho, mas ainda assim era uma pessoa. Pelo menos em tese. O que fazer, então? Contar toda a verdade e rezar para sermos condenados, no máximo, por homicídio culposo? Ou não contar nada e continuar insistindo no nosso próprio convencimento de que, afinal de contas, era só o Yurinho mesmo?

- Bolívia! – disse eu.
- O quê?
- Vamos fugir para a Bolívia! – repeti.
- Tá doido?! E dizer o que para a mamãe? “Oi mãe. Estamos indo para a Bolívia porque matamos o Yurinho.”.
- Tem razão. Tô doido.
De fato, não sabíamos o que fazer. Estávamos numa encruzilhada.

Após um mês do sumiço do Yurinho, jogávamos bola no terraço de casa. Ainda muito preocupados, brincávamos sem entusiasmo nenhum. Foi quando ouvimos uma voz no portão:
- Oi. Posso jogar com vocês?
Meu Deus do Céu! Era o Yurinho.
- Yurinho! É você mesmo?! Não pode ser! – eu gritei.
- Como não pode ser, João?! Cala essa boca! Graças a Deus que é ele! Yurinho! – gritou também o meu irmão.
O Yurinho nunca entendeu por que nós o abraçamos e o beijamos tanto naquele dia. E a gente mesmo nem quis falar. Ninguém precisava saber.
- Poxa. Não sabia que vocês gostavam tanto assim de mim.
- Ah, você realmente não sabe o quanto. – falei.
Depois da recepção emocionada, o Yurinho explicou o próprio sumiço.
- Fiquei doente. Vermes, sabe? Sério mesmo.
- Verdade? Que coisa estranha, hein?! – argumentei.
- Pois é. Comecei a ficar amarelo.
- Jura? A gente nem notou. – disse meu irmão.
Aí o Yurinho falou que sua mãe achou melhor ele passar o resto das férias com ela lá no sítio. Seria bom para se recuperar e coisa e tal. Depois que estivesse bem, poderia voltar a morar com a avó. Ela ficaria triste e sozinha, mas seria só por um mês. Logo tudo voltaria ao normal. E o Yurinho se mandou pra casa da mãe.
- Sabe, fiquei tão doente que quase morri.
- Mas não morreu! Vira essa boca pra lá, Yurinho! O importante é que você não morreu! – falei com toda convicção.
- Isso mesmo. Que bom que o Yurinho não morreu. E a gente nem precisa mais falar disso. É hora de jogar bola. Vamos jogar bola. – propôs meu irmão.
Aí o Yurinho já estava indo pegar uma pedra quando eu gritei:
- Ei! O que pensa que vai fazer?!
- Ué, chupar uma pedra pra poder jogar.
- Yurinho, larga já essa pedra! Pelo amor de Deus! Larga isso já!


Hoje, alguns anos depois, faço outra interpretação de nossa atitude. Na verdade, não estávamos castigando nem nos vingando do Yurinho. Estávamos, inconscientemente, ensinando uma lição aquele pequeno mau-caráter, que gostava de caluniar os outros. Queríamos mesmo era mostrar ao Yurinho o quanto a vida era dura e suja, assim como as pedras lá da rua. Sabe, era uma metáfora. Uma metáfora sobre as muitas pedras que ele ainda encontraria pelo caminho. Era, na verdade, aquela história da pedra do Drummond, sabe? Aquela do meio do caminho. Era isso que a gente queria ensinar pro Yurinho. Mostrar pra ele que só um homem de bom coração passaria pelas adversidades da vida. Não havia espaço para o mau-caráter, entende? Bom, era isso. Estou convicto de que a História nos absolverá. E agora espero que o Yurinho também. Era pro bem dele.

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OBS.: Caros leitores e leitoras, por motivos de correria no trabalho, os textos do blog As Crônicas do João serão publicados às terças-feiras, e não mais aos domingos como antes. Entretanto, a periodicidade semanal permanece. Forte abraço.

domingo, 11 de outubro de 2009

We have bananas!

Por João Paulo da Silva

Natal é uma cidade surpreendente. Desde que cheguei aqui, já me deparei com várias situações inusitadas e muita coisa estranha. Mesmo já há algum tempo nas redondezas, ainda me intriga bastante o dialeto falado pelos potiguares. Aqui, por exemplo, descobri que o povo costuma chamar ânus de “lata de doce”. Nem me pergunte o motivo. Não faço a mais vaga ideia. Bom, mas não era exatamente sobre isso que eu ia falar. O fato é que, dia desses, me ocorreu um “causo” absurdamente insólito, daqueles que se não fosse eu que estivesse contando você poderia dizer que era mentira.

Foi numa manhã. Eu tinha ido à rodoviária comprar uma passagem para Maceió, iria passar alguns dias com a minha família, rever amigos, essas coisas. Assim que adentrei (sempre quis usar essa palavra) o espaço da rodoviária, vi se aproximar de mim, pelo canto do olho, um homem. Não era nem tão velho nem tão novo. Careca, meio encurvado, vermelho feito assadura de criança e vinha exibindo um sorriso banguela. Ele continuou se aproximando, estava bem vestido, e quando chegou mais perto disse:

- Hi. Excuse me, please.
Diante da minha perplexidade, ele se apressou:
- Oh, sorry. Do you speak english?
Ihh. O cara é gringo. – pensei. E era mesmo. Com sotaque perfeito e tudo. Para não passar vexame, tentei arranhar alguma coisa.
- Oh, no muito. More or less, entende? Meu inglês não ser very good. Você não speak minha língua?


Aí o cara começou a falar um português de gringo, todo enrolado, pra ver se eu entendia alguma coisa. É engraçado quando a gente não entende a língua do outro e começa a falar pausadamente, achando que assim vão entender o que estamos dizendo.
- Eu ser um turista inglês. Meu mala ser roubado em seu terra. – disse isso e me passou um pequeno papel, com um risinho meio constrangido.
O bilhete estava escrito em bom português, dizendo que o gringo em questão havia sido roubado e precisava de R$ 2,00 para voltar ao hotel e pegar o resto de suas coisas. Pô, puta sacanagem hein?! Levaram tudo do cara. Fiquei com a maior pena e dei o dinheiro pro sujeito voltar.

- Não te preocupas, hermano. Mi casa, su casa, understand? – falei, já misturando os idiomas.
- Oh, thank you very much. – me disse ele, todo emocionado.
- Como? Very macho? Quem não é macho aqui, rapaz?!
Mas o pobre turista inglês se adiantou a corrigir o mal entendido.
- Eu querer dizer o-bri-ga-do.
- Ah, bom. Sendo assim, tudo bem. Não tem de quê.
E lá se foi o gringo.
Fiquei pensando naquilo durante a semana inteira. Era impressionante como a violência estava crescendo. Não respeitavam nem mesmo os gringos banguelas, pô. Absurdo. Mas a surpresa, de verdade, a cidade de Natal guardou pra minha volta de Maceió.

Assim que desembarquei de volta da minha terra, na saída da rodoviária, avistei uma figura familiar. Vinha se aproximando como quem não quer nada. Quando chegou mais perto, pude reconhecer perfeitamente. Careca, vermelho, sorriso banguela etc. Não demorou muito para o homem falar comigo.
- Excuse me, please. Eu ser um turista inglês... – começou ele.
Na hora, fiquei furioso. Respondi na bucha:
- “Excuse me, please” é o cacete, rapaz!
Era o gringo da outra semana. Lá vinha ele com o mesmo bilhetinho e a historinha pilantra. Que ladrão safado! Tinha me dado um golpe com aquela conversa de turista inglês roubado. Fiquei muito puto. Inglês son of the bitch da peste.
- Tu é muito cara de pau “mermo”, né? Tu tá achando que a gente é trouxa?! Que é só chegar aqui falando inglês e passar a perna nos outros?! We have bananas, tá ligado?!


Aí parti pra cima do bandido pronto pra encher aquela cara vermelha de porrada. Quando peguei o cara pela gola, ele começou a berrar:
- I don't understand, sir! I don't understand, sir!
- Not understand uma ova, rapaz! Vou te mostrar uma língua que todo gringo safado entende.
- Help, help, help! – gritava o ladrão.


Começou a juntar gente pra ver que confusão era aquela. Ainda acertei duas mãozadas no pé do ouvido do salafrário antes de a multidão me segurar.
- É ele! É ele! Eu sei que é ele! Me roubou outro dia com essa conversa mole. – eu gritava desesperado.
Como as pessoas não me soltavam, o larápio do gringo acabou escapando. Mas eu continuava gritando, por entre os braços que me seguravam:
- Come back, seu ladrãozinho de merda! Come back! The book is on the table, rapaz! Fuck you! E mother fucker também! Tá pensando que é só assim?! Na minha terra é diferente, ouviu?! We have bananas, man! We have bananas!
Natal ainda vai me matar.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Detalhes

Por João Paulo da Silva

Oportunidades são perdidas, casamentos se desfazem, amizades terminam e amores são abortados antes mesmo de começarem. Tudo isso por causa dos detalhes. Por menores e mais insignificantes que pareçam, os detalhes podem decidir os rumos de nossas vidas. Pense quanta coisa deixou de acontecer porque você simplesmente não deu a devida atenção aos detalhes. Ou, ainda, fatos que poderiam ter sido evitados caso você tivesse percebido o papel decisivo dos detalhes nas relações humanas.

A maioria de nós – muitas vezes de forma inconsciente – está sempre querendo se convencer de que os pormenores da vida não têm lá essa importância toda. A verdade, entretanto, é que os pequenos aspectos de nossa existência acabam realmente ocupando um grande espaço na hora das definições, ainda que muitos não percebam isso. Eu, por exemplo, em várias ocasiões da vida subestimei a força dos detalhes. E foi justamente por esta razão que acabei perdendo alguns dos amores que me apareceram. Detalhe é fogo.

Primeiro foi a Jéssica, quando eu tinha uns 7 ou 8 anos. Loira, cabelos encaracolados, magra, rostinho de anjo, linda. Parecia uma modelo gaúcha. E o melhor: na 2ª série do primário, sentava ao meu lado na escola. Era uma companhia inseparável, fazíamos tudo juntos. Aí foi pintando aquela paixãozinha de infância, de ambas as partes. E eu teria conseguido namorar a Jéssica se ela um dia não tivesse notado uma verruga que eu tinha no indicador da mão direita. Foi o fim. Dali em diante, a Jéssica não podia olhar para a minha verruga que tinha logo ânsias de vômito. Aí mudou tudo. Bastava eu chegar perto para ela gritar: “Sai daqui, João! Não chega perto com essa coisa!”. Maldito detalhe.

Depois veio a Pâmela, aos 11 anos. Também na escola. E também loira e linda. Chegamos até a trocar cartinhas carinhosas e a dividir o lanche no recreio. Parecia coisa séria mesmo. Apostei todas as minhas fichas. Estava convicto. Nada impediria aquela iniciante história de dar certo. No dia em que eu havia decidido pedi-la em namoro, ocorreu a tragédia. Durante o intervalo das aulas, no pátio da escola, em meio a outros colegas, eu e a Pâmela conversávamos. Não lembro exatamente o quê, mas alguém na hora contou um caso que me fez rir bastante. Graças à crise de riso, acabei deixando escapar um sonoro pum. Ficou todo mundo me olhando estranho, principalmente a Pâmela que fez logo uma careta. Pronto. Não deu outra. Estava claro que a relação não se sustentaria diante daquele pum. E não adiantou eu argumentar que tinha sido apenas um punzinho e tal. Um pum era sempre um pum. Perdi a Pâmela e ainda ganhei um apelido, que obviamente não revelarei aqui.

Com a Luana, minha vizinha, tinha tudo para ser diferente. Mesmo porque, aos 12 anos, eu era praticamente um homem. Já tinha até bigode. Bem fininho, é verdade. Mas ainda assim um bigode. E um verdadeiro homem jamais se submeteria a vexames como os que eu tinha passado. Afinal, o momento era outro. A Luana apertava as minhas bochechas, me dava bitoquinhas (selinhos) e dizia que se casaria comigo quando eu crescesse. Mas eu não estava disposto a esperar e sempre respondia prontamente:

- Não é melhor a gente casar primeiro?! Aí você me espera sem perigo nenhum, porque já vamos estar casados mesmo.
Ela sorria e dizia para a minha mãe:
- Uma graça esse seu filho, né?!


Um dia resolvi dar um ultimato naquela história. Arrumei uma bolsa, coloquei umas roupas e fui para a porta da casa da Luana, esperá-la voltar do trabalho. Quando ela chegou à noite e me viu cochilando, ficou toda compadecida. Falei que estava ali pronto para me casar e que não aceitaria um “não” como resposta. Mas aí a Luana veio com uma conversa de que havia um pequeno detalhe que impediria nosso casamento.

- Qual? – eu quis saber.
Ela riu, provavelmente achando graça da postura de homem que eu estava querendo assumir.
- Nossa idade, querido.
- Mas por quê? Só por que você tem 22 anos e eu tenho 12?! Isso é só um detalhe, Luana.

Eu, porém, ainda não compreendia a força decisiva que possuem os detalhes. Só depois o tempo faria o favor de me ensinar. É como me disseram uma vez: “No amor e na guerra, o importante são os detalhes”.

Você duvida? Eu não.
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Obs.: Por motivos de trabalho acumulado, excepcionalmente desta vez o blog As Crônicas do João está fazendo sua postagem na segunda-feira. No próximo domingo, tudo voltará ao normal. A mesma justificativa vale para as duas semanas em que não houve postagem. Abraços.