domingo, 20 de janeiro de 2008

A perda da inocência

Por João Paulo da Silva

Vou usar um clichê.

A vida é uma enorme travessia. E pelo caminho vamos perdendo uma penca de coisas importantes. Tudo bem. Eu sei. Já tá manjado. Mas é que eu sempre quis dizer isso num texto. Tem a ver com uma espécie de magia que a frase exerce sobre mim. Não sei. Gosto da metáfora. É isso. É a metáfora.

Quando nascemos, nos encontramos com o desconhecido. E aí ficamos fascinados. Até uma certa idade, claro. Porque depois do fascínio vem a decepção. Entre o deslumbramento e o medo, surge o mágico. É aquela época em que ainda não descobrimos as leis que fazem girar as grandes engrenagens, que movimentam a carroça do mundo. E é exatamente por isso que não percebemos a farsa. À medida que crescemos, pequenas rupturas vão se dando no nosso imaginário fabuloso. Mas sempre levando uma parte importante de nossas ilusões. Até que, finalmente, nos deparamos com a quebra do elo irrecuperável, com a desgraça absoluta, com a apoteose do caos. Com a perda da inocência.

A inocência era aquilo que nos permitia o encanto.

Quando eu era inocente, imaginava meu pai como o ser mais poderoso da Terra, corajoso e inquebrantável. Aí chegou o dia em que eu apareci com o olho roxo em casa. Briguei na rua. E exigi que meu pai fosse lá fora e desse uma surra no garoto que me bateu e no pai do garoto também. Meu pai foi. Com cara de bravo, quase dizendo “vamos dar uma lição nesses frouxos!”. Ao avistar o pai do menino que me bateu (um negrão com três metros de altura e dois de largura), uma rápida mudança se expressou no rosto de meu pai. Ele começou a falar com mansidão, argumentou que violência só gera violência, que o melhor mesmo era usar a diplomacia, o diálogo. E acabou concluindo com uma premissa cristã: “Devemos perdoar nossos inimigos, filho”. Foi o fim. Me convenci de que meu pai era um frouxo. Um mela-cueca. E vi cair por terra um importante pilar da inocência. Parte do encanto se desfez. Foi a primeira ruptura.

E os mágicos, hein?! Estes sim! Davam sinais de que preservariam minha inocência. Tudo ilusão. Era fabuloso achar que aqueles sujeitos realmente cerravam mulheres ao meio e depois juntavam as partes, flutuavam diante dos meus olhos, descobriam qual era a carta certa só com a força do pensamento, etc etc etc. Logo após o Mr. M, tudo ruiu. Hoje ninguém mais se atreve a tirar coelhos da cartola ou cortar mulheres. Corre o risco de ser chamado de charlatão. A segunda ruptura. Outra decepção.

A terceira ruptura tem a ver com a TV em cores. Meu pai costumava ver muitos filmes em preto e branco. Eu cresci vendo esse tipo de filme. Aquela caixa mágica que produzia universos era fascinante. Vi drama, terror, western. O mundo se revelava para mim via TV. Desconheço completamente as causas do que vou dizer agora. Mas de alguma forma guarda seu deslumbramento. Até uma certa idade – não sei bem qual – eu achava que os filmes em preto e branco eram dessa forma porque, na época em que foram gravados, o mundo também era preto e branco. Na minha cabeça o mundo só ficou colorido depois que inventaram a TV em cores. Imagine o tamanho de minha decepção quando descobri que o mundo sempre fora colorido. E que a TV não tinha nada a ver com isso.

Mas a desgraça absoluta, o caos apoteótico e a ruína do meu castelo de baralho só vieram mesmo com a perda total da inocência.

Foi no circo. Eu adorava o circo. Ainda adoro, mas não da mesma forma. Assistia, deslumbrado, ao espetáculo. Leões, elefantes, girafas, equilibristas, cuspidores de fogo, palhaços. Palhaços! Foi por conta de um palhaço que o mundo desabou.

Era intervalo do espetáculo, momento em que os funcionários do circo passam oferecendo guloseimas. Eu estava com fome. Queria comer alguma coisa. Aí veio o palhaço. Distante de mim alguns metros, ele gritava passando entre os espectadores:

- Olha a pipoca! Olha a pipoca! Criança não paga! Criança não paga!

Fiquei eufórico. Seria possível? Criança não paga? Era possível sim! Eu tinha ouvido muito bem. Não pensei duas vezes. Corri em disparada na direção do palhaço, certo de que ganharia minha pipoca. Foi quando o palhaço, vendo que eu estava próximo, me fez conhecer a face cruel dos homens.

- Olha a pipoca! Olha a pipoca! Criança não paga! Só quem paga é a mamãe!

Estanquei. Estava murcho feito um maracujá. Finalmente, do fascínio se fez a decepção. Do deslumbramento revelou-se a farsa. A longa travessia da vida levou o que de mais importante eu tinha: a inocência.

Para capitalismo não bastava apenas o lucro.

Ele queria também meu encanto diante do mundo.

domingo, 6 de janeiro de 2008

Ops!

Por João Paulo da Silva

Minha falecida avó costumava dizer:
- Conhece-se um homem mais por suas ações do que por suas palavras.
Vovó só fez até a 4ª série do primário, mal aprendeu a ler e a escrever. Mas sabia das coisas. Era um poço de sabedoria.

Certo. Acho que é isso mesmo. Nossas ações parecem dizer muito mais sobre quem realmente somos. Mas... sei lá. Sabe aqueles momentos em que a gente deixa escapar o que pensa sobre determinado assunto? Algo como um arroto do pensamento? Pois é. Essas ocasiões também guardam importantes revelações.

2007 foi um ano definitivo. Repleto de “preciosas declarações” que nos ajudaram a desmascarar – de uma vez por todas – várias figuras do cenário político brasileiro. A principal delas, claro, foi o Lula. Tá, eu sei. Eu sei que você vai dizer que já sabia quem era o Lula. Sabia que ele manteria os planos neoliberais, que continuaria pagando a dívida externa, que cortaria direitos e arrocharia os salários. Certo, certo. Disso eu também sabia. Mas vai dizer que você não ficou nenhum pouquinho “surpreso” com a cara-de-pau do Lula em suas reveladoras frases de 2007? Pois então. Foi por isso que eu selecionei – em homenagem ao ano que findou – 7 belíssimas pérolas que o presidente deixou escapar. Sem nenhum remorso, claro. Ops!

Logo no começo do ano, em março, Lula soltou o seguinte: “Os usineiros de cana, que há 10 anos eram tidos como se fossem os bandidos do agronegócio deste país, estão virando heróis nacionais e mundiais.”. Juro que na hora tive uma taquicardia. Os recordistas do trabalho escravo no país são os usineiros da cana! Como podem ser heróis?! Só se for pra montar uma Super-Liga do Mal. E outra: não consigo imaginar alguns destes “heróis” usando a cueca por cima das calças. Tenho até náuseas.

Dias depois, falando sobre o Collor, Lula disse: “Ele pode dar uma grande contribuição ao país.”. Ora! Mas já deu. Minha poupança que o diga. Ok. Tudo bem. Em se tratando de maracutaia, Collor pode ajudar bastante. É um mestre.

No mês em que se homenageia o dia de luta do trabalhador, o presidente, que já foi um, mostrou sua cara de tucano: “Alguém fazer 90 dias de greve e receber os dias parados (...) deixa de ser greve e passa a ser férias.”.
Greves do ABC. Quem te viu, quem te vê!

No final de junho, assistimos a chacina organizada pelo governo do Rio no Complexo do Alemão. Mesmo com as provas de que houve execuções de jovens negros e pobres, Lula disparou sua metralhadora: “A polícia não está diante de nenhuma pessoa santa. Eu acho correta a atuação do governo do estado do Rio de Janeiro no Complexo do Alemão.”. Positivo, presidente. Então já está mais do que na hora da população pobre das favelas descer o morro e baixar a porrada em deputados, senadores, presidente. Ops!

Depois do vergonhoso troca-troca de cargos e da liberação de verbas arquitetada para salvar Renan Calheiros da forca, Lula declarou: “Eu não faço barganha, faço acordo programático.”. Certíssimo! Barganha é coisa de bandido, ora essa! O que houve foi, de fato, um acordo programático. Baseado num programa para a corrupção, claro. Mas ainda assim um programa.

Em dezembro, Lula mudou. Sobre a CPMF, disse: “Eu prefiro ser uma metamorfose ambulante, mudar de acordo como as coisas mudam”. Todo mundo percebeu a mudança, presidente. Ora, quem não notou que o senhor já não pensa nem age como antigamente? Mudou tanto que ficou irreconhecível. Até mesmo para a dona Marisa. Fico imaginando a cena: a primeira-dama acordando pela manhã e, virando-se para o homem ao seu lado, dizendo:
- FHC?! O que você está fazendo aqui?!
- Que história é essa de FHC, Marisa? Sou eu. O Lula.
- Sério?! Mas não é que eu nem percebi!
Por fim, encerrando o ano com uma patética piada de mau gosto, Lula falou sobre a greve de fome de dom Cappio: “Eu sei o que é greve de fome, dá uma fome danada.”. Não poderia ter sido pior.
Há muito tempo Lula esqueceu o que é uma greve. Há mais tempo ainda esqueceu também o que é a fome. E não é Alzheimer. Garanto.