domingo, 29 de maio de 2011

As coisas e o que fazemos com elas

Por João Paulo da Silva

Ceará-Mirim, Rio Grande do Norte. Maio de 2011. Eu tinha ido cobrir um protesto de 200 trabalhadores rurais sem terra naquele município. Com suas camisas e bandeiras vermelhas, eles deslizavam pela principal avenida do centro da cidade como um rio de sangue, som e fúria. Era o sangue dos companheiros mortos em Eldorado dos Carajás, o som das reivindicações urgentes e a fúria da necessidade de viver. A caminhada ia em direção à sede da Prefeitura, onde o MST exigiria do chefe do executivo municipal a construção de uma escola nas proximidades de seus assentamentos na região.

A exigência dos sem terra era apenas para ter o direito à educação, mas a polícia foi chamada e os supermercados fecharam as portas. Aglomerados em frente à Prefeitura, homens, mulheres e crianças cantavam e pediam para ser recebidos. Entre eles e o prefeito, um cordão de policiais armados. Entre os pobres e a educação, as armas. Entre o povo e o futuro, o descaso. Historicamente, sempre foi assim. A violência sempre chegou primeiro do que os direitos.

Mas o impasse estava posto. Os trabalhadores não sairiam dali enquanto não fossem recebidos pela Prefeitura. E a polícia não sairia da frente enquanto não recebesse a ordem. Provavelmente para evitar desgaste político, o prefeito resolveu atender uma comissão de sem terras. Por alguma razão que até hoje desconheço, eu acabei indo junto com o grupo de negociação. Naquela euforia toda, ainda pude ouvir um trabalhador dizer: “Ele é jornalista. Ele é jornalista. Bota ele na comissão também.”. Talvez fosse pela possibilidade de registrar tudo. Não sei.

Acompanhei toda a conversa entre o prefeito e os trabalhadores. Horas depois, ficou a promessa de atender a reivindicação do MST. Educação nos assentamentos. Simples assim. Mas a lição dessa história é outra. Não é sobre como podemos conseguir nossos direitos exercendo pressão sobre os governantes. Muito embora esta seja uma boa lição. A aula mesmo é sobre as coisas e o que fazemos com elas.

Dentro do prédio da Prefeitura, na ante-sala do gabinete do prefeito, eu aguardava a comissão ser recebida. Do lado de fora, com a rua fechada, o restante dos trabalhadores cantava hinos de luta. Como quem não quer nada, um policial se aproximou de mim e perguntou:
- Você está com eles?
- Só acompanhando a negociação. Sou jornalista.
- Hum... Queria ver uma coisa com você.
- Pois não.
- Veja, lá fora tem muita gente armada com facões e foices. E nós não queremos que nenhuma confusão aconteça. Não poderíamos ver a possibilidade desse pessoal aí entregar essas armas? Nós recolhemos e depois devolvemos. Só por segurança. – argumentou ele.
- Acho muito difícil, policial. Mesmo porque não há ameaça de nada lá fora.
- E aquelas armas?
- Que armas?
- Aqueles facões e foices.
- Não são armas, policial. São instrumentos de trabalho. Foram feitos para o serviço no campo. Não têm como finalidade ferir ninguém.
- Sim, eu sei. Também tenho meus instrumentos de trabalho. – disse ele, batendo de leve em sua pistola presa ao coldre.
- É diferente. Não é a mesma coisa. O seu instrumento de trabalho foi feito com o objetivo específico de matar. – respondi eu.

Mas o policial já estava se afastando com um riso no canto da boca.

domingo, 22 de maio de 2011

O Censo e a nova classe média

Por João Paulo da Silva

Foi só depois que o IBGE divulgou os resultados finais do novo Censo que eu consegui descobrir quem é a nova classe média da qual o governo tanto fala. Estou abismado. Como não pude vê-la?! Como não pude encontrá-la, esbarrar com ela por aí?! Dizer um “Olá! Olha, parabéns, viu?! Isso é que é ascensão social, hein!”. Estava tão próxima a mim, e eu não consegui distingui-la. Santa Desatenção! Ela estava praticamente embaixo do meu nariz. Aliás, para minha completa e absoluta surpresa, eu também faço parte dessa nova classe média! Meu Deus, preciso urgentemente visitar o oftalmologista e trocar esses óculos. Francamente. Vai vendo aí.

Pobreza? Que pobreza?

Nos últimos 10 anos, a pobreza caiu 50,64%. Isso porque, no Brasil, o pobre é o sujeito que possui uma renda mensal menor que R$ 151, segundo as pesquisas. Já na extrema pobreza encontra-se o sujeito que possui renda mensal de até R$ 70. Em geral é menos, não se chega nem a isso, mas até setenta você é extremamente pobre. Quer dizer, bastou ganhar R$ 1 a mais e já saiu da pobreza ou da extrema pobreza. Entretanto, eu entendo a intenção do governo e dos institutos de pesquisa ao apresentarem os cálculos com base nesse critério. É para levantar o moral dos brasileiros. Convenhamos, ser pobre é deprimente e não ajuda a viver bem. Por isso, o melhor é acreditar que fazemos parte de uma nova classe média. Ou, como diria Millôr Fernandes, “classe mérdia”.

Sendo assim, é só através do critério dessa nova classe média que é possível compreender um diálogo entre dois desempregados numa esquina qualquer do país.

- Rapaz, esse mês, se Deus quiser, eu entro pra essa tal de nova classe média.
- É mesmo?
- Com certeza. Andei fazendo minhas contas. Tudo indica que com mais alguns bicos que já acertei pra fazer essa semana vou apurar uns R$ 160 esse mês.
- Mas olha só! Que coisa boa, hein! Parabéns, meu amigo.
- Pois é, rapaz. Vai dar até pra pagar um Chicabom pra patroa lá em casa.

O mistério do banheiro em casa

No país do futuro, o banheiro ainda é um mistério para os brasileiros alojados em 3,5 milhões de casas. Isso significa que nem na Idade Média essas pessoas se encontram, uma vez que neste período da história havia ao menos um lugarzinho com buracos no chão para lá deixarmos as “necessidades”. Inclusive, penso eu, que essa parte da população sem banheiro também deve estar enquadrada na nova classe média. Bom, na mérdia eles já vivem e acho que até o penico é um mistério.

Fico imaginando os moradores destas mais de três milhões de residências (estou sendo generoso) passeando pelas orlas de algumas de nossas cidades. Quando menos se espera, pimba! Dão de cara com um desses banheiros químicos. Emocionados, entram e saem diversas vezes do pequeno recinto. Não acreditam nos próprios olhos. Nem mesmo o Sílvio Santos e sua Porta da Esperança seriam capazes de proporcionar aquele momento. Ainda que a necessidade fisiológica não venha, passam horas sentados no vaso. A Maria, esposa do Zé, até pergunta ao marido:

- Será que deixam a gente levar um desses pra casa, meu filho? A cor combina direitinho com os tamboretes da sala.

O Censo é ainda mais terrível quando revela que 55,5%, das pessoas vivem sem saneamento básico. Ou seja, quase metade da população nunca viu água tratada, coleta de lixo e rede de esgoto. Mas o governo também deve ter uma justificativa para isso. Afinal de contas, para quê serve saneamento básico quando não se tem nem mesmo banheiro?

Incentivando jantares à luz de vela

O Censo também revelou uma preocupação dos governos em fazer com que a nova classe média seja mais romântica. Não é à toa que mais de 700 mil famílias não possuem energia elétrica em casa. Isso só pode ter uma explicação. Tanto o FHC quanto o Lula, e agora a dona Dilma, incentivam os jantares à luz de velas. Compulsoriamente, é claro. Mas não se pode negar que os governos querem salvar casamentos, ver os casais mais felizes, impulsionar o romantismo e fazer do Brasil o país do amor.

- Querida, você não vai acreditar no que eu preparei pra você.
- O que foi, Josimar?
- Vem por aqui que eu te mostro. Cuidado aí que tá escuro. Tcharam! Olha só o que fiz pra você.
- O que é isso, Josimar?
- Ué, um jantar à luz de velas. Não tá vendo as velas?
- As velas eu tô vendo. Não tô vendo é o jantar!
- Bom, a gente não tem energia e o dinheiro só deu pra comprar as velas. Mas já é um começo, não acha?

Joãozinho, o pai de família

Depois de um dia inteiro de trabalho, guardando carros e limpando pára-brisas nos semáforos, Joãozinho, um guri de nove anos, chega em casa exausto.

- Mãe, cheguei! Cadê o rango?
- Oi meu filho. Já tá saindo. Como foi no serviço?
- Foi duro, mãe. A vida tá ficando cada vez mais difícil. Hoje o dia foi brabo. Peguei um monte de cliente unha de fome. Quase não apurei o suficiente para o almoço. Coisa séria essa inflação, hein! Se continuar assim, o que eu ganho não vai dar nem pro café. Imagine pagar luz, água, aluguel e alimentação.
- Mas meu filho, eu também posso arrumar um emprego...
- Nem pensar! A obrigação de sustentar a casa é minha. O pai de família aqui sou eu.

Da mesma forma que o Joãozinho, mais de 130 mil crianças brasileiras são responsáveis por chefiar famílias. Elas, provavelmente, também fazem parte da nova classe média do governo. Como se pode ver, a ascensão social no Brasil é realmente coisa de país do futuro. Futuro sombrio, verdade seja dita. Nos últimos vinte anos, a classe que reúne pobres e miseráveis não deixou de existir. Apenas mudou de nome.

domingo, 15 de maio de 2011

À frente de seu tempo

Por João Paulo da Silva

Em 1968, aos 17 anos, meu pai era um jovem à frente de seu tempo. Sem saber, é claro. Mas ainda assim estava à frente de muitos outros homens da época. No momento em que grandes transformações sociais e comportamentais percorriam o mundo, meu velho dava sua contribuição inadvertidamente. Como alguém que faz o que é correto de maneira inconsciente, meu pai foi parte involuntária daquelas mudanças. No melhor estilo “gaiato no navio”, acabou dando sua cota para aumentar a independência das mulheres. Principalmente, a independência financeira. Tudo isso, óbvio, foi ele mesmo quem me contou. Não tenho nenhuma responsabilidade sobre o conteúdo desta história. Estão avisados.

Convidar uma garota para ir ao cinema era uma espécie de código através do qual você mostrava, implicitamente, que estava interessado nela. É claro que só o fato de a moça ir ao cinema com você não garantia que algo pudesse rolar. Mas, aceito o convite, as chances aumentavam bastante. Afinal, quando uma mulher não quer fazer alguma coisa, ela diz “não” e pronto. Ciente destas condições, meu pai – sempre que possível – convidava uma garota pela qual estivesse a fim para pegar “um cineminha”. Até aí tudo normal.

O discurso do convite de meu pai, independente da garota, não variava muito.
- Oi Fulana. Tudo bem?
- Oi Antônio. Tudo sim.
- Então, tava pensando se você não tava a fim de pegar um cineminha comigo essa tarde. Tá passando o Zorro. O que me diz?
- Ah, claro. Eu adoraria.

Parte da diferença entre meu velho e os demais garotos da época, na hora de ir ao cinema com alguém, estava no momento do encontro.

- E onde a gente se encontra, Antônio? Pode ser em frente ao cinema?
- Ah... então... acho melhor de outra forma. Vamos fazer assim: quem chegar primeiro à sessão, entra e espera o outro lá dentro, guardando o lugar. É porque tem sido um filme muito concorrido, sabe? Se ficarmos esperando um pelo outro do lado de fora, podemos não encontrar mais lugares. Vai que um de nós chega atrasado, entende? Questão de segurança, saca broto?
- Certo. Tudo bem. Sem problema, gracinha.

E assim acontecia.

Meu pai chegava ao local faltando uma hora para a sessão começar, comprava o próprio ingresso e esperava lá dentro. Quando a garota chegava, cerca de 40 minutos depois, se dirigia direto aos lugares escolhidos por meu pai, de onde ele acenava efusivamente. Daí por diante, era só deixar rolar. Na maioria das vezes, dava certo. Foi dessa forma com todas as garotas com as quais meu velho saiu. Ele chegava primeiro, elas depois.

- Ah! Agora eu entendi qual era a do senhor. – disse eu para meu pai outro dia.
- Como assim, filho?
- O senhor entrava primeiro e esperava lá dentro só para não pagar o ingresso da garota. Que mão de vaca, safado!
- Olha o respeito, moleque! Tá me chamando de pão duro?!
- Quem? Eu? Imagina!
- Não era que eu não quisesse pagar o ingresso delas. Mas... veja bem. Havia na sociedade um acordo tácito que de certa forma obrigava os homens a pagar as contas das mulheres. E eu não achava isso correto.
- Quer dizer, o senhor era pão duro mesmo!
- Não é bem assim, filho. Ouça. Eu não achava correto pagar o ingresso do cinema para elas porque aquilo representava mantê-las dependentes financeiramente de mim. E eu não queria isso, entende? Queria que elas tivessem independência.
- Tá bom. Me engana que eu gosto.
- Certo. Ok. Tudo bem que naquela época eu não sabia disso. Fazia tudo de forma inconsciente. Mas, de algum modo, eu ajudei muitas mulheres a se tornarem mais independentes, deixando que elas mesmas pagassem seus ingressos. Mesmo sem saber, filho, eu estava à frente de meu tempo. O problema é que só descobri isso agora, depois de velho.
- Tá. Sei, sei. Mas e hoje? Como é que é? Quem paga os ingressos?
- Óbvio que hoje são elas que pagam. E pagam os dois, inclusive. Estão mais independentes financeiramente. Além do mais, os ingressos de cinema estão pela hora da morte.
- Ou seja, o senhor deixou de ser pão duro para se tornar um gigolô.
- Olha o respeito, moleque!

segunda-feira, 9 de maio de 2011

No avião

Por João Paulo da Silva

Eu estava indo para Santos, cobrir um congresso nacional de trabalhadores. Foi a primeira vez que entrei em um aeroporto com o objetivo de voar. Até então, só tinha estado em um para acompanhar ou esperar alguém. Sempre tive um misto de curiosidade e medo de viajar de avião. O poeta Mário Quintana dizia que “o mal dos aviões é que não se pode descer a toda hora para comprar laranjas.”. Também é verdade que não se pode abrir as janelas para entrar um ventinho, a não ser que você queira tomar o ventinho lá fora. Seria muito bom se estes fossem os únicos males. Mas, infelizmente, não são.

Quando se viaja de avião, por exemplo, as chances de sobrevivência em caso de desastre são bem menores do que em um acidente de ônibus. Em geral, toda vez que um boing se esborracha no chão ou cai no meio do oceano é quase improvável encontrar alguém vivo. Além disso, não há muitas notícias de terroristas sequestrando ônibus e arremessando-os contra edifícios. Bom, já com aviões... Mas, de todo modo, segundo o Superman, voar ainda é a maneira mais segura de viajar. E foi pensando nisso que eu entrei no avião naquela madrugada.

Era uma bobagem achar que alguma coisa poderia acontecer naquele dia, e justamente comigo. Por isso, mesmo eufórico com meu primeiro vôo, procurei relaxar e aproveitar o momento. Afinal, seriam quatro horas com a cabeça, literalmente, nas nuvens. Estava tão emocionado com a viagem que na hora nem notei que minha passagem não era de primeira classe. Mas só o fato de viajar de avião já faz a gente ficar metido à besta. Enquanto arrumava a bagagem de mão, ainda pensei em perguntar ao passageiro da frente se o caviar servido pela companhia era proveniente do Mar Cáspio e do tipo beluga. É óbvio que desisti rapidamente, tanto pelo ridículo quanto pela absoluta certeza de que não serviriam nem mesmo um ovo frito.

Já acomodado em meu assento, depois de acompanhar atentamente as instruções de segurança dadas por um comissário de bordo que mais parecia um guarda de trânsito epilético, resolvi pegar um livro para passar o tempo. Desgraçadamente, da mesma forma que os ônibus, os aviões também estão munidos de passageiros impertinentes, daqueles que ficam a viagem inteira falando sem parar, mesmo que você não diga nada e demonstre não querer conversa. Para minha infelicidade, um desses passageiros estava ao meu lado. Uma passageira, na verdade. E o pior: a poltrona dela era a da janela, o que me impedia até de usar o recurso de virar a cabeça para ver a paisagem.

Não demorou muito e ela fez a primeira investida.
- Sabe, eu gosto de viajar de avião. Estou sempre viajando, meu trabalho exige. Às vezes mais de uma vez por dia. E você? Viaja muito?
- Não muito. De avião é a primeira vez. – respondi, me arrependendo logo em seguida.
- Sério? Não diga. Que coisa. Ah, mas você vai adorar. É claro que tem seus riscos e problemas...

Pronto. Era tudo o que eu não precisava ouvir.

- Sabe, assim que a gente decolar, você vai sentir uma coisa estranha nos ouvidos. Uma pressão, é como se estivessem sendo tapados.
- Entendo... – falei – Se eu ficar sem ouvir a senhora, até que não será mau negócio. – completei, dessa vez bem baixinho.
- Hein? O que disse?
- Não, não foi nada.

Juro que ainda pensei em gritar no meio do avião que aquela mulher tinha uma bomba e que era membro da Al-Qaeda. Na confusão, quem sabe até retirassem ela do vôo. Mas não dava mais tempo. O boing já se preparava para decolar e nós tínhamos de permanecer sentados. Na subida, foi dito e feito. Meus ouvidos ficaram tapadinhos. E por um breve momento eu achei que fosse vomitar. Até virei o rosto para minha inoportuna passageira, na esperança de ver despejado nela o meu eu interior. O enjôo, porém, passou rápido. Mais para sorte dela, claro.

Já no ar, estiquei um pouco o pescoço na direção da janela e pude ver tudo lá embaixo ficando cada vez menor, as luzes da cidade bem pequenas. Que emoção. Que sensação boa. Eu estava voando. Pensei com carinho em Santos Dummont e em sua maravilhosa engenhosidade. Agora, nós podíamos ir de uma ponta a outra do mundo em questão de horas, com conforto e tranquilidade. Tudo bem. Eu sei que às vezes nem sempre com tanto conforto. Mas, no meu caso, até poderia ser com tranquilidade, não fosse por minha trágica companheira de vôo.

- Olha só! Agora que notei. – recomeçou ela.
- O quê?
- Nossas poltronas ficam no meio do avião, bem ao lado das asas.
- E o que é que tem isso?
- Ora, você não sabe? Nas asas é que fica o combustível. Se o avião pegar fogo, nós morreremos primeiro. A explosão começa logo por aqui.

Isso é coisa que se diga para quem viaja de avião? Não, não é. Ainda mais quando se trata de alguém que está tentando relaxar e esquecer os riscos em caso de acidente. Ao que parecia, ao meu lado eu não tinha uma companheira de viagem, e sim um mau agouro. Comecei a ficar inquieto e preocupado com qualquer coisa que acontecesse. Por duas ou três vezes, quando o piloto informou que estávamos passando por “uma pequena turbulência”, cheguei a ficar visivelmente nervoso com o balanço do avião.

- Engraçado. – atacou de novo a passageira trombeteira do Apocalipse. – Nos filmes, os pilotos sempre dizem isso quando o problema é mais grave do que parece.
- E a senhora acha isso engraçado?!
- E o que se pode fazer? Se tiver de cair, vai cair, meu filho. Ultimamente os aviões tem caído tanto.

Ah, que maravilha! Agora, nem se quisesse (e ela deixasse) eu conseguiria me concentrar para ler meu livro. Dormir, então, estava fora de questão, já que a ansiedade não deixava fechar os olhos. Para piorar, nossas poltronas estavam ao lado de uma das portas do avião, que a todo instante dava umas tremelicadas. Se era algo normal, eu não sabia. Mas, àquela altura da situação, tudo parecia errado.

Notando meus olhos na porta que tremelicava, a mulher ainda encontrou cara para comentar:
- Já pensou se essa porta abre? Nós todos seríamos sugados para fora do avião, hein. Que loucura. Cairíamos não sei quantos mil pés já sabendo que não haveria escapatória. Tão angustiante.

“A senhora com certeza não teria a chance de se esborrachar no chão ainda com vida. Eu faria questão de apertar o seu pescoço enquanto estivéssemos caindo.” – pensei. Mas me arrependo amargamente de não ter dito. Meu suplício só teve um intervalo quando começou a amanhecer. Pela janela, entravam os primeiros raios de sol. Lá fora, eu podia ver com clareza que estávamos acima das nuvens. Era como se o avião deslizasse sobre um enorme tapete branco. Um belíssimo espetáculo ver o sol nascer assim, digamos, mais pertinho de nós.

Para minha sorte, antes que a infeliz ao meu lado estragasse o momento, uma comissária de bordo passou com o café da manhã. Com a boca atolada de comida, pelo menos ela estaria impedida de dizer besteiras. Aí aproveitei também para beliscar alguma coisa antes de pousarmos. Porém, nem isso deu para fazer. O café servido não passava de uma torrada integral com uma pequena porção de requeijão light. Na hora de abrir o pacote da torrada, fiz muita força e acabei esfarelando tudo. Só me restou beber um copo de suco de caixinha.

- Cuidado, viu? Às vezes esses sucos que eles servem estão fora da validade. Faz um mal danado.

Era a maldita passageira, de novo. Me levantei desesperado, em busca daquelas cordinhas presas ao teto dos ônibus que servem para avisar que vamos descer na próxima parada. Não encontrei, obviamente. Mário Quintana tinha razão. “O mal dos aviões é que não se pode descer a toda hora para comprar laranjas.”. Ou para fugir de todo tipo de maluco.

domingo, 1 de maio de 2011

O ladrão intelectual

Por João Paulo da Silva

Quando um amigo me contou, eu não acreditei.
- Fala sério! Cê tá de brincadeira, né?!

Não. Não estava. Existia realmente um ladrão diferente a solta pelas ruas de Maceió. Já havia assaltado cerca de trinta pessoas em menos de um mês. Mais impressionante do que isso, só o fato de que o sujeito não roubava dinheiro, relógios ou celulares. Roubava livros! Isso mesmo. Livros!

Quando eu era mais novo, minha mãe costumava dizer (e ainda diz!) que meu futuro estava nos livros. Dizia que eu tinha de comer os livros pra virar gente de verdade. “Um homem só cresce na vida através dos livros!” – declarava. Era um claro exagero, não tenho dúvidas. E um pouco de ingenuidade também. Mas não pude deixar de lembrar dos conselhos de minha mãe ao saber da existência de um ladrão intelectual. “Ai, meus clássicos! Ai, meus clássicos!”. – pensei.

Também não tive como não lembrar dos cuidados que minha sábia mãezinha exigia de mim.
- Menino, cuidado com os assaltos! Se o ladrão pedir, entregue tudo!
- Tá, mãe. Tá. Mas eu só tenho livros na bolsa. A senhora já viu algum ladrão roubar livros?

O fato é que o caso havia me intrigado. Procurei pensar no lado positivo da coisa. Se a moda pegasse, o Brasil poderia até deixar de ser um país de analfabetos. Resolvi, então, conversar com algumas pessoas que tinham sido atacadas pelo tal ladrão intelectual. Queria saber como o sujeito agia. Estava na hora de exercitar meu jornalismo investigativo.

Como a maioria dos gatunos, ele também tinha hábitos noturnos e um local preferido para atacar. Todos os assaltos ocorreram dentro da universidade por volta das 20 horas. Uma das vítimas, uma estudante de pedagogia, afirmou que não se tratava de um ladrão como outro qualquer.
- Ele não roubou meu dinheiro. Roubou meus livros! Levou o meu Pedagogia do Oprimido!
- Certo. Isso eu já sei. Além de roubar livros, você percebeu mais alguma coisa de incomum? – perguntei.
- Ele usava uma máscara.
- Mas isso não tem nada de incomum. Muitos ladrões usam máscaras. – retruquei.
- Com o rosto do Paulo Freire?
De fato era um caso estranho.

Seu método se diferenciava pouco dos outros. Se houvesse resistência ao roubo dos livros, ele ameaçava as vítimas com um canivete. Tudo bem que era um canivete suíço, mas ainda assim era um canivete. Demonstrava total frieza e indiferença na hora da ação. Mas não aparentava seguir um padrão único. Às vezes agia com muita cordialidade. Nem parecia que era um assalto. Foi assim com um estudante de letras num ponto de ônibus escuro e vazio.
- Boa noite. – disse o sujeito com uma máscara do Jorge Amado.
- Ai, meu Deus! – assustou-se a vítima – Mas o que é isso? Tem alguma festa à fantasia hoje?
- Não é nada. Só uma comemoração boba. – disfarçou – Escuta, posso dar uma olhada nesses livros?
- Claro. Fique à vontade.
- Hum...
- Que foi?
- Tolstoi, Joyce, Machado de Assis. Muito bom. Boas leituras. Vou levá-los.
- Ahn? Como assim “vou levá-los”?
- Ah, desculpe. Esqueci de avisar. Isso é um assalto.

Mas o larápio de livros também já demonstrou alguns lapsos de descontrole emocional. A vigésima vítima, um estudante de filosofia, me deu um relato interessantíssimo. O rapaz contou como se dera o ocorrido.
- Boa noite. – disse uma voz calma e educada no meio da penumbra.
- Quem está aí?
- “O homem é condenado a ser livre”. – afirmou a voz.
- Sócrates?
- Não, seu burro! – disse a voz alterada – É Sartre!

O rapaz sentiu uma forte dor na cabeça e caiu desacordado. Quando recobrou a consciência, seus livros tinham sumido. Tudo indica que tenha sido uma paulada. Parece que o gatuno não suporta burrice. Um pouco intolerante, eu acho. Mas também com uma jeguice dessas, quem não seria?!

A situação começou a se agravar ainda mais. O ladrão intelectual já havia surrupiado Sartre, Piaget, Freud, Poe, Marx e muitos outros. A comunidade acadêmica estava apavorada e ninguém sabia exatamente o que fazer.

Foi aí que, recentemente, as idas e vindas da história apontaram um possível caminho. Foi com uma menina do curso de administração. Ela saía da aula quando viu se aproximar o Graciliano Ramos.
- Muito bem. Sem muitas delongas. Isso é um assalto!
A moça começou a abrir a carteira.
- Não. Não é isso que eu quero. Quero os livros.
- O quê?
- É o que você ouviu. Passa os livros.

A menina entregou-os sem se queixar. Momentos depois, o ladrão explodiu:
- Mas o que é isso?! Você tá de sacanagem, né?! Que palhaçada é essa?!
- Ora! Eu gosto, ué?!

Os livros eram Brida e Diário de um Mago.
- Como assim? Você gosta de Paulo Coelho?! Você tá lendo Paulo Coelho?!
- Tô. Qualé o problema?
- Você não tem vergonha na cara não, menina! Ai, meu Deus do céu! Sidney Sheldon eu até aceito. Mas Paulo Coelho já é apelação! Aí já é demais!

Largou os livros da moça no chão e fugiu indignado.
Foi como um antídoto. Todo mundo começou a andar com livros do Paulo Coelho embaixo do braço. Parece que deu certo. Até o momento não houve mais registros de incidentes com o gatuno intelectual. Finalmente encontraram uma solução para o problema dos roubos. E uma finalidade para o Paulo Coelho. Mas já tem gente preocupada, achando que só o Paulo Coelho talvez não resolva. Tão querendo andar com livros da Zíbia Gaspareto. Não sei, não. Aí eu já acho sacanagem. Com o ladrão, claro.