domingo, 22 de março de 2009

Sobre o Monstro do Armário e a Assembleia Legislativa

Por João Paulo da Silva

Sala de aula. O professor de Língua Portuguesa questiona seus alunos sobre substantivos coletivos.
- Então, queridos alunos, vamos ver se vocês conhecem os substantivos coletivos. Qual é o coletivo de camelos?
- Cáfila! – respondem todos.
- Muito bem. E o de lobos?
- Alcateia!
- Perfeito, turma! E o de abelhas?
- Enxame, professor!
- Maravilha! Vocês estudaram, hein! Agora eu quero ver se vocês sabem este. Qual é o coletivo de ladrões?
A resposta foi unânime.
- Assembleia Legislativa!

A história me fez refletir sobre a atual política alagoana. Desde que a Operação Taturana revelou que deputados desviaram quase 300 milhões dos cofres públicos, o parlamento alagoano se transformou numa novela ruim com capítulos cada vez mais grotescos. É um tal de entra-e-sai, fica ou não fica, abre-e-fecha. Um horror. No embalo do novo acordo ortográfico, a Assembleia Legislativa resolveu adotar um novo verbo: malufar. Eu malufo, tu mafulas, ele malufa, nós malufamos etc. Teve gente que adorou.

Seja na esfera nacional, estadual ou municipal, a corrupção é a mesma. E são sempre os mesmos partidos. Em que, por exemplo, o mensalão do PT é diferente das maracutaias das siglas dos Taturanas? Mas a impunidade dos crimes na política tem a sua utilidade pública. Serve para mostrar que a Justiça trabalha com dois pesos e duas medidas e que de cega ela não tem nada. Sabe exatamente quem deve ou não prender. Para a população marginalizada das favelas, o remédio é pânico e pólvora. Para políticos corruptos, regalias e impunidade. Receio que a Força de Segurança Nacional esteja procurando criminosos no lugar errado.

O escandaloso caso da Assembleia parece ser a apoteose da falência daquilo que chamam de “instituições democráticas”. Fico imaginado o que aconteceria com a política se colocássemos em prática apenas duas medidas: prisão e confisco dos bens dos corruptos e a instituição de mandatos revogáveis a qualquer momento. Pensem: na primeira pisada na jaca, o povo poderia destituir o político na hora. Fica aí a sugestão.

Minha geração – assim como tantas outras – foi educada por pais que utilizavam o Monstro do Armário para obrigar seus filhos a comerem legumes, por exemplo. Hoje é diferente. Já sei de pais que preferem métodos mais radicais. Ao menor sinal de desobediência dos filhos, disparam: “Olha aqui, garoto. Se não comer essas verduras, te tranco na Assembleia, ouviu?!”.
Uma malvadeza.

domingo, 15 de março de 2009

No meio da massa

Por João Paulo da Silva

Agora, distante quase um mês do carnaval que vivi este ano em Pernambuco, posso relatar, sem os exageros eufóricos do momento, as experiências daqueles dias de “chuva, suor e cerveja”.

Recife é uma cidade apaixonante (onde estará, meu Deus, a doce Colombina que deixei por lá?). É claro que não está imune aos problemas existentes na maioria das cidades, porém há alguma coisa de beleza em suas ruas e lugares. Algo que contagia, que se pega no ar. Pontes, mangues, rios, bares, edifícios históricos. É, sem sombra de dúvidas, um pólo multicultural. Tenho a impressão de que daqui pra frente todos os caminhos me levarão ao Recife. Foi lá que encontrei meu “Marco Zero”. Maceió que me perdoe, mas Recife é fundamental.

Cheguei à cidade para passar o carnaval, e não fosse pela necessidade de voltar para trabalhar eu teria ficado e fincado raízes. Até pensei em montar uma barraca e viver da caridade alheia, mas, por ainda me restar um fio de racionalidade, desisti. Mesmo assim, após o anúncio das cinzas da folia, decidi ficar na “Veneza Brasileira” por mais três dias. Quase telefono para meu chefe dizendo que um grupo de pernambucanos havia me seqüestrado e que só me libertariam depois do carnaval de 2012.

Foi a minha primeira vez, confesso. E – dizem por aí – a primeira vez a gente nunca esquece. Por duas razões: ou foi muito boa ou muito ruim. Mas minha estréia foi atípica. Ainda não encontrei palavras para classificá-la. Só posso dizer que a festa despertou em mim coisas inomináveis, o que – talvez – já ajude um pouco. Nos palcos montados no Recife Antigo, assisti a shows de Lenine, Nação Zumbi e Cordel do Fogo Encantado. Mas quando vi, no Marco Zero, Miúcha cantar Noite dos Mascarados, todos os pêlos do meu corpo (e eles não são poucos) imediatamente se arrepiaram, numa espécie de delírio apoteótico.

Durante minha temporada em Pernambuco, passei também por Olinda e suas ladeiras de ruas estreitas. Como não sei dançar, digo que me mexi ao som do frevo e bebi cerveja nos aconchegantes bares do Recife Antigo. Entretanto, nenhuma cerveja foi melhor do que a que tomei num boteco conhecido como Bar do Reggae. Às margens do Capibaribe, gente pobre e alegre bebia sem grandes preocupações. Na ocasião, um gari bêbado sentenciou: “Hoje eu só chego em casa com a cueca pelo avesso. Aliás, vou chegar é todo pelo avesso”. Algo impagável.

Bom, guardei na melhor parte do meu coração aquilo que me pareceu ser o mais importante do carnaval do Recife. Posso dizer – convicto até os ossos – que o Galo da Madrugada foi a mais densa e profunda experiência sociológica que já vivi. Considerado o maior bloco de carnaval do mundo, o Galo arrastou esse ano mais de 2 milhões de pessoas pelas ruas do centro da capital pernambucana. Eu era uma delas. Havia mais gente no Galo do que normalmente há no próprio Recife.

Minha primeira constatação a respeito do bloco é a de que nele não existem leis da física. Sabe aquela história de “dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço”? Esqueça! Não há como andar. O que existe, na verdade, é uma força (vinda sabe-se lá de onde) que empurra todo mundo para frente no encalço dos trios.

No Galo, não há indivíduos. Só a massa. Você é a massa e a massa é você. O esfrega-esfrega é geral, mas ninguém grita “assédio, assédio!”. Enquanto o Galo está nas ruas, das 10h até as 18h, fica a impressão de que, pelo menos naquele dia, não há classes sociais e todos são livres. Contudo, é só impressão. Basta olhar para baixo e perceber crianças, velhos e adultos catando latinhas de cerveja vazias. Nem na festa a labuta pode parar.

De qualquer forma, o Galo da Madrugada é a maior festa popular que já vi. É como se fosse um espelho de todos nós. É lá que o povo encontra a si mesmo. Entre as figuras escalafobéticas que encontrei no bloco, estava o sobrenatural Michael Jackson. Acompanhado por dois seguranças e bem mais escurinho (talvez devido ao sol do Recife), ele acenava sorridente para os fãs. Outra cena impagável.

Um dos momentos de maior tensão foi a passagem pela Rua da Concórdia, a via mais estreita do trajeto. Eu não sei exatamente o que aconteceu porque na hora fechei os olhos. Para mim, ainda permanece um mistério como aquele mundo de gente conseguiu passar por uma pequena brecha. Místicos e cientistas precisam explicar o fenômeno.

Por fim, saí do Galo sem minhas pernas, meus ouvidos e carregando uma dúvida na cabeça. No meio da massa, senti alguém passar a mão na minha bunda. Mas foi uma passada daquelas com gosto mesmo. Se o gesto foi motivado por razões sexuais ou interesses financeiros, eu nunca saberei. Taí, mais um mistério do carnaval do Recife. No ano que vem, estarei novamente no meio da massa. Desta vez, podendo cantar de verdade: “Voltei, Recife! Foi a saudade que me trouxe pelo braço...”.

domingo, 8 de março de 2009

Dulce

Por João Paulo da Silva

Ouvir a Dulce contar a própria história é quase como ouvir as Marias, Estelas, Luízas e Marlenes também contarem as suas. Ao longo do tempo, o mundo deixou marcas profundas em todas elas. A diferença, entretanto, é que nem todas as Marias, Estelas, Luízas e Marlenes ocupam o mesmo espaço nas “leis da física social”. A dor das mulheres que trabalham ou estão desempregadas é bem mais aguda do que a das que aparecem nas colunas sociais.

A Dulce nunca apareceu em colunas sociais. Casada há dez anos e mãe de cinco filhos, havia trabalhado fora de casa no passado, bem antes do casamento, mas não trabalhava mais. O marido dizia que o trabalho dela era lavar, passar, cozinhar e cuidar das crianças. O dinheiro que ele ganhava não era suficiente para todas as despesas. Quando a Dulce falava sobre isso, ele batia nela. Pensou muitas vezes em ir embora, em voltar para a casa dos pais. Mas estes lhe diziam que ela não podia fazer isso. “Você tem que viver com seu marido, com o pai dos seus filhos. Se entenda com ele”. Ela sabia que precisava sair dali. Mas onde iria morar? Como iria viver? Com medo das privações da vida, a Dulce ia suportando calada a miséria e a desgraça de seus dias.

A situação da família piorava a cada criança que nascia. Mais uma boca para comer significava menos comida na boca de todo mundo. A Dulce amava seus filhos, mas sabia que não poderia criar outros. Uma vizinha, então, falou pra ela de uma pílula que evitava filho. Escondida do marido, a Dulce passou a usar o remédio. Como não tinha dinheiro para comprar, era a vizinha que arrumava os comprimidos. Desconfiado, o marido acabou descobrindo e achou que Dulce andava tomando aquelas pílulas porque tinha outro homem. Nesse dia, ele a espancou e a proibiu de voltar a usar o remédio. Pouco tempo depois, ela estava grávida de novo.

Mas decidiu que não poderia ter aquele filho. Não haveria condições de criá-lo. O melhor era fazer um aborto. “Só em caso de estupro ou risco de morte para a mãe”, disseram. Algumas pessoas chegaram até a condená-la pelo fato de querer interromper a gravidez. “Você não pode fazer isso. É um crime!”. Dulce não entendia. Se o aborto era um crime, que nome eles davam, então, à vida miserável e cheia de privações que ela sempre levou? Por fim, acabou tendo o filho. Mais um.

Quando outra vez foi agredida pelo marido, Dulce, incentivada por uma amiga, resolveu que não suportaria mais viver daquela forma. Disseram a ela que havia uma lei que protegia as mulheres contra a violência doméstica. “Agora o agressor vai pra cadeia.”, contaram. Mas não demorou muito para Dulce perceber que a tal lei não era essa proteção toda que o governo falava. Dependente economicamente do marido, como Dulce iria se sustentar sem emprego? Onde se abrigaria até conseguir uma casa para morar? Com quem deixaria os filhos na hora de sair para arranjar trabalho ou mesmo para ir trabalhar?

A Dulce só não foi morar na rua porque uma amiga a acolheu. Para alimentar as crianças, precisava de dinheiro. Mas não havia emprego para todo mundo. Depois de muito tempo, apareceu um. De faxineira. “Como se as mulheres só soubessem fazer isso”, reclamava Dulce para si mesma. Na empresa, ela fazia o mesmo serviço que o Salvador, mas ganhava menos. O Salvador achava isso errado. “Fazem você de mão-de-obra barata pra lucrar mais. Nesse mundo, dizer que mulher é inferior é um bom negócio pra eles.”.

Outro dia, depois do trabalho, Dulce assistia em casa a uma reportagem na TV sobre o dia Internacional da Mulher, o 8 de março. O repórter falava sobre o espaço que as mulheres conquistaram no mercado de trabalho, a independência, a liberdade e sobre como todas elas eram iguais atualmente. Dulce sabia que o seu mundo e o de tantas outras que viviam como ela não era aquele pintado na TV. A verdade não é a das colunas sociais.

Do seu canto, observando com perplexidade tudo aquilo e pensando na própria vida, Dulce murmurou algo que nem ela mesma ouviu. Mas, lá dentro do peito, ela sentiu o baque de suas palavras como se fossem tambores anunciando uma novidade.