domingo, 29 de janeiro de 2012

A dignidade que nos roubam

Por João Paulo da Silva

Todas as noites eu deito minha cabeça num travesseiro confortável, me espalho numa cama bem quentinha e durmo tranquilo, embaixo de um teto erguido com muito suor. É por ter uma casa que não estou sob as marquises ou ao relento no centro da cidade. É por ter onde morar que não preciso me cobrir com papelões ou fazer uma fogueira para me proteger do frio. É por ter um lar que acho bonito a chuva batendo na janela. É para este lugar que eu sempre retorno, ao final de cada dia de trabalho, desejando apenas o mesmo descanso daqueles que lutam para ganhar a vida honestamente. Minha casa não é nenhum palácio, não ocupa uma rua inteira do quarteirão, não possui ostentações desnecessárias. No entanto, é nela que abrigo o meu sossego, a minha paz. A casa de um homem, de uma mulher ou de uma família é um templo inviolável. É o local onde nos encontramos protegidos, seguros de que ali ninguém irá nos incomodar. A casa da gente, na verdade, é a última trincheira da nossa dignidade. Foi isso que roubaram dos moradores do Pinheirinho.

domingo, 22 de janeiro de 2012

O primeiro beijo

Por João Paulo da Silva

Eu devia ter uns oito anos, acho. Na rua em que eu morava havia uma garota linda. A casa dela ficava umas duas ou três depois da minha. Eu gostava de tudo nela. Do cabelo, dos olhos, do jeito de andar, da boca. Ah, a boca. Meu Deus, que boca! Ok. Tudo bem. Eu sei que era só uma paixonite de criança, daquelas que todo mundo tem na infância. Mas a verdade é que essas coisas costumam deixar estragos na vida da gente se não forem concretizadas. Eu sonhava em beijar aquela garota. Seria meu primeiro beijo e minha chance de começar em grande estilo.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Amigo íntimo

Por João Paulo da Silva

O meu melhor amigo é um homem que vejo todos os dias no espelho do banheiro da minha casa. Suas características físicas são estranhamente parecidas com as minhas. Tem uns olhos tristes, um sorriso tímido, sobrancelhas e lábios grossos, nariz delgado, uma calvície levemente acentuada e um corpo quase franzino. É um profundo conhecedor dos meus segredos mais íntimos e o único para quem posso confidenciar as minhas desilusões amorosas. Sinto-me à vontade com ele. É como se estivéssemos juntos desde o dia em que nascemos. Às vezes, ele se aventura como meu analista, vasculhando os vários cantos escuros e empoeirados do meu subconsciente. Procuramos conversar todas as manhãs em frente ao espelho. São diálogos abertos e naturalmente silenciosos. Ele tem um lado moralista que eu não valorizo muito, pois usa-o constantemente para reprimir algumas de minhas atitudes. Mas é apenas com ele que me vejo suficientemente bem para abrir meu baú secreto, onde guardo minhas ações mais nobres e os meus sonhos mais soberbos. Estamos misteriosamente presos um ao outro.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Pra frente, Brasil!

Por João Paulo da Silva


Dia normal no Brasil. Dois velhos conhecidos tomam café da manhã numa padaria. O assunto não poderia ser outro. Conversam sobre o “novo” momento econômico e político do país.
- Viu ontem o jornal? Já não somos mais os primos pobres no mundo.
- Não? Por quê? O povo ganhou na mega-sena por acaso?!
- Não, nada disso. É que agora somos a sexta maior economia do planeta, rapaz! Nosso PIB chegou a 2,51 trilhões de dólares. Ficamos na frente até do Reino Unido! Não é fantástico?!
- Sim, claro que é. Como também é fantástico o Brasil ter 16 milhões de miseráveis, mesmo sendo o sexto país mais rico do mundo.


segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Dois Brasis

Por João Paulo da Silva

Não sei se você sabe. Mas existem dois Brasis. Parafraseando um autor cujo nome não lembro, posso dizer que nos dividimos em dois grupos. Aqueles que têm mais jantares do que apetite e os que têm mais apetite do que jantares. Pode até parecer uma definição simplista demais. No entanto, isso não faz dela uma mentira. É claro que existe um evidente confronto de classes nisso tudo. Tratemos desses dois Brasis de maneira metafórica. Até mesmo porque – “nunca na história deste país” – uma metáfora foi tão real.