domingo, 29 de junho de 2008

Terror!

Por João Paulo da Silva

Um casal de amigos meus tem um filhinho. O moleque era os pés do cão. Travesso e desobediente, aos cinco anos já queria mandar no próprio nariz. Não gostava de tomar banho nem de comer verduras e legumes. As tarefinhas da escola – meu Deus! – nem se fala. Um terror!
- Julinho, venha fazer a tarefinha.
- Não. Não quelo!
- Oh meu filho. Se você não estudar, vai acabar ficando burrinho.
O moleque, ignorando o apelo da mãe, balançava os ombros em sinal de desdém. Quando ela ameaçava pegá-lo na marra, o pestinha corria pra debaixo da cama. E nem adiantava o pai aumentar o tom da voz ou usar os métodos mais comuns:
- Júlio Roberto da Silva! – os pais quando estão com raiva dizem o nome completo da criança – Já para o banho, rapaz!
E nada do menino sair do esconderijo. O pai tentava de novo:
- Olha, Júlio. É melhor você sair daí. Tem uma cobra embaixo da cama.
- Tem não. E eu não tenho medo.
“Putz!” – pensou o pai. E agora?
- Escuta aqui, seu moleque! Se você não sair imediatamente, eu vou chamar o Velho do Saco pra te levar.
- Chame. Num tenho medo mermo.
- E vou trazer também o Bicho Papão! Ouviu?!
- Lero-lero! Lero-lero!
Estavam perdendo a autoridade. Precisavam fazer alguma coisa. Bater? Não. Nunca tinham dado uma palmadinha sequer. Nada de violência física. Procuraram um psicólogo.
- Do que é que o Julinho tem medo?
- De nada. Eu e minha mulher já tentamos de tudo, doutor. Bicho Papão, Velho do saco, monstros de filmes de terror. Sabe aquele do Exorcista?
- Sim.
- Ele deu risada.
O caso era sério.
O psicólogo disse que os pais precisavam buscar inspiração na realidade. Nada de fantasias ou coisas do tipo. As crianças não acreditam mais nisso. Era preciso encontrar no mundo real algo que motivasse o garoto.
Estavam os três na mesa do jantar. E o Julinho, como de costume, se recusava a comer as verduras e os legumes. Aí a TV começou a exibir uma matéria sobre a guerra no Iraque. Naquele mês, fazia três anos da famigerada ocupação do governo norte-americano. O pai não pensou duas vezes. Lascou pra cima do Julinho:
- Olha o Bush! Olha o Bush!
O pobre do moleque arregalou os olhos e começou a tremer descontroladamente. Ficou completamente assustado. Não deu outra. Raspou todo o prato. Não sobrou verdura sobre verdura. Sei que não é um dos melhores métodos. Mas... Agora, ao menor sinal de desobediência do Julinho, os pais ameaçam:
- Ah! Não quer tomar banho não?! Vou chamar o Bush! Olha o Bush!

quarta-feira, 25 de junho de 2008

Na ponta do fuzil

Por João Paulo da Silva

Tem uma frase do Eduardo Galeano que diz: “Os policiais não combatem os crimes, porque estão ocupados cometendo-os.”. O massacre ocorrido no último dia 14 de junho, no Morro da Providência, Rio de Janeiro, nos permite incluir o Exército na frase do escritor uruguaio.

A polícia e o Exército são os dois braços armados do Estado. E, ao contrário do que é dito, não existem para “servir e proteger” ou para “garantir a segurança do Brasil”. Quer dizer, desculpem. Cometi um engano. Existem pra isso sim. O problema é que nenhuma dessas duas forças está a serviço dos trabalhadores. E muito menos dos negros e pobres deste país. Um exemplo para ilustrar o fato: Quando os trabalhadores, a população miserável e os movimentos sociais saem às ruas exigindo melhores salários ou melhores condições de vida, são recebidos justamente pela polícia e – a depender da situação – pelo Exército. E esta recepção não vem na forma de boas-vindas. Vem no formato de tiros e cassetetes. Entretanto, não vemos nem a polícia nem o Exército baterem nas portas dos patrões quando estes reduzem salários ou cortam direitos dos trabalhadores. Portanto, o “servir e proteger” ou o “garantir a segurança” não pertencem ao povo negro e pobre.

A participação de soldados do Exército na execução dos três jovens negros por traficantes do Morro da Minerva demonstrou a verdadeira face das Forças Armadas. Deixou tão visível quanto uma fratura exposta. No entanto, alguém – por incrível que pareça! – pode argumentar: “Mas não foram os soldados que mataram os rapazes. Foram os traficantes.”. Ora, e desde quando existe diferença entre aquele que puxa o gatilho e o que manda puxar? A corrupção e o papel nefasto da polícia, agindo em conjunto com os traficantes, subindo o morro para deixar corpo no chão ou formando milícias que aterrorizam a população das favelas, não são novidades. Agora, com o Exército sendo colaborador de extermínios como este em questão, podemos estar diante do último sopro de confiança depositado nestas forças. A fala de um operário e morador do Morro da Providência deixa claro: “Ninguém os quer mais na comunidade. Não temos mais confiança na roupa verde do Exército.”.

Os três jovens voltavam de um baile funk quando encararam a ponta dos fuzis dos soldados. Eram estudantes e trabalhadores. Um deles, inclusive, iria começar a trabalhar nas obras que estavam sendo realizadas no morro. Não deu tempo. Depois de espancar, os boinas-verdes entregaram os garotos aos traficantes por seis mil reais. Três vidas, três estudantes, três trabalhadores, três pobres, três negros. A participação do Exército nessa higienização social é a consolidação da política de segurança fascista do governo de Sérgio Cabral, com o apoio de César Maia e Lula. E não adianta o presidente demonstrar indignação com o ocorrido. Ele mesmo, após um outro massacre realizado pela polícia do Rio no Complexo do Alemão em junho do ano passado, apoiou a ação criminosa do governador Sérgio Cabral dizendo que “a polícia não estava diante de nenhuma pessoa santa”. E as desculpas e indenizações não serão redentoras de ninguém.

Não bastando o circo de hipocrisia montado após a tragédia, os governos, o ministro Nelson Jobim e a imprensa burguesa saíram desesperados para apagar a chama que se acendeu na Providência. Todos querendo convencer a população de que o “incidente foi um caso isolado”. Claro que foi! O Complexo do Alemão e tantas outras chacinas promovidas pela polícia e pela Força de Segurança Nacional também foram casos isolados. Tal argumentação me faz concluir o destino de parte da madeira devastada na Amazônia. Serve para montar o grande número de caras-de-pau deste país. E aqui cabe um detalhe interessante: a imprensa que, após o crime dos soldados, se mostrou consternada com os assassinatos foi a mesma imprensa que aplaudiu de pé as ações fascistas do Bope no filme Tropa de Elite. Não tenho dúvidas de que os homens do Exército e da polícia são treinados com base na máxima política do Washington Luís: “a questão social é um caso de polícia”. E do Exército também.

Mas talvez a maior de todas as verdades seja aquela que todos nós já sabemos: os grandes isolados são os negros, pobres e miseráveis dos guetos e favelas deste país. São eles que vivem cercados por um verdadeiro Eixo do Mal. De um lado, o governo. Com sua política neoliberal de geração de desemprego e miséria. Do outro, o narcotráfico, que recruta a juventude miserável e sem perspectivas para a criminalidade. Por fim, na outra ponta estão a polícia e o Exército, exercendo a força e a violência com critérios racistas.

Em outro texto argumentei que não se resolverá o problema da criminalidade aumentando a repressão contra os grandes bolsões de miséria. Não precisamos de balas e terror. Precisamos de empregos, melhores salários e gigantescos investimentos nas áreas sociais. Lula sabe disso. Mas não está disposto a fazer. A conclusão é cruel: o máximo que se pode esperar de César Maia, Sérgio Cabral e Lula são mais e mais corpos. E, infelizmente, eles serão de trabalhadores, negros e pobres.

domingo, 15 de junho de 2008

Mistério

Por João Paulo da Silva

Há mais ou menos vinte anos um ex-sindicalista desapareceu. Os seus mais destacados sinais característicos eram uma barba preta, uma voz rouca e a ausência do mindinho da mão esquerda. Tudo que se sabe é que o sujeito sumiu sem deixar vestígios. Ao que tudo indica, nunca mais foi visto. Mas talvez este mistério esteja próximo de ser solucionado.

É noite. Dois homens conversam num ponto de ônibus deserto enquanto esperam a condução que os levará para casa. Na verdade, são dois velhos operários. Quer dizer, não tão velhos assim, é verdade. Mas com idade suficiente para lembrar os estranhos acontecimentos do final dos anos 80.
- Você lembra?
- Do quê?
- Da última vez que ele deu as caras?!
- Lembro sim. Foi em 89. Talvez também em 94, eu acho. Não tenho certeza. Faz tanto tempo.
- Pois é. Quase vinte anos. Daquele período pra cá, nunca mais a gente teve notícia do sujeito.
- É. Sumiu do mapa mesmo. Se escafedeu.
- Que coisa, né? Escuta, você se lembra do que ele defendia naquele tempo? A reforma agrária, por exemplo.
- Claro que sim. Como é que eu ia esquecer. Ele dizia: “Nós não vamos fazer reforma agrária, companheiros, nas terras devolutas que querem nos dar na beira das estradas. Nós vamos fazer reforma agrária é na terra dos latifundiários!”.
- Minha nossa! Chega dava gosto de ver.
- Como dava!
- E aquela história de romper com o FMI?! Você lembra quando ele falava de não pagar a dívida externa?
- Ôôôô! Se lembro! Nada de dinheiro do povo pra banqueiro internacional!
- E nas eleições?! E nas eleições?! “Trabalhador vota em trabalhador”. Era o lema.
- Ou então: “Quem vota em peão, não vota em patrão”.
- Ali parecia ser um dos nossos. Você lembra aquela que ele soltou sobre os patrões terem lucros do século XX e pagarem salários do século XIX?! Que tirada, hein!
- Outros tempos aqueles. Outros tempos.
- Mas tinha também a questão de ser contra as privatizações das estatais!
- E de fazer valer o salário mínimo da constituição! Lembra?
- Nem me fale! Aquilo sim era política de valorização do mínimo.
- Pois é. Me lembro bem dele surgindo naquelas greves do ABC.
- Por onde será que ele anda hoje em dia, hein?
- Dizem que fugiu, morreu, rasgou a própria história. Sei lá.
- Mas logo ele?! Logo ele em quem eu depositei todas as minhas esperanças?!
- Pra você ver. Tanto trabalhador confiou no sujeito e ele sumiu assim de repente. E ainda deixou o tal do Luiz Inácio governando, que inclusive se parece muito com ele. Bom, é verdade que a barba é branca. Mas... ele também não tem o mindinho da mão esquerda. E digo mais: vem fazendo justamente o contrário do que o outro defendia. Agora taí essa festa toda dos bancos, com esse Luiz Inácio tirando dinheiro da saúde e da educação pra pagar dívida que não foi o trabalhador que fez. Sem falar também que ele tá vendendo o Brasil inteirinho. A Amazônia, as estradas, os poços de petróleo. Tudo já tem dono. Mas se eu fosse você não alimentaria ilusões nesse governo não.
- Eu? Alimentando ilusões?! De jeito nenhum. Com essa crise dos alimentos, eu não tô nem alimentando minha família direito. Que dirá alimentar minhas ilusões.
- É. Eu sei. Tá brabo o negócio.
- Mas vem cá. Voltando ao assunto do Luiz Inácio. Eu tava pensando aqui: será que ele e o outro não são a mesma pessoa? Tô achando muito esquisito esse sumiço.
- Ora, o que é isso?! Seria muita sacanagem com os trabalhadores brasileiros que os dois fossem a mesma pessoa. Depois de ter confiado numa história de luta a vida inteira, descobrir que ele e o Luiz Inácio são um só seria uma grande decepção. Não, não. Acho que não. Ele deve ter sido raptado por extraterrestres ainda em 89.
- Mas digamos que existisse a possibilidade do Lula e do Luiz Inácio ser a mesma pessoa.
- Bom, dessa forma estaríamos diante do maior caso de falsidade ideológica da história desse país.