domingo, 24 de abril de 2011

Crime contra a Língua

Por João Paulo da Silva

Em outra ocasião, já falei de um professor que não tolerava erros de Língua Portuguesa. Tratava cada deslize dos alunos como “jeguices”. Seu método se baseava no princípio da vergonha absoluta. Se alguém cometesse qualquer tipo de jeguice, era sumariamente humilhado pelo professor. O resultado desse tratamento de choque se apresentava de duas formas: ou o moleque se matava de estudar para não cometer mais erros, ou nunca mais abria a boca pra falar merda.

O fato é que me chega mais uma história do professor intolerante.
Durante a aula, a turma discutia em grupos o crescimento da violência no Brasil. Seqüestros, roubos, assassinatos. Foi quando o professor interrompeu o debate e disse:
- Vocês estão acompanhando através dos meios de comunicação o crescimento da violência. Principalmente a elevação de crimes como o famoso “roubo seguido de morte”. Alguém saberia me dizer que nome é dado pelo Código Penal a esse tipo de crime?

O Fernandinho, desesperado para responder, levantou logo o braço.
- Eu sei, professor! Eu sei!
- Pois então pode dizer, Fernandinho.
- O nome é laticínio.

O professor começou a se contorcer de raiva.
- Que jeguice, meu Deus! Está errado, Fernandinho. O correto é latrocínio, infeliz! É quando alguém, no ato de roubar, acaba matando a vítima.
- É isso mesmo, seu burro! – interrompeu o Pedrinho, todo metido a esperto – Só seria laticínio se o queijo roubasse o leite e matasse a vaca! Mas tu é um burro mesmo, hein!

O professor não suportou e sofreu uma parada cardíaca. Está internado e seu estado é grave.

domingo, 17 de abril de 2011

O Banana

Por João Paulo da Silva

Não há um só dia em que a gente não escute alguém reclamar da violência. Nas filas, nas praças, nos jornais. Em todo lugar. Ao que parece, à medida que a miséria e fome aumentam a violência se expande mais. E as vítimas, na maioria das vezes, são aquelas que menos têm para serem roubadas. Isso sem falar, é claro, no pior de todos os roubos: o roubo oficializado, quando o governo faz seus cortes nos orçamentos da saúde, educação, reforma agrária etc. Enfim, começamos a vislumbrar a decadência.

Digo isso porque a cena que presenciei por esses dias me serve de prova irrefutável. Assim como tantas outras pessoas, eu voltava pra casa no começo da noite quando ocorreu o incidente. Nesse dia, o ônibus até que não estava tão cheio e eu viajava sentado. Num determinado ponto da viagem, subiu no coletivo um sujeito mal-encarado. Percebi as pessoas trocarem olhares de desconfiança, numa clara expressão de perigo iminente.

Assim que passou pela roleta, o homem gritou:
- Todo mundo quieto! Isso aqui é um assalto! Pode ir passando os celular, relógio e dinheiro!

Por baixo da camisa, o homem segurava um objeto pontiagudo, semelhante ao cano de um revólver. Os passageiros, assustados, começavam a entregar as coisas. Nesse instante, o motorista deu uma freada mais brusca. O assaltante cambaleou, desequilibrou-se e, para não cair, acabou soltando o objeto que tinha por baixo da roupa. Era uma banana! Isso mesmo. Uma banana. A cena que se seguiu foi uma daquelas que contando a gente não acredita. A multidão partiu pra cima do sujeito e o que se viu foi um verdadeiro linchamento. O pobre do homem apanhou mais do que carne de terceira. Não sei como aconteceu, mas milagrosamente ele conseguiu escapar por uma das portas do ônibus.

- Palhaçada, rapá! Tá pensando que o povo é trouxa?! – diziam uns.
- Onde já se viu uma coisa dessas?! Assaltar com uma banana?! É o fim da picada. – protestavam outros.

Após uma chuva de xingamentos, a relativa paz voltou a tomar conta do coletivo. Mais tranqüilo, me lembrei de procurar a banana que o assaltante havia deixado cair. Encontrei apenas a casca. Alguém tinha comido.

Definitivamente, estamos à beira do caos.

domingo, 10 de abril de 2011

O pesadelo de Odair Reacionário

Por João Paulo da Silva

Parecia ser mais um dia como outro qualquer na vida do deputado federal Odair Reacionário. Como de costume, acordou por volta das 5 da manhã, tomou sua ducha fria de meio minuto e barbeou-se com um canivete do tempo em que ainda era militar. Em seguida, vestiu sua cueca da sorte, com a suástica bordada na frente, sentou-se na cama e começou a lustrar os coturnos. Só para não perder o hábito, montou e desmontou seu fuzil umas trezentas e cinquenta vezes. Depois, dirigiu-se a um pequeno e singelo altar. Ajoelhou-se e pôs a mão sobre um livro de capa preta. Mein Kampf, dizia o título em alemão. Rezou em silêncio e com a cabeça voltada para duas imagens acima do altar. Eram figuras bastante conhecidas. Da parede, as fotos de Médici e Geisel observavam com alegria o nobre deputado.

Terminado o ritual matutino, Odair Reacionário sentou-se à mesa sem dar bom-dia a sua esposa, pediu o café e pegou o jornal. As notícias não eram nada animadoras. “MST ocupa mais dez fazendas no interior de São Paulo”, “Metalúrgicos do ABC iniciam greve geral”, “Congresso vota hoje Lei da Homofobia; movimento LGBT promete fazer pressão”. Os tempos não eram bons, pensou o deputado.
- Ai, que saudade da Dita. – suspirou Odair. – A Dita é que era mulher de verdade... – cantarolou baixinho.

Imediatamente, a esposa fixou os olhos duros no marido. Como um balão que não podia mais receber ar, ela explodiu pra cima dele:
- Não aguento mais isso, Odair! Desde que nós nos casamos que você fala nessa tal de Dita. Até na minha frente você fala nela. Anda, Odair! Quem é essa Dita?! Hein?! É Benedita o nome dela, não é?! Quem é essa sirigaita?! Fala, Odair!
- Olha aqui, mulher. Não admito que você levante a voz pra mim. Tá pensando o quê?! Que mulher pode fazer o que quiser?! Numa boa família, quem manda é o homem! E aqui o homem sou eu! Só não te dou umas porradas porque se não vou amassar meu terno. E outra. Larga de ser burra. A Dita de que tô falando é a Ditadura! Essa, sim, me dá saudade.

Raivoso, engoliu os ovos com bacon e saiu da cozinha pisando firme. Quando passou pela sala, viu que seu filho mais novo, um garoto de seus treze anos, estava assistindo ao desenho do Bob Esponja.
- Mas o que é isso, moleque?! Que merda de desenho é esse?!
- É o Bob Esponja, pai.
- Bob Esponja é o cacete, rapaz! Isso daí é o Bob Boiola. Que tipo de homem tem um amigo em forma de estrelinha cor de rosa?!
- Mas o Bob não é um homem. É uma esponja, pai.
- Ah, logo vi! Claro que não poderia ser homem. Mole desse jeito! Você não vai ver esse desenho. Isso é coisa de gay.
- Mas eu gosto, pai.
- Gosta nada, moleque. Escuta aqui. Se você não andar na linha, eu te dou um couro! – e Odair lascou um cascudo na cabeça do filho.

Da entrada da cozinha, a mulher ainda pediu:
- Não faz isso, Reacionário.
- E você cala a boca! Volta pra cozinha que é o teu lugar. Tão pensando o quê?! Que vão fazer revolução?! Que aqui pode ter mulher independente e filho veado?! Nada disso! Aqui não é a casa da mãe Joana, não!

E olhando para o filho que chorava, Reacionário completou:
- Ô moleque! Para de chorar! Homem não chora, cacete! Parece uma bichinha. E tem mais, hein! Quando eu voltar, se você não tiver aprendido a coçar o saco e a cuspir no chão, vai pro pau de arara. Tá me entendendo?! Agora quero ver pedir pra sair! Pede pra sair! Pede pra você ver!

Antes de sair de casa, o deputado Odair ainda deu mais três coices, relinchou e bateu a porta com força atrás de si. Só não comeu a grama do jardim porque já tinha tomado café. No caminho até o Congresso Nacional, ligou o rádio no carro para ouvir as notícias. Estarrecido, descobriu que centenas de milhares de pessoas se aglomeravam em frente à “Casa do Povo”. O locutor informou que a Praça dos Três Poderes estava repleta de pessoas. Eram trabalhadores, jovens, idosos, homens, mulheres, negros, brancos, gays, lésbicas, travestis. Segundo o locutor, bandeiras vermelhas e coloridas tomavam a fachada do Congresso. Todos querendo pressionar o Legislativo para que a lei contra a homofobia fosse aprovada. No carro, Odair Reacionário pensava: “Meu Deus. Hoje vai ser um dia daqueles. Parece um pesadelo. Esses promíscuos querem acabar com a família, a moral e os bons costumes. Isso tem que ser resolvido é na bala.”.

Quando o carro se aproximou do Congresso, o deputado pode comprovar que o pesadelo era maior do que o rádio havia informado. Na praça, tinha mais gente do que ele imaginara, mais até do que fora anunciado. Nas mãos, os manifestantes exibiam cartazes e faixas. “Chega de homofobia!”, “Direitos iguais para os homossexuais!”, “Contra toda forma de opressão!”, “O amor não é pecado!”, “Pela aprovação imediata do PLC 122!”, “Criminalização da homofobia já!”.

Odair Reacionário não acreditava no que estava vendo, devia ser um pesadelo mesmo. Ainda teve ímpetos de baixar o vidro do carro, colocar a cabeça para fora e gritar: “Mas o que é isso?! É o Apocalipse?! Sodomitas! Infiéis! Vão queimar no fogo do inferno!”. Só não o fez porque estava em menor número. Era um soldado, um estrategista. “Mas esperem até eu entrar no Congresso. Aí vocês vão ver. Os defensores da família não vão permitir a aprovação da safadeza.”, disse pra si mesmo.

Na entrada do prédio, dezenas de repórteres se amontoavam. Todos esperando a chegada do deputado Odair Reacionário, principal representante da moral e dos costumes. Um parlamentar que usava a democracia para defender abertamente a ditadura e que pregava sem remorsos o direito de ser preconceituoso. Eufóricos, os jornalistas queriam ouvir de Odair uma avaliação sobre a decisão que o Congresso estava prestes a tomar.
- Então, deputado, parece que por causa da pressão popular a bancada do governo está se vendo obrigada a votar pela aprovação da lei anti-homofobia. O que o senhor tem a dizer sobre isso? – perguntou uma repórter.
- Nós estamos numa guerra, minha filha. Esse é um governo de frangotes. Nós não vamos amolecer diante deste bando de pederastas que está aqui na frente do Congresso. Nossa bancada vai lutar até o fim contra essa imoralidade. Eu não quero que meu filho abra a porta de casa e dê de cara com duas mulheres ou dois homens se beijando. Eu quero que meu filho seja macho.
- Mas o senhor não acha que este tipo de comportamento é intolerante e homofóbico? – quis saber outro repórter.
- E quem é que está sendo intolerante e homofóbico aqui, meu rapaz?! Eu não sou homofóbico, só acho que isso de homossexualismo é coisa de veado. E por isso sou contra. Quero ter esse direito.
- Então, o senhor quer ter o direito de oprimir os homossexuais?
- Bom, se você chama de opressão o fato de eu estar defendendo que os homossexuais não tenham direitos, então sou um opressor, sim.

Odair Reacionário ainda deu mais algumas de suas “racionais” declarações e se encaminhou para o plenário da Câmara. Mas, antes, fez questão de relinchar três vezes e beliscar um pedacinho da grama do Congresso.

Lá dentro, deputados e senadores debatiam – obrigados pela pressão popular, é claro – o projeto de lei que tornava crime a homofobia. Foram horas e horas de sessão, seguidas de discursos e mais discursos. Contra e a favor. A bancada evangélica estava assombrada diante da possibilidade da aprovação da lei. Da tribuna, seus representantes esperneavam e faziam falas bíblicas, citavam passagens dos evangelhos, reivindicavam que Deus havia criado Adão e Eva, e não Adão e Ivo, etc, etc, etc. Governistas e oposição de direita discursavam constrangidos. Uns contra, outros a favor. Mas todos constrangidos. A pressão era grande. Estavam numa encruzilhada.

Lá fora, quase um milhão de pessoas ameaçava entrar no Congresso, caso os parlamentares não ouvissem seu clamor e não aprovassem a lei anti-homofobia. Os jornais noticiavam que o Movimento Gay não iria mais retroceder em suas reivindicações. “O país já sofreu o suficiente com o preconceito, a violência, a perseguição e a intolerância. É preciso avançar no combate à opressão aos homossexuais, que tanto serve para aumentar a exploração sobre nós.”, diziam líderes do movimento.

Dentro da Câmara, o deputado Odair Reacionário era a todo instante informado por seus assessores sobre os desdobramentos da situação. O governo não tinha condições de enfrentar mais uma crise política. Caso o Congresso não aprovasse a lei, a imagem negativa das instituições democráticas só iria aumentar. Depois dos problemas com a Ficha-Limpa, será que o Legislativo suportaria mais esse baque? Era o que se perguntavam os analistas políticos.

Já passava das onze horas da noite quando o que parecia apenas um pesadelo para Odair Reacionário finalmente tornou-se uma realidade. Por uma margem pequena de diferença, o Congresso havia aprovado a lei anti-homofobia. Do lado de fora, os manifestantes comemoravam o direito de expressar a própria sexualidade. Comemoravam o direito de ver presos aqueles que ousassem reprimir a felicidade e o amor dos outros. Do lado de dentro, Odair Reacionário, já muito desesperado, pediu para subir até a tribuna. Queria falar.

- Isso é uma vergonha! – gritava – Vocês não podem aprovar essa safadeza! Isso aqui vai virar uma república de veados. Onde estão a moral e os bons costumes?! Eu não sou a favor da violência contra os homossexuais, mas acho que se o menino começa a ficar meio gayzinho ele tem que tomar umas porradas pra se orientar. Vocês não sabem o que estão fazendo. É por isso que eu defendo a ditadura e a tortura! Assim é que se endireita esse país!

Nesse momento, o deputado Odair Reacionário foi interrompido por um assessor, que lhe informou que alguém precisava falar com ele urgentemente pelo telefone.
- Quem é?!
- Seu filho, deputado. Diz que tem algo importante pra falar. – disse o assessor entregando um celular.
- O que é, moleque?!
- Pai, queria cantar pra você uma música muito legal que aprendi hoje. Tem uma lição de vida.
- Garoto, esse não é um bom momento. Estou aqui numa situação muito difícil.
- Só o refrão, pai. É rápido.

Depois de um suspiro de impaciência, Reacionário concedeu.
- Tá, moleque. Vai logo.

Com um fundo musical dançante, Odair ouviu o filho cantar:
- “Não se reprima! Não se reprima! Não se reprima!”. – em seguida, ainda com o telefone no ouvido, o deputado ouviu o garoto improvisar. – Não me reprima! Não me reprima! Não me reprima!

Imediatamente, Odair Reacionário sentiu uma forte dor no peito, a visão escureceu e ele tombou sobre o chão. Acordou assustado em sua cama, com o corpo lavado de suor.
- Meu Deus, que pesadelo. Tudo parecia tão real. Por um momento até achei que... ah, não. Claro que não. Impossível de acontecer.

Levantou-se e andou pela casa. Notou que estava sozinho. Acabou encontrando um bilhete da mulher sobre a mesa da sala. Dizia que ela havia decidido abandoná-lo. Tinha levado o filho também. “Que merda está acontecendo aqui?”, pensou Odair. Sentou-se no sofá e ligou a TV. Os telejornais falavam da realização do primeiro casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. Acontecimento que só se tornou possível após a extensão dos direitos de casais heterossexuais para casais homossexuais, aprovada juntamente com a lei anti-homofobia.

- NÃÃÃÃÃÃÃÃOOOOO!!! – gritou Odair Reacionário, acordando para o seu pesadelo.