domingo, 31 de janeiro de 2010

A voz

Por João Paulo da Silva

Uma voz. É o que precisamos. Uma voz que reivindique a vida, que fale da curta beleza das flores de um buquê como se falasse do eterno brilho dos olhos infantis. Uma voz que arrebente os tímpanos do moralismo, que estilhace os vitrais dos valores burgueses, que rasgue os contratos e estupre os cartórios. Uma voz que amanheça os sonhos, que desperte os beijos adormecidos, que sopre a poeira dos livros das estantes.

Uma voz que transborde o corpo, que fecunde a alma, que floresça nos corações murchos. Uma voz que triture os grilhões, que dispare palavras de aço, que atravesse os tempos. Uma voz que desonre o Estado, que imponha a desordem, que desburocratize o homem.

Que essa voz venha como uma locomotiva, berrando a liberdade, mastigando o mundo, recriando os olhos. Que essa voz seja a poesia. E nada mais.

domingo, 24 de janeiro de 2010

Reaprender a estranhar

Por João Paulo da Silva

Nós não estranhamos mais as incongruências do mundo. Desaprendemos a discordar dos erros e deixamos de contestar as contradições que nos fazem andar como caranguejos. Perdemos a capacidade do espanto, da estranheza; perdemos aquilo que nos caracterizava como seres humanos. Aposentamos os olhos que nos permitiam enxergar muito além do próprio umbigo. Agora, nossa revolta diante das injustiças se resume a breves e descompromissados ensaios de solidariedade humana. Hoje balançamos a cabeça em sinal de negativa, soltamos um suspiro, um muxoxo, comentamos com a pessoa ao lado que as coisas vão mal, e só. Não. Minto. Há, também, aqueles que reclamam do mundo do alto de suas poltronas enquanto vêem TV, levantando apenas para pegar mais uma cerveja na geladeira. Por vezes, achamos tudo muito normal, mas para evitar crises noturnas de consciência fingimos um certo senso de compaixão social. Uma sensibilidade tão artificial quanto a frase “lamento não poder ajudar”, que costumamos dizer mecanicamente todos os dias.

Andamos nas ruas, entramos em shoppings, paramos em bares, comemos em restaurantes. Rodamos pelo mundo. Das nossas mesas, notamos os meninos com fome do lado de fora. Ficamos com pena. Pensamos nos famintos do mundo e em toda aquela miséria injustificável. Achamos tudo um absurdo. Trocamos meia-dúzia de palavras sobre o governo. Ficamos revoltados. Mas aí o garçom chega com o jantar e nós esquecemos os meninos. Das calçadas de nossas cidades, avistamos famílias sem-teto e com frio embaixo das pontes. Sentimos frio também. Imaginamos: como eles conseguem dormir daquele jeito? Não acreditamos nas cabanas de plástico e muito menos nos cobertores de papelão que vemos. Lamentamos e sofremos pelas vidas alheias. Aí pensamos na chuva que logo vai cair e corremos para nossas casas e camas quentes, tão alheias quanto nós. De dentro de nossos lares, sentados com os pés para cima, observamos o mundo desfilar suas tragédias através da tela da TV. Xingamos tudo e nos perguntamos: que merda de mundo é esse? Choramos pelas vítimas das guerras, agora transmitidas em high definition. Achamos uma violência sem tamanho a mulher assassinada pelo ex-marido. Ficamos horrorizados com as novas medidas do governo, com a seca do Nordeste, as enchentes do Sudeste e o desemprego crescente. Esbravejamos para todos os lados. Mas aí levantamos da poltrona, vamos até a geladeira e pegamos mais uma cerveja. Desgraçadamente, nós desaprendemos a estranhar.

A estranheza era aquilo que nos permitia manter os olhos sempre abertos, com a sensibilidade à flor da pele e o senso de justiça rangendo nos dentes. A estranheza era o sentimento de revolta permanente, era a certeza de que não poderíamos cochilar um segundo sequer até que tirássemos o mundo do avesso. A estranheza era a garantia de que estávamos vivos. Reaprender a estranhar as “normalidades” dessa selva de pedras, sangue e farrapos é a condição indispensável para decidirmos se queremos ser humanos ou permanecer caranguejos.

domingo, 17 de janeiro de 2010

1/4 de século: é apenas o começo

Por João Paulo da Silva

Me consideram um sujeito de sorte. Não é todo mundo que chega aos vinte cinco anos nas condições em que eu acabo de chegar. Na verdade, dizem que tenho muita sorte. Porque há, inclusive, aqueles que nem chegam aos vinte cinco. Nossos ancestrais das cavernas, por exemplo, mal chegavam aos dezoito. Antes do fogo, quando não morriam de fome e frio, eram prezas fáceis para as feras da época. Ok. Não estamos mais no Paleolítico, é verdade (embora muitas vezes pareça!). Mas as coisas não estão muito diferentes hoje.

Uma boa parte dos jovens brasileiros não passa dos vinte quatro anos. Acaba encontrando antes, tragicamente, o caminho da garganta das feras da atualidade, que chamamos educadamente de miséria, violência urbana, narcotráfico, governos, patrões, capitalismo etc. Convenhamos, não é fácil completar 1/4 de século nesse país. De todo modo, as minhas péssimas condições ainda foram melhores do que as da imensa maioria dos brasileiros. Eu pelo menos tive um teto.

Neste país, chegar aos vinte cinco anos tem um significado. Significa que você não entrou para as estatísticas, saltou um duro obstáculo, venceu uma importante barreira. Quer dizer, conseguiu ficar vivo. O que, dadas as atuais condições, é uma verdadeira façanha. A gente deveria até receber uma medalha olímpica por isso. Entretanto, não se iluda. Chegar a 1/4 de século é apenas o começo. Daqui pra frente, é aluguel, impostos, água, luz, alimentação etc, embora eu saiba que para muitos isso já começou faz tempo.

Na casa em que eu estou começando os meus vinte cinco anos, as coisas também estão, digamos, começando. Quando cheguei aqui, tinha apenas uma mala com roupas e um computador velho. Agora já tenho emprego, fogão e geladeira. O fogão ainda está sem gás e a geladeira ainda está vazia. Mas isso são apenas detalhes. O importante é que já pus meu barquinho na água. E o melhor: o leme está na minha mão. A partir de agora, começa uma nova fase. Muito mais difícil, é claro. Mesmo porque a selva ainda continua de pé e as feras ainda continuam soltas. Hora de sair para caçá-las.

Parabéns a todos e todas que chegaram hoje aos vinte cinco anos. De verdade mesmo.

domingo, 10 de janeiro de 2010

Adeus ao Ponto G

Por João Paulo da Silva

2010 começou com uma novidade “sexualmente avassaladora”, capaz de mudar nosso ângulo de visão sobre o sexo ou de, pelo menos, tirar um peso das costas de homens e mulheres. Pesquisadores da King's College London, na Inglaterra, após acompanharem a vida sexual de 1.800 britânicas, concluíram que o tão famoso Ponto G não existe. Segundo os cientistas, não há evidências biológicas de que a zona erógena exista e tudo, na verdade, não passa de uma invenção cultural. Fisiologicamente, não há como provar a área.

Estranho isso, sabe. Eu até cheguei a ler artigos que informavam a localização do Ponto G (pequena área atrás do osso púbico, perto do canal da uretra), embora nunca tenha conhecido ninguém que tivesse encontrado o lugarzinho. Agora, a revelação sobre o desejado ponto muda tudo. Sim, porque desde 1950, quando o ginecologista alemão Ernst Gräfenberg (por isso o G) apresentou a hipótese da existência da tal zona, que as pessoas realmente buscam o Ponto G. Quer dizer, mais de meio século de uma expedição sexual improdutiva.

Em minha opinião, isso merece uma indenização. Pensem nas décadas que bilhões de homens e, principalmente, mulheres perderam em busca daquilo que seria – literalmente – uma “fantasia sexual”. Pensem em todo o tempo perdido que poderia ter sido usado na procura de outras zonas erógenas, de preferência que existissem. Quantos relacionamentos não acabaram justamente por que inúmeros parceiros não conseguiram encontrar o Ponto G de suas parceiras? Quantas mulheres não se sentiram frustradas e infelizes por acharem que, diferente de algumas “abençoadas”, jamais localizariam o desgraçado do ponto? Entendem? A questão é séria, pô.

Tudo bem que talvez agora a vida sexual de muitas pessoas se tranquilize e a pressão diminua um pouco, visto que não há mais a obrigação de encontrar uma zona inexistente. Entretanto, isso não tira a responsabilidade de seja lá quem for o responsável por esse tempo todo de enganação. Alguém precisa pagar por isso. E, obviamente, em dinheiro, que é pra pagar os anos de terapia. Pode até ser o governo, através de um programa social de ressarcimento pelo prazer perdido ou alguma coisa do tipo. Não sei.

Enfim, independente das polêmicas, a conclusão da inexistência do Ponto G talvez nos leve, finalmente, até a compreensão de que o corpo inteiro é uma imensa zona erógena e que, para ter prazer, basta apenas ter a manha de fazer a coisa. Eu até poderia ensinar algumas dicas e toques, mas isso já é assunto para outra crônica.

sábado, 2 de janeiro de 2010

E agora?

Por João Paulo da Silva

Não sei o que faz as pessoas acharem que 2010 vai ser melhor do que 2009. É impressionante como uma certa magia toma conta da gente na hora da passagem do ano, fazendo todo mundo acreditar que da noite pro dia – literalmente – as coisas vão mudar. Não estou dizendo que não acredito em mudanças. Ao contrário. Penso, sim, que é possível mudar o mundo. O problema é que, nas mãos em que ele está hoje, as mudanças não virão. Pelo menos não as boas.

Não sei quem é o autor, mas tem uma frase que diz: “um pessimista é só um otimista bem informado”. É duro, porém tenho de concordar. Vejamos um dos assuntos mais comentados dos nossos dias: o aquecimento global e as alterações climáticas, por exemplo. Mesmo aqueles extremistas da esperança sabem que a situação é mais feia do que briga de foice. As consequências do aquecimento já podem ser sentidas por qualquer um, e não estou falando apenas do calor que aumentou. Eventos catastróficos estão se tornando recorrentes demais. Daqui a pouco, estaremos falando de tsunamis como quem fala da chuvinha das cinco. Assim, com naturalidade. Até que venha uma onda gigante e leve a casa da gente, claro.

Com o fracasso da Conferência de Copenhague (para alguns, já esperado), veio também o desespero certo de que, caso não mudemos radicalmente nossa relação com a natureza, estaremos empurrando o planeta cada vez mais para as cucuias. E, obviamente, a gente vai junto. Especialistas afirmam que o atraso nas decisões sobre as mudanças climáticas pode levar a humanidade para uma situação do tipo “agora é tarde demais”.

É possível que até o fim do século a temperatura da Terra suba uns 4 graus Celsius, trazendo consequências dramáticas, como a savanização da Amazônia e o aumento do poder destrutivo de tempestades, furacões e tornados. Além disso, o rápido degelo da Groelândia e da Antártica Ocidental pode elevar o nível do mar em 8 metros. Ainda não entendeu o que isso significa? Por exemplo: se o mar subir um metro, desaparecem Jacarepaguá e a Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro. Sentiu o drama? Pois é. E, mesmo assim, as grandes potências industriais não abrem mão do CO2 na atmosfera.

É claro que os responsáveis pelo problema querem dividir a culpa do aquecimento global entre todos os habitantes do planeta, numa tentativa de relativizar a pena pelo próprio delito. Cansei de ler matérias afirmando que cada um de nós libera no ar, por ano, uma média de 4,3 toneladas de gás carbônico. Isso sem fazer nada demais, só comendo e dormindo. Agora querem que a gente acredite que todo ser humano tem sua parcela de culpa na catástrofe iminente. Sacanagem, hein! Até já ouvi uma história sobre os efeitos da flatulência na atmosfera. Parece que a cada 100 puns que soltamos no planeta a temperatura dá uma esquentadinha, piorando o tal do aquecimento. Quer dizer, agora nem peidar a gente pode mais.

Bom, de qualquer forma, pensando na possibilidade de que nós não vamos conseguir salvar o mundo, eu fiz um pedido especial ao Papai Noel nesse Natal. Se o planeta for mesmo engolido por grandes tsunamis, então que a primeira onda de 1,5 km atinja em cheio a Casa Branca. Pô, nada mais justo, não é não?!