domingo, 26 de junho de 2011

Quem te viu, quem te vê!

Por João Paulo da Silva

Tudo começou na Antiguidade. Para os povos desse período, junho era um mês especial. A primavera chegava ao fim e o verão se aproximava. E, com a nova estação, dias mais longos e quentes. Provavelmente eles não sabiam, mas era o solstício de verão: época ideal para o plantio. Sem ciência que explicasse o funcionamento do universo, os antigos atribuíam as alterações climáticas (dias quentes e ensolarados etc.) aos deuses. Daí o costume de promover festejos para “garantir” a boa vontade das divindades pelos próximos períodos. Os antigos também não sabiam. Mas provavelmente foram os primeiros puxa-sacos da História.

A festa junina só ficou mesmo mais parecida com o que nós conhecemos hoje quando a Igreja Católica meteu o bedelho. A antiga comemoração relacionada ao solstício de verão, celebrada no dia 24 de junho, era uma celebração pagã. Durante a Idade Média, a Igreja, estendendo ainda mais seus tentáculos sobre as pessoas, caçou os festejos pagãos e os transformou em rituais e mitos cristãos, tratando logo de meter um de seus santos no meio disso tudo. São João Batista era o nome do sujeito. E a comemoração ficou conhecida como festa joanina, o famoso São João. Quando os portugueses chegaram aqui com essa história, a geografia do local, o calor dos trópicos e a mistura que deu origem ao povo brasileiro se encarregaram dos últimos retoques. Inclusive a mudança do nome para festa junina.

Hoje também já não é como antes. Nas cidades, já não é mais tão comum encontrar comemorações juninas tradicionais. As bandas de forró eletrônico, estilizadas ou de plástico, com letras machistas e homofóbicas, estão cada vez mais presentes nas festas organizadas para o povão dos bairros periféricos. Isso para não falar dos outros “gêneros musicais” que aparecem de penetras. Embora algumas coisas permaneçam iguais, como as comidas típicas, por exemplo, outras começam a se perder. São poucos os trios de forró nas grandes festas. Sinto falta do zabumba, do triângulo e da sanfona. O palhoção mesmo está desaparecendo. Esse ano a comunidade do meu bairro não fez nenhum. Tá. Tudo bem. Ainda soltam fogos de artifício e acendem fogueiras. Mas não é a mesma coisa. Sei que algumas comunidades resistem. Mas... sei lá. Algo de mágico se foi. Devem ser os efeitos da pós-modernidade.

Êita, festa junina. Quem te viu, quem te vê. Até as quadrilhas perderam fôlego. Atualmente, as que ganham mais notoriedade são as existentes no Congresso Nacional. É outro tipo de quadrilha, claro. Mas com direito até a forrobodó. Forrobodó como sinônimo de desordem, evidentemente.

domingo, 19 de junho de 2011

Obsoletos

Por João Paulo da Silva

Uma pesquisa publicada recentemente na revista Nature trouxe uma revelação importante sobre o papel social das mulheres na pré-história e em nossos dias atuais. A análise de paleontólogos da Colorado University Boulder, nos Estados Unidos, indica que as fêmeas das espécies Australopithecus africanus e Paranthropus robustus, que viveram há mais de um milhão de anos, no sul da savana africana, passavam a maior parte do tempo caçando, enquanto os machos ficavam em casa lavando os pratos. Os pesquisadores chegaram a esta conclusão graças a um estudo realizado com 19 dentes que pertenceram a estes nossos parentes mais peludos. A observação aponta que mais da metade dos dentes femininos foi encontrado longe do local onde viviam as espécies, contra apenas 10% dos dentes dos homens, o que sugere que a macharada vivia cuidando do lar e as fêmeas saiam para conseguir comida.

Todas as pesquisas honestas que se debruçam sobre existência da vida humana na Terra caminham no sentido de mostrar que, antes da civilização, da propriedade privada e do casamento monogâmico, não havia essa conversa mole de “trabalho de homem” ou “trabalho de mulher”. As mulheres nem sempre dependeram dos homens, como gostam de afirmar os defensores do machismo. Mesmo porque essa propalada dependência foi imposta logo depois que os homens surrupiaram boa parte das invenções e descobertas das mulheres. Se observarmos atentamente a história, perceberemos um fato: em casa ou na rua, foram elas que começaram a longa jornada que arrastou a humanidade até aqui.

Eu já sabia que tinham sido as mulheres as responsáveis pelo desenvolvimento da cerâmica, da curtição de peles, da tecelagem e da construção de habitações. Até as primeiras experiências da botânica, da química e da medicina começaram com elas. A mesma coisa com a colheita de frutos, o cultivo da terra e a domesticação de animais, entre eles o próprio homem. Entretanto, agora, com esta novidade sobre as mulheres caçadoras, estou ainda mais convicto de que elas possuem condições de atuar em todas as áreas de atividades humanas. Mesmo com o capitalismo barateando a mão de obra feminina para nos explorar cada vez mais, é inegável que as mulheres estão ocupando profissões e espaços antes dedicados exclusivamente ao sexo masculino. Inclusive, o número de famílias chefiadas por elas tem aumentado bastante.

Mas por que estou fazendo todo esse preâmbulo? Já me explico. Considerando que as mulheres assinam a obra social de praticamente toda a pré-história e que, nas últimas décadas, depois de milênios de opressão e exclusão, elas reiniciam sua jornada em busca da igualdade, eu sou obrigado a aceitar que nós, homens, estamos obsoletos. Nem mesmo para ter filhos e prazer as mulheres precisam mais de nós. Hoje, a ciência e uma infinidade de “brinquedinhos” sexuais já dão um jeito nisso. Durante muito tempo, acreditamos cegamente que elas sempre necessitariam de nossas habilidades para realizar as tarefas mais pesadas, como matar baratas e instalar a antena parabólica. Entretanto, acabei descobrindo, da pior forma possível, que perdemos totalmente a utilidade.

Era domingo. Em casa, eu e minha companheira aproveitávamos o dia de folga. Estávamos deitados no sofá vendo TV, quando ela falou:
- Tô com um pouco de fome. Acho que vou pegar alguma coisa pra comer na cozinha.

Instantes depois, ela voltou com um pote de azeitonas aberto. Espantado, perguntei:
- Você abriu isso sozinha?!
- Abri.
- Como assim “abri”?! Por que não me chamou?!
- Porque não foi preciso. Eu mesma abri, ué! Pode ser?!

Aquilo me deixou abatido e me fez pensar seriamente no futuro sombrio que nos espera. O que será do gênero masculino se, por exemplo, não pudermos mais abrir potes de azeitonas?! É uma triste constatação, eu sei. Estamos ficando cada vez mais obsoletos. Mulheres, eu vos imploro! Tomem o mundo, mas nos deixem ao menos trocar as lâmpadas.

domingo, 12 de junho de 2011

Heróis e vilões

Por João Paulo da Silva

A maioria de vocês, assim como eu, provavelmente acompanhou nos gibis ou nos cinemas as aventuras de conhecidos super-heróis, imortalizados pela cultura pop, como Homem-Aranha, Super-Homem, Capitão América, X-Men etc etc etc. Gente que utiliza super poderes para salvar vidas, impedir o fim do mundo e lutar por justiça e liberdade. Gente que pode voar, desviar de balas, escalar paredes com as próprias mãos e levantar toneladas. Longe da ficção e da fantasia, essa gente não existe. Na vida real, os heróis são outros. São de carne e osso, sangram, pagam contas, recebem salários de fome, andam em ônibus lotados e passam horas em filas de hospitais. Mas, entre os personagens dos gibis e os humanos da realidade, existe ao menos uma semelhança: todos eles possuem terríveis vilões para enfrentar.

No universo das histórias em quadrinhos, os inimigos querem dominar o planeta, fazer experimentos perigosos e mirabolantes e espalhar maldade por todos os lados. No mundo real, é um pouco diferente, mas não menos terrível. Os vilões já controlam o mundo, através de bancos, grandes empresas, latifúndios e governos opressores. Exploram o trabalho da maioria dos povos e fazem guerras para garantir lucros altos. Com uma ganância sem limites, os inimigos da vida concreta ainda cortam verbas dos serviços públicos essenciais, só para alcançar um superávit primário maior e encher cada vez mais os próprios bolsos de dinheiro. O desemprego, a fome, a miséria e a violência são as consequências que vêm com os atos dos verdadeiros vilões.

Assim como os super-heróis dos gibis, os heróis de carne e osso também lutam todos os dias. Lutam para salvar vidas de incêndios, lutam para salvar vidas em hospitais, lutam para guiar vidas nas salas de aula e lutam pela própria sobrevivência. Mas quando estes heróis decidem lutar cruzando os braços em defesa de melhores salários e condições de trabalho, os vilões da História, da mesma forma como nos gibis, respondem com ações inescrupulosas e violentas. Chamam os mocinhos de vândalos, bandidos e delinquentes, além de convocar a polícia para reprimir.

No entanto, igualando-se aos super-heróis das histórias em quadrinhos, os heróis que sangram e recebem salários de fome também resistem e enfrentam seus inimigos. Às vezes perdem, às vezes ganham. Mas sempre retiram lições importantes de suas batalhas. Descobrem que, ao contrário dos super-heróis dos gibis, eles não podem vencer seus próprios vilões sozinhos. Precisam estar juntos, unidos como um time, um grupo, uma liga, uma classe.

Os bombeiros do Rio de Janeiro e todos os trabalhadores que fazem greves neste país e enfrentam seus inimigos mostraram ao mundo que é possível lutar, que é possível vencer. Mesmo sem possuir super poderes.

domingo, 5 de junho de 2011

O homem que jogava damas

Por João Paulo da Silva

Artur adorava jogar damas. Desde criança, ele vivia agarrado com as damas. Era a única coisa que despertava seu interesse. Nada de pipa, nem bola de gude ou pião. O negócio mesmo era jogar damas. Em qualquer lugar que estivesse, o tabuleiro e as pecinhas sempre estavam com ele. No início até parecia natural.
- Vai ser bom pra desenvolver mais rápido o intelecto. – dizia o pai, seu Matias.

Mas aí o que era exercício de inteligência acabou se transformando em obsessão. Artur começou a deixar de lado outras atividades. Não via mais televisão, não lia os gibis que o pai lhe dava, deixou até de fazer as tarefas da escola. Só queria saber de jogar damas. Não parava nem para ir ao banheiro. Fazia ali mesmo. Dizia que era pra não perder a concentração. Quem não gostava nadinha disso era a mãe, dona Vânia. Ficava louca. “Arturzinho, meu filho, assim não dá!”. Os coleguinhas do bairro, que já haviam perdido para Artur inúmeras vezes, estavam de saco cheio.

Decidiram que não jogariam mais com ele. Parecia que o problema tinha chegado ao fim. Sem oponentes, Artur não podia jogar. Aí ele teve uma brilhante idéia.
- Dona Márcia, o Juca tá em casa? – perguntou o obsessivo jogador depois que a mãe do amigo abriu a porta.
- Claro que tá, Arturzinho. Vai lá no quarto dele.
O Juca sobressaltou-se quando viu o Artur entrar.
- O que é que você quer aqui?!

O Arturzinho tirou detrás das costas o tabuleiro e as pecinhas. Olhou para o amigo com malícia e disse:

- Você vai jogar comigo.
- De jeito nenhum! Nem pensar! – resistiu o Juca.
Artur puxou do bolso um lápis com uma ponta bem afiada.
- Ou você joga, ou eu te furo! – ameaçou o obsessivo.
- O que é isso, Arturzinho? Não é bem assim. Sou teu amigo, lembra? – fraquejou o Juca.
- Se é meu amigo, então joga!!
- Tá bom. Mas só uma.
- Certo.

Não havia dúvidas, a obsessão do Artur tinha passado dos limites. Os pais resolveram tomar uma providência. Destruíram o tabuleiro e as pecinhas e internaram o garoto.

Algum tempo depois, o Arturzinho parecia curado. Tinha se tornado um belo adolescente e estava até namorando a Marta. Voltou a estudar e a praticar outras atividades. Os pais se orgulhavam da cura do filho. Levava uma vida normal. Era o que parecia até chegar o dia do seu aniversário. Estava completando dezesseis anos. Dona Vânia fez um bolo, preparou uns salgadinhos e chamou todos os amigos do filho. Ele soprou as velinhas e começou a abrir os presentes. Parou no da Marta.
- Abre, amor. Você vai gostar. – incentivou ela.

Quando o aniversariante abriu o pacote, todos se entreolharam num silêncio angustiante e constrangedor. Era um jogo de damas. Ninguém pôde culpar a Marta. Ela não sabia. Após alguns minutos de apreensão, Artur se despediu de todos e subiu para o quarto. Levou a Marta com ele. Ninguém disse nada.

As horas passavam e os pais ficavam cada vez mais nervosos. Queriam saber o que estava acontecendo lá em cima. Resolveram subir. A mãe encostou a cabeça na porta e ouviu as vozes:
- Vai, amor. Só mais uma, vai.
- Tô ficando cansada, Arturzinho. Não agüento mais.
Dona Vânia não vacilou. Tomou distância e se jogou contra a porta, arrombando-a. Pegou o filho na cama com a namorada. O que seria absolutamente normal se eles não estivessem jogando damas.
- Por que, meu filho? Por quê? – disse a mãe em lágrimas.
- Não resisti, mamãe. Não resisti.

O vício voltou mais forte. O furacão hormonal da adolescência aumentou de algum modo o desejo obsessivo do Arturzinho pelo jogo.
- Por que você gosta tanto de damas? – quis saber um amigo no meio de uma partida com o Arturzinho.
- Porque é excitante.
- Como assim?
- O lesbianismo me excita.
- Ainda não entendi. – disse o amigo.
- Um jogo onde uma dama come a outra é na verdade um jogo de lésbicas. – respondeu o obsessivo sem tirar os olhos das peças.
O amigo não riu da piada de mau gosto. Estava sentindo pena do Arturzinho.

A Marta tentou de tudo para livrar o namorado do vício. Apelou até para o erotismo. Tinha perdido as contas de quantas partidas já havia jogado com o Artur. Não agüentando mais, resolveu usar sua sensualidade.
- Amorzinho... – começou ela levantando a saia e mostrando a calcinha.
- O que é? – falou sem tirar os olhos do tabuleiro.
- Dá uma olhadinha pra mim.
- Daqui a pouco. Daqui a pouco.
A Marta abriu a blusa e mostrou os seios.
- Mozinho... Dá só uma olhadinha, vai?
- Depois, Martinha. Depois. Preciso me concentrar. – continuou sem olhar.
Aí a Marta tirou toda a roupa e começou a dançar de forma insinuante para o Artur.
- Ei, gatinho. – disse ela rebolando – Olha como eu tô agora, gatinho. Olha, vai.
- Fica quieta, Marta! Tá atrapalhando.

A pobre Marta recolheu as roupas, encostou-se num canto e começou a chorar baixinho. Aquilo era um absurdo. Um machismo sem tamanho. Como é que ele pôde trocar a Marta pelas damas?! Minutos depois, ela ouviu um “Psiu!”. Virou a cabeça. Era o Arturzinho.
- Martinha... – começou ele.
- O que foi, Arturzinho? – disse ela enxugando as lágrimas.
- É a tua vez de jogar.
A Marta desatou num choro descontrolado.

O tempo passou, e o Artur ficou maduro. Mas o vício persistia. Os pais resolveram não mais tentar salvar o filho. Estavam cansados. Tinham tentado de tudo. Psicanálise, terapia de grupo, choque elétrico. “Não tem mais jeito, Vânia. Não tem mais jeito”. – lamentava-se o seu Matias. Artur se formou em Direito (não havia faculdade para jogo de damas), abriu um escritório e marcou o casamento com a Marta. Apesar de tudo, ela ainda o amava. No dia do casamento, antes da noiva subir ao altar, dona Vânia perguntou:
- Minha filha, você tem certeza do que está fazendo?
- Certeza mesmo a gente nunca tem. Mas eu o amo.
- Como vai conviver com as damas, minha filha?
- Dá-se um jeito, dona Vânia. Dá-se um jeito.
A Marta realmente amava o Arturzinho.

Quando a noiva entrou na igreja, viu que ela estava lotada. Havia parentes, amigos de infância e da faculdade, gente que conhecia o casal e também a obsessão do Arturzinho. No altar, Marta percebeu a ausência do noivo e do padre. Indignada, chamou o seu Matias num canto.
- Cadê o padre, seu Matias?! E o Arturzinho?!
- Não sei, minha filha. Não sei.
Quando um possível tumulto parecia iminente, ouviu-se um grito vindo do confessionário.
- Socorro!!

Dona Vânia correu na direção do grito. Parou diante da porta do confessionário, estava temerosa. Temia que seu maior pesadelo estivesse do outro lado. Ouviu novamente o grito, agora mais fraco.
- Socorro!

Abriu a porta e deu de cara com seu pesadelo. O Arturzinho estava estrangulando o padre. Espalhados pelo chão do confessionário, estavam o tabuleiro e as pecinhas do jogo de damas. “Vamos, canalha! Jogue comigo! Você prometeu!”. – gritava o Artur com as mãos no pescoço do sacerdote. Dona Vânia olhou com pesar para o filho, visualmente decepcionada. Virou-se e encarou a nora nos olhos. Não foi preciso dizer nada para que a Marta compreendesse o que a sogra havia visto. A Marta começou a chorar descontroladamente, mas se casou mesmo assim.

O casamento nem durou muito. O Arturzinho acabou morrendo. Quer dizer, acabou se matando.

A Marta sempre foi muito chegada em sexo. Gostava mesmo. Na adolescência até ganhou a fama de ninfomaníaca. Tudo bem. Antes sexo do que damas. Mas aí o Arturzinho acabou pegando pesado com a Marta. Apelação mesmo. Quando ela o procurava antes de dormir, ele era categórico:
- Só se você jogar uma partidinha comigo.
- Mas Arturzinho...
- É pegar ou largar.

No início ela até aceitou. Queria preservar o casamento, salvar a relação, ainda amava o Artur, essas coisas. Aí o tempo passou e ela se encheu dessa situação. Estava disposta a resolver definitivamente o problema do marido. Pediu a todos os amigos do Artur – os da infância, os do escritório, da faculdade, do barzinho – para que parassem de jogar com ele. Organizou um movimento chamado “Salvem o Artur”. Havia cartazes espalhados por todos os lugares. Até outdoor e tempo na TV a martinha conseguiu.
- Mas... E se ele nos ameaçar? – perguntaram os amigos.
- Chamem a polícia.

Rapidamente o resultado começou a aparecer. O Artur ficou três semanas sem jogar, estava acuado. Ainda tentou persuadir a Marta, mas foi em vão.
- Vai, Martinha. Eu juro que brinco de papai e mamãe se você jogar só uma comigo.
- Nem pensar, Arturzinho!

Não tinha mais jeito. O obsessivo estava encurralado. O plano tinha dado certo. Os amigos se afastaram, os parentes sumiram. Ninguém mais jogava com o Artur. Quer dizer, quase ninguém.

Um dia a Marta chegou do trabalho e pegou o Arturzinho na mesa da sala com o maldito jogo. Mexia uma peça, levantava-se da cadeira, ia até o outro extremo da mesa, mexia mais uma peça e voltava para onde estava sentado. Repetia esse movimento inúmeras vezes. Aí a Martinha sacou.
- Ficou maluco, Artur? Deu pra jogar sozinho agora, foi?
Não houve resposta. A Marta deu de ombros. “Dessa vez ele desiste.” – pensou. E saiu pra comprar pão.

Quando voltou da padaria, encontrou a sala em total desordem. Mesa e cadeiras tombadas, vasos quebrados e o tabuleiro e as pecinhas espalhados pelo chão. Num canto da sala, estava o Arturzinho. Estava deitado sobre uma poça de sangue. Numa mão segurava a faca que usara para cortar o pulso; na outra, um bilhete manchado de sangue.

Querida, me desculpe. Fiquei louco por não ter ninguém pra jogar. Você sabe, né? Eu adoro damas. Não posso viver sem jogar. Meus amigos me abandonaram, você não jogava mais comigo. Fiquei isolado. Desde que comecei a jogar, nunca perdi pra ninguém. O bom era ganhar de todo mundo. E eu ganhava! Mas hoje sofri minha primeira e última derrota. Sem oponentes, resolvi jogar contra meu maior adversário: eu mesmo. Perdi. E perdi feio! Isso me irritou profundamente – desculpe pelos vasos. Era um desaforo, uma humilhação. Tenho certeza de que pior que viver sem jogar seria ter de conviver com a presença desagradável da derrota. Não suportaria. Não tive escolha. Espero que me perdoe.

Com amor,

Arturzinho.

P.S.: Gostaria de ser enterrado com as damas. Não fique chateada, querida. Você entende, né? Te amo.

Artur

Todo mundo compareceu ao funeral do Arturzinho. Amigos, familiares, vizinhos etc. Dona Vânia e seu Matias estavam inconsoláveis. Desgraça maior não poderia ter acontecido. A viúva, de pé em frente ao caixão, com os olhos fundos e o rosto vermelho, escutava com desatenção as palavras do padre. Pensava na parte do bilhete que ela havia omitido da família do falecido. A Marta não contou para os pais do Artur que seu último desejo era ser enterrado com o maldito jogo. Rasgou essa parte. Talvez quisesse poupá-los. Nunca descobriu se o seu Matias e a dona Vânia a culparam pela morte do filho. Eles nunca disseram nada. Depois da última pá de terra e dos últimos “meus pêsames” o funeral se desfez. A Marta foi para casa, levando com ela um segredo. Antes de fechar o caixão, ela pôs o jogo dentro. Chorou descontroladamente, mas mesmo assim acabou enterrando as damas com o marido. É que a Marta amava realmente o Arturzinho.