sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

O apartamento

Por João Paulo da Silva

Ele passava por ali todos os dias. Desde que ela fora embora, aquilo se tornara uma constante em sua vida. Era parte de seus dias e noites. Uma necessidade inabalável, como comprar o pão todas as manhãs ou tomar um banho todas as noites, mais para limpar a alma do que o corpo. Ficava ali, em frente ao antigo prédio dela, com os olhos presos à janela do apartamento. Esperava um sinal qualquer, um aceno, uma lâmpada acesa. Qualquer coisa que lhe permitisse compreender que podia subir, tocar a campainha, entrar no apartamento e beijar-lhe a boca pela primeira vez. Mas não. Não haveria luz acesa, nem aceno, nem qualquer tipo de sinal. Há meses ela não vivia mais ali.

Para ele, ficaram apenas as lembranças e as possibilidades, imagens soltas e turvas do que viveram juntos e também daquilo que não tiveram tempo ou coragem para viver. Agora, como um velho de oitenta anos parado sobre o ponteiro das horas, ele pensa no hiato em que se transformou sua vida. O vácuo. O vazio. A garganta do monstro que insiste em não devorá-lo. Olhando a fachada do prédio, ele pode jurar que sente o cheiro dela. Um cheiro doce, trazido pelo vento, como naqueles dias em que ela subia as escadas deixando pra trás o perfume. A fragrância adocicada fez suas recordações ganharem mais cor, se transformando em quadros recém-pintados. Em tinta fresca.

Diante da escuridão da janela, as imagens daquela tarde foram surgindo aos pingos. Ali, no quarto dela, sentados frente a frente. As caixinhas de som do computador tocando Doce vampiro, da Rita Lee. Comendo jujubas, ela o encarava como se quisesse despi-lo. “Venha me beijar, meu doce vampiro” – cantarolava, bastante convidativa. Colocou uma jujuba entre os lábios e ofereceu a ele. As bocas se tocaram por um breve momento, tempo suficiente para ele perceber o quanto era bom ser mortal. O olhar terno que ela lhe lançou depois revelou que não eram duas esferas verdes que existiam naquelas órbitas. Eram dois enormes labirintos. E nunca foi tão bom se perder neles.

As luzes de Natal e as crianças brincando formavam o único quadro de coisas vivas na frente do prédio. Quando a chuva começou a cair com força, todas as criaturas correram para seus abrigos. Ele procurou uma árvore grande para se amparar, sempre protegendo o envelope que tinha nas mãos. O frio da noite lhe fez sentir um estremecimento. Lembrou do dia, muitos meses atrás, em que voltavam pra casa. Sentada ao seu lado no ônibus, ela repentinamente aproximou a boca do seu rosto e lambeu-lhe atrás da orelha. Ele estremeceu, como que atingido por uma golfada de vento. Riram. Daquele dia em diante, sempre que estavam no ônibus, ele pedia para que ela lhe lambesse a orelha.

Mas, agora, com o olhar fixado no aviso de “aluga-se”, as lembranças parecem mais saraivadas de balas contra o peito. Tantos foram os dias em que ele deitou a cabeça em seu regaço, querendo apenas os afagos daquelas mãos. Foram confissões, segredos, pecados, angústias e solidões trocadas. Uma cumplicidade que só os amantes possuem. Nunca foram ao cinema juntos. Mas viram alguns filmes comendo pipoca e bebendo vodca com fanta. Faziam juras de amor.

Um dia ela falou que ia embora. Não dava mais pra ficar. Andava sofrendo muito e achou que assim seria melhor. Até já tinha se afastado dele nos últimos tempos, estava diferente. Não queria criar problemas, era o que ela dizia. Não podiam andar juntos, nem mesmo podiam ser vistos juntos.
Acabou indo embora. Na despedida, apenas se olharam. Talvez nunca mais voltasse.

A chuva começou a diminuir. Foi ficando rarefeita, assim como as lembranças que se diluíam ao tocar o asfalto do passado. Com os olhos ainda pregados no apartamento escuro, ele se deixou tomar por fantasmas daquilo que não aconteceu. Um flashback do “se”. Saudades do que poderia ter sido, mas não foi. Muitas foram as vezes em que ficaram só se olhando. Dias e noites que poderiam ter sido resolvidos com um único gesto. Frases que murcharam antes mesmo de saírem da boca.

A saudade é um privilégio dos povos de Língua Portuguesa. Os americanos, por exemplo, não sentem saudade. Sentem falta de alguma coisa. Antes de atravessar a rua, era nisso que ele estava pensando. Na saudade da vida que nunca teve. Dos beijos que nunca deu. Das noites que não dormiu. Das cartas que não escreveu. Do amor que nunca fez. Era um homem pela metade, incompleto. Um náufrago em terra firme.

Com o envelope nas mãos, subiu devagar as escadas que há muito tempo não subia. Aproveitou o percurso até o apartamento para cantarolar Doce vampiro. Lembrava com nitidez o número. Parou diante da porta. Olhou pela última vez o que tinha escrito dentro do envelope. Duas palavras apenas. Foi o mais sincero possível. Não assinou o bilhete. Não era preciso. Ela entenderia quando voltasse. Passou o papel por baixo da porta e desceu as escadas.

Ao sair do prédio, ele podia jurar que havia sentido um cheiro doce vagando na noite.

domingo, 16 de dezembro de 2007

A democracia do porrete

Por João Paulo da Silva

Definitivamente vivemos outros tempos. Muito confusos, por sinal. Há dez anos, minha mãe costumava dizer:
- Filho! Se você não estudar, vai apanhar.
Provavelmente muitos filhos já ouviram isso de seus pais. Era um incentivo. Antipedagógico, concordo. Mas um incentivo.

Hoje as coisas estão diferentes. A regra agora é bater naqueles que desejam estudar. Principalmente naqueles que defendem uma educação pública, gratuita e de qualidade para todos.
Não há dúvidas. Os tempos são outros.

Prova maior disso foi o circo dos horrores montado há alguns dias pela reitora da Ufal, Ana Dayse Dórea. Tudo o que os estudantes queriam era discutir com toda a universidade o famigerado Reuni de Lula. Queriam apenas um plebiscito. Debater democraticamente com a comunidade acadêmica o desmonte da educação pública representado por este decreto. Não foi o que aconteceu.

A reitora, que enxerga em si mesma o último baluarte da democracia, não aceitou a proposta de plebiscito dos estudantes. Para ela, é mais democrático que 53 conselheiros definam o futuro da universidade. A resposta de Ana Dayse no Consuni veio em forma de socos e pontapés. Estudantes que protestavam pacificamente contra a falta de uma discussão mais ampla foram agredidos por seguranças patrimoniais a mando da reitoria. Estava inaugurada a democracia do porrete.

Se o Reuni é tão bom como afirma a reitora, por que não discutí-lo abertamente? Por que decidir um projeto desses num acordão de cúpula, onde existe um jogo de cartas marcadas? Ora, é muito simples. Ana Dayse é uma fiel escudeira do governo neoliberal de Lula. Governo este que tenta implementar a todo custo uma reforma universitária privatizante, destruindo os últimos vestígios do caráter público da educação. Expandir indiscriminadamente as vagas, sem aumentar os recursos para o ensino superior, criando cursos sem qualidade, precarizando a educação dos estudantes e o trabalho dos docentes, soa aos meus ouvidos como um dos maiores ataques já realizados por Lula. Para mim, já está mais do que claro: o Reuni é o coveiro da universidade pública e Ana Dayse, um títere de porrete.

Não satisfeita com sua demonstração de autoritarismo, a reitora ainda deu uma trágica e cômica declaração numa coletiva de imprensa. “Eles (os estudantes) são partidários, elitistas e agressivos.”. De fato, tenho que reconhecer. O movimento estudantil é formado por latifundiários e banqueiros. Eu mesmo só trabalho para disfarçar. Sou acionista de várias multinacionais. E, assim como os outros estudantes, também sou agressivo. Na verdade somos tão agressivos que mal podemos sair nas ruas. Queremos bater em todo mundo.

O mais ridículo disso tudo é que nem parece que foram os estudantes os agredidos. Alguém precisa dizer à reitora que foram os seguranças patrimoniais que quebraram o patrimônio em nossas cabeças. Com o consentimento dela, claro.
Ah! Uma última observação. A pedido de Ana Dayse, a Polícia Federal apareceu na Ufal para verificar o comportamento dos estudantes que montaram uma vigília no hall do prédio da reitoria. Empunhando metralhadoras, os policiais federais queriam saber se os estudantes haviam quebrado alguma coisa. Nas palavras do próprio delegado: “Estamos aqui para dialogar e evitar destruição”.

Não sei, não. Dialogar e evitar destruição com armas em punho?! Não quero ser apocalíptico nem alarmista, mas precisamos ficar atentos. Nuvens escuras despontam no horizonte.

sábado, 8 de dezembro de 2007

O Natal que Lula deu a Renan

Por João Paulo da Silva

Ele pode dormir tranqüilo. Já recebeu seu presente de Natal. Antecipando as festas natalinas, o Governo e o Senado resolveram presentear Renan Calheiros (PMDB-AL). Sim, porque foi indiscutivelmente um presente. “Nunca na história deste país” um presidente da República interpretou tão bem um personagem.

Lula “Noel” – como vai ficar conhecido de agora em diante – brindou o fim do ano com a impunidade de Renan. Desceu a chaminé do Senado e deixou um peru de Natal na meia do ex-presidente da Casa. A absolvição de Calheiros da acusação de comprar meios de comunicação através de “laranjas” é mais uma prova de que a justiça não é cega. Tem visão aguçada e faro fino para prender trabalhadores negros e pobres. E, mais recentemente, aprendeu a manter uma menor de idade numa cela com homens. Enquanto isso, um parlamentar corrupto pode fazer a rapina do dinheiro público tranquilamente. O Senado que livrou mais uma vez a cara de Renan e a Justiça que não condena ricos comprovam cinicamente o caráter de classe dessas instituições.

Mas o presente que Lula deu a Renan é fruto de um acordão. Na acusação de ter contas pagas por um lobista, o governo utilizou desde chantagem até liberação de verbas para salvar Calheiros. Desta vez, a moeda de troca foi a CPMF. Se Renan fosse cassado, o PMDB ameaçava não aprovar a prorrogação do imposto do cheque. “Faz sentido, não faz?” – chegou a dizer o senador Gilvan Borges (PMDB-AM). Os conchavos e as negociatas são práticas típicas da democracia dos ricos. Bandidos sabem lidar com bandidos. Estão em casa.

Olha, eu não vou dizer que essa nova absolvição foi uma palhaçada. Seria uma ofensa aos palhaços de circo que ganham a vida fazendo os outros rirem. Mas vou contar uma história que provavelmente vai nos ajudar a entender o ocorrido.

Sou professor de Português numa escola perto da minha casa. Esta semana, durante uma aula sobre substantivos coletivos, fui surpreendido por uma resposta de meus alunos.
- Então, queridos alunos, vamos ver se vocês conhecem os substantivos coletivos. Qual é o coletivo de camelos?
- Cáfila! – responderam todos.
- Muito bem. E o de lobos?
- Alcatéia!
- Perfeito, turma! E o de abelhas?
- Enxame, professor!
- Maravilha! Vocês estudaram, hein! Agora eu quero ver se vocês sabem este. Qual é o coletivo de ladrões?
A resposta foi instantânea.
- Senado! – gritaram todos.
Tá errado? Eu posso dizer que tá errado?! Não, não posso!

Em 2005 manifestantes fizeram uma marcha a Brasília contra a corrupção. Uma das palavras de ordem mais cantadas era: “É ou não é piada de salão! O chefe da quadrilha é o presidente da nação!”.
Mais atual do que nunca.

domingo, 2 de dezembro de 2007

De quem é a culpa?

Por João Paulo da Silva

É sempre assim. Basta um crime brutal ocupar as principais páginas dos jornais do país para a imprensa e todo um setor da burguesia brasileira começar logo a espernear em torno do aumento da repressão para combater à criminalidade. Ficam desesperados, exigindo mudanças na legislação, endurecimento contra o crime e redução da maioridade penal. Uma baita de uma hipocrisia.

A mídia e os políticos aproveitam todo desespero e dor da sociedade para defender o aumento da repressão e esconder as verdadeiras causas que geram a criminalidade. Para eles, a solução parece muito fácil. Basta elevar o número de policiais e está tudo resolvido. Não têm interesse nenhum em buscar as raízes do problema.

A política que coloca mais polícia nas ruas já demonstrou sua falência. Mesmo com o aumento do efetivo policial, a criminalidade não diminuiu nos grandes centros urbanos. Prova disso é que nem o PCC nem as balas perdidas (que de perdidas não têm nada!) pararam de agir. A elevação do poder repressor do Estado burguês só faz aumentar a violência. E as vítimas preferidas são sempre negros, pobres e trabalhadores.

Toda a direita (incluindo o Lula e o PT!!!) é responsável pelo crescimento da violência no Brasil. Os governos do PSDB/DEM e, agora, do PT, com seus planos econômicos neoliberais, fizeram aumentar a já gritante desigualdade social do país. Essa barbárie que se alastra como uma peste entre nós não tem outro motivo senão a manutenção do capitalismo, sustentado pela burguesia, seus governos e Congresso corruptos. Sem resolver os problemas básicos da sociedade (desemprego, fome, miséria etc), não há como resolver o problema da criminalidade. É por essa razão que os verdadeiros responsáveis pela violência acham mais fácil, digo, mais interessante aumentar a repressão.
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Pouco tempo depois do assassinato do menino João Hélio, o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral (PMDB), saiu em defesa do disparate da redução da maioridade penal. E não saiu sozinho. O Congresso foi atrás, colocando a proposta em pauta de discussão.
Diante de tal situação, eu fico pensando cá com meus botões. O que faz o Cabral e outros malucos acharem que a redução da maioridade e o aumento da repressão vão inibir a violência urbana? Acho que eles devem pensar assim: “Se tivesse mais polícia nas ruas e a maioridade penal fosse de dezesseis anos, aquele menor que participou do assassinato do garotinho teria pensado duas vezes antes de participar do crime.” Quer dizer que quando alguém de catorze anos participar de uma tragédia semelhante outro maluco vai propor que a maioridade penal seja reduzida para catorze anos. E assim sucessivamente. Eu até já imagino aonde isso vai parar.
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Já é noite numa maternidade pública em alguma cidade do Brasil. A mãe respira tipo cachorrinho. O médico pede que ela faça um pouco mais de força.
- Vamos! Ele já está quase lá. Força!
Finalmente o choro. Uma linda criança negra vem ao mundo. A mãe segura seu filho, ainda sujo de sangue, entre os braços. De repente a porta da sala de parto se abre e um grupo de policiais invade o recinto. Um deles vira-se para a mulher com o filho nos braços e diz:
- Seu filho está preso!
- O quê?! Que história é essa? Preso por quê?! – desespera-se a mãe.
- Por ser negro e pelos crimes que ele ainda vai cometer. – informa o policial.
- Mas ele ainda é menor de idade!
- Até ontem, minha senhora. A maioridade penal foi reduzida de novo. Agora, para os primeiros trinta segundos de vida.
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Não tenho dúvidas de que a tragédia ocorrida com o pequeno João Hélio foi outro sinal da barbárie social mais do que anunciada em nossos tempos. Crimes brutais como esse do garoto ocorrem cotidianamente nos grandes bolsões de miséria. A população negra e pobre é a principal vítima. Só com uma diferença. Nos grandes bolsões não são tragédias. São só estatísticas.

domingo, 11 de novembro de 2007

Um pesadelo monetário

Por João Paulo da Silva

Há tempos a vida vem me apresentando figuras memoráveis. Pessoas que estão guardadas no âmbito das minhas melhores lembranças. Algumas delas dotadas de características extremamente peculiares. Merece destaque aqui um professor de Português. Homem de feições irreverentes, olhos alegres, pele morena, ventre levemente roliço e dono de uma barbicha suspeita. Flávio Vitor tornou-se um estimado professor graças ao seu inovador e divertido método de ensino. É o sujeito mais pitoresco que já conheci. No mês passado, um amigo noticiou-me um triste incidente. Contou-me ele que o contagiante professor Flávio havia sofrido um infarto. Perguntei com bastante pesar como ocorrera esse desastroso acontecimento. Meu informante me confidenciou, em detalhes, toda a história.

Era uma quente manhã de sábado e o professor relaxava em sua casa. O telefone tocou.
- Alô?
- Professor Flávio Vitor?
- Ele mesmo.
- Meu nome é Vilma Albuquerque. Minha filha precisa urgentemente de uma aula particular de gramática. Fiquei sabendo que o senhor é o melhor no faz. Será que o senhor poderia ajudar?
- Acho que sim. Mas vou logo avisando que meu preço é um pouco salgado.
- Não importa o valor. Eu pago qualquer preço.
O professor anotou o endereço e dirigiu-se ao local. Era um desses condomínios de gente rica, completamente fechado e com um rigoroso sistema de segurança. Flávio identificou-se na portaria.
- Sou o professor Flávio Vitor. Fui chamado para dar uma aula. Minha cliente é a senhora Vilma Albuquerque.
O segurança verificou uma lista e depois liberou a entrada. Flávio encaminhou-se até a casa de sua cliente. Parou diante da porta. Estava espantado com a grandiosidade do casarão. Normalmente ele cobra vinte reais por uma hora de aula, mas naquela situação resolveu que deveria “extorquir” mais alguns trocados. Ele nunca escondeu de ninguém seu apego compulsivo pelo dinheiro. Tocou a campainha e esperou. Um mordomo abriu a porta e o levou por um longo corredor até uma sala espaçosa, onde se encontrava a dona da casa. A ricaça falou:
- Bom dia, professor. Já pode começar sua aula. Minha filha o espera na sala ao lado.
- Bom, eu só queria lembrar que meu preço é muito... – a ricaça interrompeu. – Já disse que o valor não é problema. Depois acertamos.
A aula transcorreu naturalmente. A menina conseguiu assimilar muito bem a matéria e ficou satisfeita. Flávio estava ansioso por receber seu pagamento. Dona Vilma perguntou-lhe o valor:
- Quanto foi?
O professor vomitou o preço.
- São cem reais.
Dona Vilma não hesitou. Retirou de sua bolsa duas notas de cinqüenta e as entregou ao professor. Flávio sentiu um ardoroso arrepio percorrer-lhe o corpo e com um sorriso de orelha a orelha, ele disse:
- Obrigado. Muito obrigado.
Vilma ordenou ao motorista que levasse o professor em casa. Ele estava radiante de felicidade e foi logo contando a novidade para a mulher:
- Querida, ganhei cem reais com uma única aula!
Passou-se uma semana. Flávio descansava na tranqüilidade do lar quando o telefone tocou.
- Alô?
- Professor Flávio?
- Ele mesmo.
- Sou eu, Vilma Albuquerque.
- Olá, Dona Vilma. Algum problema?
- Não, não, não. Estou ligando pra lhe agradecer. Minha filha obteve melhoras bastante significativas nas notas do colégio. O senhor é bom mesmo, hein!
- Ora, muito obrigado.
- Olha, se o senhor tivesse cobrado duzentos reais, eu teria pago.
- O quê?! – assustou-se Flávio.
- Isso mesmo. Se o senhor tivesse cobrado, eu teria pago bem mais. Muito mais.
O professor sentiu uma pontada violenta no lado esquerdo do peito, a vista escureceu, as pernas enfraqueceram e ele caiu. Rolou no chão agonizante, a respiração lhe vinha difícil. Finalmente apagou.
Foi internado às pressas pela mulher. O médico diagnosticou infarto do miocárdio. Fato estranho para um homem tão jovem e sem antecedentes. Graças a Deus o professor foi socorrido a tempo e o pior não aconteceu. Passou alguns dias sob cuidados médicos antes de receber alta.
Eu nunca pensei que acontecimentos como esse pudessem ocorrer com pessoas tão próximas. Há dois dias encontrei a esposa de meu querido amigo na rua. Perguntei como andava a saúde do professor Flávio, e ela me respondeu com um vago otimismo:
- Fisicamente ele está bem, mas o choque foi muito forte e abalou as estruturas psicológicas.
- Como assim?
- Nossa vida não é mais a mesma. Ele culpa-se constantemente por não ter arrancado mais dinheiro daquela ricaça. Anda assustado pelas ruas e ultimamente vem tendo uns pesadelos delirantes.
- Que tipos de pesadelos?
- Ele conta que nos sonhos é arduamente perseguido por duas notas de cinqüenta reais.

domingo, 4 de novembro de 2007

Um péssimo dia

Por João Paulo da Silva

Há dias em que as pessoas se encontram com os nervos à flor da pele. Como não sou tão diferente dos outros, também tenho os meus dias de mau humor. Era uma segunda-feira escaldante. O sol devia ter acordado com muita vontade de trabalhar. Resolvi sair mais cedo do escritório, um pouco antes da hora do almoço pra ser exato. Eu estava indignado por não ter conseguido fechar um grande negócio. Acabara de perder a chance de tirar a barriga da miséria. Acho que nunca mais irei ver tanto dinheiro em minha vida. Sentia-me sufocado, precisava de ar. A cabeça me pesava estranhamente, parecia haver um bloco de concreto dentro dela. Tudo o que eu queria era chegar o mais rápido possível em casa. Jamais havia me sentido tão mal.

Quando cheguei ao ponto de ônibus, meu desespero aumentou. O ponto parecia um formigueiro e não havia um só lugar onde eu pudesse me proteger da fúria do sol. O calor me consumia as idéias. Eu suava feito um porco. Tive a impressão de que meus miolos iriam fritar ali mesmo.
O tempo passava e eu sentia minha paciência se esgotando junto a cada gota de suor que brotava de minha epiderme. A agonia que eu estava sentindo se materializou na forma de uma coceira nervosa. Foi aí que uma súbita alegria me invadiu, pois um ônibus se aproximava ao longe. Fui ao encontro do veículo e quase que a multidão alvoroçada me pisoteou. Concluí que muitos deveriam estar na mesma situação que eu. Tive algumas dificuldades para entrar no coletivo por conta do empurra-empurra. Porém, com muito esforço, consegui.

O ônibus já estava relativamente cheio e para minha infeliz surpresa não havia mais assentos vagos. Resignei-me a aceitar a idéia de ter que fazer a viagem em pé. Mas o pior ainda estava por acontecer. Começaram a subir os mais variados tipos humanos que se possa imaginar. Em questão de minutos a “lata de sardinhas” estava lotada. Pessoas se dependuravam do lado de fora. Ouviam-se alguns gritos:
- Cabe mais não, “motô”!
- Vambora, motorista!
Havia ainda uma oscilação de odores. Ora sentia-se um forte cheiro de suor, ora o ar se tornava pestilento e azedo por conta de uma criança que, enjoada, vomitara. Finalmente o ônibus se pôs em movimento. Decerto que aquilo não era um ônibus. Mais parecia uma sucursal do inferno motorizada. Posso afirmar sem exageros que eu me encontrava numa situação bastante apertada. Uma senhora de seios avantajados, baixa e com um ventre protuberante se acomodou atrás de mim. Seu corpo grande empurrava o meu, de modo que minhas partes íntimas eram dolorosamente comprimidas contra a lateral de um dos assentos. Do meu lado esquerdo, estava postado um enorme homem branco. Tinha os braços erguidos e suas axilas suadas encostavam-se ao meu rosto a cada “brecada” violenta que o veículo dava. Pude concluir que se eu ficasse por muito tempo naquela situação meu corpo não sobreviveria a tantos ataques externos. Minha capacidade de raciocínio estava lenta, quase estagnada. Tive um leve desfalecimento quando lembrei que o trajeto até a minha casa duraria aproximadamente uma hora. Insultei mentalmente os donos de empresas de transportes coletivos. Desejei-lhes as piores moléstias do mundo. A culpa por esses transtornos era, sem dúvida, pertencente a eles.

A condução seguiu seu caminho e gradativamente as pessoas foram descendo. O “recinto” começava a esvaziar. Fui tomado por um alívio sagaz quando avistei um assento vago. Dirigi-me até ele e me sentei. Abri a janela e senti o ar circulando com facilidade pelos pulmões. Minhas articulações estavam voltando ao normal. Tentei relaxar, pois ainda havia muita estrada pela frente. Presumi que o pesadelo chegara ao fim. Eu estava enganado.

O ônibus fez uma parada para apanhar alguns passageiros. Foi quando vi subir uma figura de feições magras, um tanto cadavéricas. Vestia um feio e amarrotado terno preto. A roupa era desproporcional ao corpo, as medidas estavam completamente desalinhadas. Trazia uma Bíblia embaixo do braço. Devia ser um daqueles evangélicos fervorosos. Havia um lugar vago ao meu lado. Desejei profundamente que não sentasse nele.

Eu devia estar num péssimo dia, pois o homem sentou-se justamente ao meu lado. Convenci-me de que se o cidadão tentasse de qualquer forma me persuadir eu o trataria com sarcasmo. Foi o que fiz. Não demorou muito para que o pulha fizesse sua primeira investida:
- Bom-dia, irmão. – disse ele.
- Bom-dia. – respondi sem entusiasmo.
Fez-se um silêncio momentâneo. O magricela desalinhado abriu sua Bíblia e retirou de dentro um papel. Era um desses folhetos que são distribuídos nas portas das igrejas. Trazia a imagem de como seria o paraíso. Tinha árvores cheias de frutos, uma cachoeira de água cristalina, animais livres e pessoas sorridentes. Entregou-me o papel e disse:
- Acredita num lugar assim, irmão?
Olhei incrédulo para ele e repliquei:
- Ora, é claro que não.
- Por quê? – indagou ele.
- Pelo simples fato de achar isto aqui um absurdo. – apontei para a figura, impressa no papel, de um homem que acariciava a cabeça de um leão como se o bicho fosse o inofensivo gatinho.
- Mas será assim mesmo! Não tenha dúvida. – insistiu. – Tudo será belo e maravilhoso.
Eu já estava ficando impaciente e percebi que era hora de agir sarcasticamente. Fiz minha ofensiva:
- Tudo bem, digamos que o paraíso seja realmente assim. O que farei eu lá?
- Você estará perto de Deus! – disse-me ele com os olhos arregalados.
- Haverá jogos de futebol? – indaguei ironicamente.
- Não.
- Cinema ou televisão?
- Não.
- Festas?
- Também não.
- E cerveja?
- Muito menos.
- Então eu prefiro ficar aqui mesmo. – finalizei.
- Mas você não pode se apegar às coisas mundanas. – disse o pulha.
- Posso sim! E você não se intrometa nisso. Vá cuidar da sua vida! – eu estava prestes a me irritar.
Houve um hiato na conversa. Cheguei a pensar que o falastrão tivesse desistido. Tolo engano. Creio que minhas ofensivas irônicas não estavam surtindo efeito. O magricela falou novamente:
- Você conhece Jeová?
Pensei comigo mesmo que se aquela situação prosseguisse eu não me responsabilizaria por meus atos. O sujeito parecia ser imbatível. Eu pensei em apelar para a ignorância, mas achei melhor usar mais uma tentativa irônica. O indivíduo repetiu a pergunta:
- Você conhece Jeová?
- Quem é esse? Tá no ônibus?
- Ele é Deus e está em todos os lugares. – falou com uma aparente ingenuidade.
- Como assim? Que história é essa de estar em todos os lugares? Quer dizer que ele pode ver tudo o que faço? – perguntei com curiosidade fingida e com um sorriso que me escapava pelos cantos da boca.
- Claro que pode.
- Ele pode ver quando vou ao banheiro?
- Pode.
- Quando vou tomar banho?
- Pode.
- E quando estou fazendo sexo?
- Também. Ele é onipresente.
- Nada disso! Isso é invasão de privacidade. Isso é crime! Eu posso processá-lo. – desferi meu último golpe de ironia.
O mal-arranjado me olhou nos olhos com uma expressão estranha e disse com mansidão:
- Mesmo que você não leve a sério as coisas Divinas, Deus tem um projeto pra sua vida. Ele te ama.
Numa tentativa desesperada, retruquei com total impaciência:
- Moço, eu sou ateu!
- Não importa. Ele te ama mesmo assim.
Foi a gota d’água. Não havia mais saída. O sujeito era definitivamente implacável. Minha paciência se esgotara por completo e o inevitável aconteceu. Nunca fui tão ignorante em toda minha vida.
- Pare, por favor! Eu não agüento mais! Você passou boa parte da viagem me enchendo o saco! Tudo que eu queria era chegar em paz na minha casa.
- Mas a paz está em Deus.
- Chega! Cale essa boca! – fiz um sinal para o motorista de que iria descer.
O homem estava boquiaberto. Os passageiros me olhavam assustados. Desci apressadamente. O ônibus arrancou e aos poucos foi sumindo na estrada. Completei os quilômetros restantes a pé. Cheguei em casa fisicamente exausto, mas meu cansaço não era maior do que a felicidade que eu sentia por finalmente ter chegado. Foi indiscutivelmente um péssimo dia.
Bom, é evidente que tive outros dias ruins, porém nunca mais apanhei um ônibus tão cheio como aquele. Quanto ao pulha, jamais voltei a vê-lo. “Graças a Deus”.

domingo, 14 de outubro de 2007

O que é um poema?

Não me peçam um poema engravatado
Com palavras bem vestidas e alinhadas.
Eu não o farei.
Um poema não é um burocrata,
Não lustra botas,
Não diz “Sim, senhor!”

Um poema é um delírio,
É um pêndulo entre o amor e o ódio,
Um arrebatar de corações,
Um derrubar de cercas.
Um poema é dançar à beira do caos.

Não me peçam um poema recatado
Eu prefiro o escândalo, a nudez.
Porque um poema é um grito
Aos ouvidos da solidão.
Um poema não é o exílio,
É o retorno pra casa.

Faço versos com o corpo,
Com o suor e o sangue dos outros.
Porque um poema é uma veia aberta,
É a insônia dos medos.
Um poema é uma pedra no sapato.

João Paulo da Silva

domingo, 30 de setembro de 2007

O incorrigível

Por João Paulo da Silva

Todos nós cometemos erros. Não há ser humano no mundo que nunca tenha cometido um errinho sequer nessa vida, principalmente quando se trata de erro gramatical. Eu tive um professor de Português que tratava desse assunto com uma peculiaridade absurda, algo jamais visto antes. Ele elaborou um termo extremamente objetivo e claro para designar o ato gramatical falho que qualquer indivíduo viesse a cometer. O professor costumava chamar de “jeguices” os equívocos em que as pessoas tropeçavam por descuido ou por pura ignorância mesmo. Concordo que parece um método um tanto quanto inadequado, mas funcionava.
- Pedrinho, faça o favor de vir aqui a frente. – era o chamado do carrasco.
- Pois não, professor?
- Meu filho, confesso-lhe que esta é uma das maiores jeguices que já presenciei em toda minha carreira como mestre. Onde já se viu escrever casa com “z”?! A palavra casa é grafada com a letra “s”, criatura! Que jeguice, meu Deus! Que jeguice!

Depois da condenação, a turma inteira deitava numa só gargalhada. Era o golpe de misericórdia, a execução. A vítima ficava vermelha de vergonha e os olhos se enchiam de lágrimas.

Muitos pais criticavam o método, mas nada tinham a dizer a respeito dos resultados. O professor garantia que, depois de ter passado pelo processo, o sujeito jamais voltaria a cometer outra jeguice. Os fins justificavam os meios.

Mas as particularidades do professor não param por aí, não se restringem aos alunos, vão aos extremos. Ele é dono de uma mania que sempre incomodou a todas as pessoas que o conhecem e até mesmo as que não o conhecem. Digo isso porque tenho conhecimento de causa. Ele não pode ouvir ou ver alguém cometer uma jeguice sem que lhe venha um desejo doido ao peito de imediatamente corrigir o infeliz. É praticamente uma doença, o que quase sempre lhe causa situações inusitadas.

No coletivo:
- Que ônibus cheio, não é? – comentou uma senhora gorda que estava sentada ao lado do professor.
- É, hoje realmente está lotado. – concordou ele.
- Ontem haviam menas pessoas.

Pronto! Diante de tal absurdo, o mestre não se conteve:
- Minha senhora, tenha santa paciência!
- Mas o que foi que eu disse de errado?
- Tudo, minha senhora! Tudo! Quando usado no sentido de existir, o verbo haver torna-se invariável, ou seja, não vai para o plural. E a palavra menos, por ser um advérbio, também é invariável. Não tem feminino. A senhora cometeu duas jeguices. Uma jeguice dupla!

Assustada, a senhora reagiu:
- E precisa me engolir? O senhor me respeite, viu? Eu nem conheço o senhor!
- A senhora não conhece é a gramática! E quer saber de uma coisa? Eu vou descer na próxima parada porque essas jeguices podem ser contagiosas. Passar bem!
E desceu mesmo.

Outra situação inusitada aconteceu no mercadinho da esquina. O professor caminhava por entre as prateleiras, analisando os preços, quando de repente se deparou com uma jeguice escrita numa placa. “Cocô por R$ 0,70”. Uma tristeza, pensou. O mestre deduziu que o proprietário quisera escrever a palavra coco, e não tamanha barbaridade. No entanto ele não tardou a corrigir o dono do mercadinho.
- Seu Zé, faça o favor de vir aqui.
- Pois não, doutor?
- O senhor me veja um cocô desses, sim?
- Um o quê?
- Isso mesmo que o senhor ouviu. Um cocô desses!
- O doutor deve ter se enganado. Esse tipo de produto eu não vendo não.
- Como não? Vende, sim senhor!

O professor mostrou a placa.
- Olha aí! – disse ele.
- Mas, doutor, isso aí é coco.

O professor não se conteve.
- Meu senhor, coco não é acentuado! O senhor escreveu foi cocô! Pelo amor de Deus! Que jeguice!

O pobre homem ficou extremamente constrangido. Soltou a primeira desculpa que lhe veio à cabeça:
- O doutor me perdoe. Deve ter sido a burra da minha mulher.
- É sempre assim. Nessas horas sempre sobra pra mulher. – disse o professor com uma sutil ironia. – Além de burro, é machista. E tem mais, hein! O senhor não me verá outra vez nesta espelunca. Passar bem!

Por muitas vezes o professor foi advertido. Não faltaram amigos tentando convencê-lo do perigo que ele corria. Qualquer dia iria acabar se arrebentando. Mas a mania já havia se tornado um mal compulsivo, era difícil de controlar. No entanto ele prometera tentar. Afinal, sua vida estava se tornando insípida. Não era mais convidado para festas, reuniões ou almoços. Estava se transformando num sujeito insuportável. Persona non grata.

Outro dia, ele caminhava tranqüilamente pela rua quando deu de cara com um absurdo escrito na placa de um estabelecimento.
“Concerto de liquidificador”.

Tentou conter o impulso, mas era mais forte do que ele. Ainda deu umas voltas pelo quarteirão, tentando controlar seu diabinho interior. Foi inútil, acabou entrando. Sentou-se num sofá e ficou olhando para o homem do balcão com a cara mais cínica do mundo. O sujeito do balcão se manifestou:
- Pois não? Posso ajudá-lo?
- Não, obrigado. Eu estou apenas esperando.
- Esperando o quê? O senhor deixou algo para consertar?
- Não, não, não. Só estou esperando.
- Mas esperando o quê, meu senhor?
- O espetáculo, ora essa!
- Que espetáculo, moço?!
- Não é aqui que ele vai se apresentar?
- Ele quem, homem de Deus?!
- O liquidificador! Ouvi dizer que será um grande concerto. O que vai ser? Chopin? Mozart? Bach?
- O senhor é algum tipo de maluco? Aqui não tem essas coisas de espetáculo! Eu conserto liquidificadores. Que história doida é essa?
- Está lá fora, escrito no seu letreiro.
- Que conversa! Me mostre isso que eu quero ver! – o homem já estava se irritando.

Foram para a rua. O professor apontou a placa:
- Vê? O senhor escreveu concerto com “c”, o que significa uma apresentação musical. Conserto com “s” é que corresponde ao ato de consertar algo que foi quebrado. Que jeguice, hein, amigo? Essa foi das grandes! – o professor deu uma risada.

O dono do estabelecimento ficou furioso. Aquilo era um desaforo!
- Escute aqui, meu senhor, você não tem nada a ver com isso! Não se intrometa na minha vida. O erro foi meu, não foi?
- Foi.
- O estabelecimento é meu, não é?
- É.
- Então vá pra merda! E não me encha o saco! – gritou.
- O correto é vá à merda. O senhor não aprende mesmo, hein?
- Suma da minha frente antes que eu lhe quebre a cara!
- Além de burro, ignorante e grosso.

O dono do estabelecimento não se conteve, era o fim da picada. Partiu pra cima do professor. Começou a distribuir socos e pontapés, encheu de cacetadas a cara do mestre. Nos intervalos das pancadas, o professor ainda encontrava forças para xingar o homem, mesmo estando praticamente sem dentes e falando fofo.
- Que jeguice!
- Cala essa boca!
E tome cacetada!
- O senhor é um néscio!
- Não sei o que é isso, mas cala essa boca!

E mais cacetada!
Quando o homem parou de bater, o professor já estava sem sentidos. Passou algumas semanas de molho no hospital, acabou sofrendo umas “fraturazinhas”.

De fato, após a humilhação e a tragédia, ficaram as cicatrizes e uma lição. De tanto corrigir os outros, acabou tomando um corretivo. Mas todos sabem que o professor é e sempre será um incorrigível. Certas coisas nunca mudam. Fazer o quê?

sábado, 22 de setembro de 2007

Lula-lá, os quarenta ladrões, Renan e as malufadas

Por João Paulo da Silva

"Lula malufou!”. A frase foi dita pelo Maluf numa entrevista no início do ano. Isso mesmo! Estou citando Paulo Maluf. Nunca pensei que um dia eu teria de citar um dos maiores símbolos da corrupção deste país. Isso não é um bom sinal. De fato, as coisas não vão nada bem. Mas o que me interessa mesmo em Maluf é apenas o seu neologismo.

A sujeirada que tomou conta dos noticiários nesses meses que passaram me fez chegar à conclusão de que o verbo mais conjugado no Senado, na Câmara e no Planalto é o verbo “malufar”. Nunca na história desse país – já ouvi esta frase antes – malufou-se tanto como hoje sob o comando de Lula. Malufou-se com o mensalão, com os sanguessugas, com os gabirus etc, etc, etc... Mas talvez as mais emblemáticas malufadas tenham ocorrido nos últimos dias.

No final de agosto passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) abriu processo criminal contra os 40 acusados no escândalo que abalou o primeiro mandato de Lula. Entre os mensaleiros, estão também algumas figurinhas carimbadas do PT, como Zé Dirceu, Delúbio Soares e José Genoíno. O leitor provavelmente deve estar pensando: “Tá vendo! Eu não disse. Agora todos serão condenados”. Não se iluda, caro leitor. O STF nunca condenou ninguém. Até mesmo o Collor escapou por “falta de provas”. Se o Congresso é marcado pela impunidade e corrupção, o Poder Judiciário não poderia deixar de dançar conforme a música. Os ministros que compõem o STF são diretamente indicados pelo presidente. Dos atuais 11 ministros que atuam no Supremo, 7 foram indicados por Lula. Dois outros foram indicações de FHC, um foi apadrinhado por Collor e o mais antigo por Sarney. O circo dos horrores armado com o julgamento dos mensaleiros é uma espécie de bóia salva-vidas para as instituições da democracia dos ricos, uma tentativa de “moralizar” as coisas. No entanto, nada garante que no final haverá justiça. Não há prazo para o fim dos processos, os crimes podem prescrever e o mais presumível é que ninguém seja degolado. Sem falar, claro, que o chefe da quadrilha e os corruptores por trás de tudo seguem preservados. Os bancos, as empreiteiras e Lula não foram processados. Enfim, Ali Babá não entrou na roda.
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Eu não ficarei surpreso se na próxima atualização da lista telefônica encontrar o número do Senado como a mais nova pizzaria do momento. Senado’s pizzas: a maior casa de pizzas do país. Entregamos em todo o território nacional e também em paraísos ficais.

- Alô? É do Senado’s pizzas?
- É sim, senhor. Pode fazer seu pedido.
- Qual é a boa de hoje?
- Olha, nós temos um vasto cardápio. PT ao catupiry, PP calabresa, PCdoB Margherita, PMDB mussarela, DEM Alcachofra, PSDB gorgonzola. Mas a mais pedida do momento é Renan quatro queijos.
- Hum... E as bordas são recheadas?
- São sim, senhor.
- Com o quê?
- Paulo Maluf.
A absolvição do Renan teve ao menos utilidade pública. Serviu para provar de uma vez por todas a falência das instituições burguesas e a liderança do Brasil nas pesquisas sobre clonagem. Afinal de contas, eles são todos Renans.
A verdade é que Renan não foi cassado porque é um dedo-duro. Quando as denúncias começaram a fechar o cerco, ele ameaçou revelar a sujeira de seus comparsas. Disse que se fosse cassado espirraria lama pra todos os lados. Durante a escandalosa e patética sessão escondida, os senadores trocaram ameaças, negociaram votos e acertaram favores. Tudo para preservar suas próprias cabeças e falcatruas. Conseguiram.

Lula e o PT foram os grandes pizzaiolos. Se Renan fosse degolado, o governo abriria uma crise com o PMDB que poderia prejudicar a aprovação das reformas neoliberais no Congresso. O senador Francisco Dornelles (PP-RJ) resumiu bem a sessão mafiosa: “Crime tributário não é causa para quebra de decoro. Amanhã, isso pode ser usado contra os senhores, porque muitos aqui têm muitos problemas fiscais”. Enquanto isso, a polícia prende e espanca os desempregados deste país que roubam para matar a fome. Tiro outra conclusão: a justiça burguesa não é cega. Ela tem olhos e nariz de classe. De fato, nunca se malufou tanto na história do Brasil.
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ERRATA
Sempre que falarem em CPI, não se deve ler Comissão Parlamentar de Inquérito. Leia-se Comissão da Pizza Institucional.

domingo, 2 de setembro de 2007

Uma lembrança natalina

Por João Paulo da Silva

Minha infância foi repleta de acontecimentos intrigantes, muitos relacionados ao dia 25 de dezembro. Um dos momentos mais mágicos do Natal é sem dúvida nenhuma o ato de montar a árvore. Tudo bem que a minha era pequena, feia e com poucos enfeites, mas o que é que eu podia fazer? Não tinha dinheiro pra comprar uma nova, fui obrigado a me conformar. Mas o bom mesmo era ficar esperando o presente do Papai Noel. Ah! Eu adorava isso. Pendurava minha meia na janela da sala de visitas (na minha casa não tem chaminé) e ia dormir cheio de expectativas. No dia seguinte, eu acordava eufórico. Corria até a janela para ver se havia algum presente. Tsc, tsc, tsc. Que nada! Papai Noel nunca deixou brinquedos em minha meia. Cheguei a pensar que talvez fosse por conta do buraco que nela havia. Tolice! Com certeza não era esse o motivo. O velhinho de barbas longas devia ter uma péssima memória. Mas eu nunca perdi as esperanças de que um dia ele pudesse lembrar de mim.

Foi no Natal de 1991 que ocorreu um dos fatos mais intrigantes de minha infância. Eu dormia um sono tranqüilo e sem sonhos quando fui acordado por um barulho vindo da sala de visitas. Ergui-me rapidamente ao ouvir a janela sendo aberta, alguém estava entrando na casa. Meu coração começou a bater descompassadamente, minha respiração tornou-se ofegante. Era ele! Só podia ser ele! Finalmente Papai Noel havia lembrado de mim! Corri apressadamente para a porta, pensei em ir até a sala. Pus a mão na maçaneta, mas estanquei. Não podia ir. Lembrei que as crianças não deviam ver o velhinho pôr os presentes. Era um ritual, fazia parte do encanto natalino. Voltei para a cama e tentei dormir novamente. Não consegui. Era difícil conter a emoção, comecei a sentir uma pressão no estômago e a garganta seca. Fiquei a noite inteira ouvindo os ruídos que o Papai Noel fazia em minha sala de visitas. Móveis arrastando e pesadas botas contra o chão.

Ao amanhecer, corri até a sala de visitas. Fui tomado por uma desconfiança intrigante. Olhei ao meu redor e senti falta da televisão, do rádio, de algumas cadeiras, da mesinha de centro e de minha meia. Perguntei-me o que teria acontecido durante a madrugada. Estivera mesmo o Papai Noel em minha casa? Claro que sim! Eu o ouvi chegar! Foi aí então que uma idéia me atravessou a cabeça. Eu não queria acreditar. Mas não havia outra explicação, pelo menos para mim. Conclui que o Bom Velhinho devia ser um sujeito bem mais pobre do que eu. Pra ter levado até a minha meia, com certeza o pobre Noel se achava em maus lençóis (se é que tinha lençóis!). Esse Natal marcou para sempre minha infância.

Os anos foram passando, eu cresci e acabei descobrindo que essa história de Papai Noel é uma tremenda invenção, lenda mesmo. Aqui em casa, o único que ainda acredita é meu pai. Todas as vezes que chega o Natal, ele acomoda-se diante da janela da sala de visitas, numa das últimas cadeiras que nos restou. Espera com os olhos sempre muito abertos, dificilmente pisca. Minha mãe já pediu pra ele desistir dessa história, já falou que é loucura, mas meu pai não dá ouvidos. Com sua velha espingarda calibre doze apontada na direção da janela, ele aguarda ansiosamente a volta do Bom Velhinho.

segunda-feira, 27 de agosto de 2007

As lamúrias de um careca

Por João Paulo da Silva

Diante do espelho, observo com dolorosa tristeza a enorme vaga que a calvície deixou em meu cocuruto. É de dilacerar o coração, confesso. Constatar que esta minha superfície nua já fora em outros tempos uma área de vasta cabeleira é realmente pavoroso. Perder os cabelos é como ser desmembrado, quase como perder um órgão vital. Não creio que esteja cometendo exageros. Os que sofrem do mesmo infortúnio sabem do que estou falando. Ficar careca é angustiante!

Eu tinha lindos cabelos. Eles eram lisos e “mais negros que a asa da graúna”. Costumava usar um corte estilo “cuia”, todo redondinho. Parecia mais o Tibicuera, aquele índio tupinambá do Érico Veríssimo. Fazia sucesso. Todo mundo queria passar a mão no meu cabelo. As garotas adoravam. Ah! Meu lindo cabelinho.

Tudo começou ainda na adolescência. Eu devia ter uns quinze anos quando os primeiros fios começaram a cair. No início eu nem dei muita bola. Os médicos diziam que era normal o ser humano perder por dia entre 50 e 100 fios. Fiquei tranqüilo. Por pouco tempo, é claro. Foi na escola que uma colega avistou atenciosamente o prelúdio da minha desgraça.
- Ô, João? – disse ela – Tu vai ficar careca!


A infeliz sentava atrás de mim. Podia ver a retaguarda do meu cocuruto. A frase ecoou na minha cabeça como os tambores do Apocalipse.
- Do que você está falando?! Quem vai ficar careca aqui?!
- Você, ué? A não ser que tenha virado monge franciscano, esse buraco que tá começando a aparecer atrás da sua cabeça me parece princípio de calvície.

Os cabelos estavam por toda parte. No travesseiro, na toalha, na pia do banheiro. Passei a contar todos os fios que encontrava pelo caminho. Fiquei paranóico. Minha mãe tentava me convencer de que eu não estava ficando careca.
- Meu filho, isso é paranóia da sua cabeça. – dizia ela passando a mão pelos meus cabelos e percebendo o tufo que se desprendera.
Fui a um montão de dermatologistas e recebi de todos a mesma resposta.
- Não tem cura, garoto. No máximo um tratamento pra retardar a queda.

Mas não era o que eu queria. Eu queria era não ficar careca. Simples.


Fiz uma porção de tratamentos. Comprei xampus das mais variadas cores e cheiros, loções capilares com aromas horrorosos, até uma mistura com alho e gengibre feita pela vizinha curandeira eu tentei. Tudo em vão. Eu achava que tinha irritado alguma força poderosa, quem sabe os mestres do universo, ou talvez algum “deus dos cabelos”. Com certeza que não. No fundo eu sabia quem era o culpado por toda minha angústia. Meu pai. Sim, o velho nessa época já tinha uma calva muito grande. Havia uma herança para mim. E não era dinheiro. Passei um tempão com raiva do meu pai.
- A culpa é sua, pai! – dizia eu olhando angustiado para o espelho.
- Minha? Por quê?
- Quem mandou o senhor ser careca?!
- Agora danou-se tudo! Vá reclamar com seu avô! Ele também é careca.


Percebi que o problema era um pouco mais complicado. Havia mesmo era um legado do mal. Descobri algo muito pior que o destino: a genética!


O tempo passou. Eu fui crescendo e a calvície avançava sem tréguas. Em pouco tempo começou a devastar também minha área frontal. Eu não tinha mais forças para lutar no front. O inimigo me encurralara. Mas eu não estava disposto a me render.

Tentei a tática da dissimulação. Quis fingir que nada estava acontecendo. Esquecer mesmo, sabe? Ora, perder os cabelos não era o fim do mundo. Também não deu certo. A resistência não durou mais que uma semana. Havia um elemento surpresa com o qual eu não contava: as pessoas. Tem sempre uns engraçadinhos que adoram tirar sarro da desgraça alheia. Estão entre eles amigos e parentes. O ser humano é um bicho maligno!
- Ô careca! Pouca telha! Virou um caminhão de peruca ali na esquina. – diziam os amigos do trabalho entre gargalhadas.
- Meu filho, tão novo e já tá ficando careca. – observava uma tia (é sempre uma tia!).
- Careca! Cabeça de ovo! – gozavam os primos pequenos.


Nunca superei completamente a “fuga” dos meus cabelos. 
Hoje, olhando criticamente para o espelho e pensando na vasta experiência que tenho em calvície (e bota vasta nisso!), me pego refletindo acerca dos problemas da minha categoria: os carecas.

Como calvo que sou, compreendo perfeitamente as lamúrias de nossa existência. Não é todo careca que se dá bem com sua careca. Não são todos os homens que têm a sorte de ficarem parecidos com o Sean Connery quando perdem os cabelos. É muito cruel você se olhar no espelho e descobrir que se transformou no José Serra. Bate logo uma depressão.


As pessoas também não ajudam. Há muito tempo que os carecas são tomados como ponto de referência nas ruas da cidade.
- Amigo, por favor, como faço pra chegar na Rua Íris Alagoense? – pergunta um sujeito a outro bem na praça do Centenário.
- O senhor vai por aqui direto. Quando chegar naquela esquina onde tá aquele careca, o senhor dobra a direita e segue em frente.

Como se não bastasse, a sociedade ainda inventou algumas frases para ridicularizar os carecas. Coisas assim: “é dos carecas que elas gostam mais” ou “as piores cabeças Deus cobriu com cabelo”. Isso só piora a situação. Acaba afetando a auto-estima da pessoa.

Outro dia eu conversava com uma amiga anarquista sobre minha depressão capilar. Ela me dizia:
- Você tem que parar de se preocupar com esses estereótipos, João. Tem que se libertar!


Ela tem lindos cabelos ruivos. Não me agüentei.
- Que conversa de estereótipo é essa?! Queria ver se fosse com você! Raspe esse seu cabelo e fique numa boa! É cada uma que me aparece.

Ter uma careca não é nada fácil.


Admito que o porquê da calvície me atormenta, mas é mesmo a falta de solução para o problema que me desgraça. Tanto progresso científico pra nada! Ônibus espacial, viagem à lua, viagem a Marte, energia nuclear, clonagem etc, etc, etc... Estamos no século 21! Cadê, então, a cura para a calvície?! A indústria farmacêutica não está nem aí para os carecas. Pouquíssimas foram as vezes que tomei conhecimento de uma possível solução para tamanha infelicidade (a peruca não conta!). Me lembro de uma. Um laboratório nos EUA havia desenvolvido uma pílula com propriedades de restauração do crescimento capilar. Na hora fiquei eufórico. Pensei até que meu martírio tinha chegado ao fim. Bobagem. O remédio tinha efeitos colaterais. Tomando a pílula, a restauração era praticamente garantida. No entanto, havia um problema: o sujeito poderia ser vitimado pela impotência sexual. Aí eu fiquei puto! De que adiantava ganhar em cima, e perder embaixo?! Desisti. Alegria de careca dura pouco.

Pode ser que depois de mais alguns anos eu me acostume. Mas até lá vou ficar na bronca. Estou pensando inclusive em fundar uma entidade. A ACA (Associação dos Carecas Anônimos). Sairemos todos pelas ruas com caixas de papelão na cabeça. Faremos grandes passeatas exigindo do governo mais verbas para as pesquisas sobre calvície (se é que existe isso!). E se o povo nos acompanhar podemos até tomar o poder. Fundaremos a República dos Carecas. São planos futuros.

Outro dia comprovei que todo castigo pra careca é pouco. Eu caminhava pelo centro da cidade quando cruzei com um velho amigo.
- Diga, João! Quanto tempo, rapaz! Como vai essa força?
- Vai indo, vai indo.
Me preparei para uma provável piadinha sobre minha careca.
- Ô, João? – lá vem chumbo, pensei – Tu tá ficando barrigudo, hein!
- Quem? Eu? Barrigudo?

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

"Entre a presa e o dragão"

Por João Paulo da Silva

Foi Shakespeare quem disse a frase acima. Esse dilema esteve muitas vezes presente em suas obras. O poeta inglês sabia que o ato de escolher seria para o homem sua salvação ou sua perdição. Mas nunca disse que não deveríamos escolher. Numa sociedade onde há lutas entre desiguais, permanecer calado é sempre apoiar o mais forte. Quando escolhi cursar jornalismo, eu já sabia que a imparcialidade era um mito, uma grande falácia. A neutralidade é impossível por um motivo muito simples: não há discurso desprovido de ideologia. Toda escolha é uma escolha política. Eduardo Galeano, jornalista e escritor uruguaio, disse certa vez que “a palavra é uma arma”. Se estiver correto – acredito que esteja – então todos nós temos um bom motivo para fazer a escolha certa.

Numa situação em que os meios de comunicação de massa estão nas mãos de uma única classe, escolher se torna doloroso e angustiante. A liberdade de imprensa é tão falsa quanto a idéia de imparcialidade. Só um tolo não percebe que os grandes meios estão sempre a serviço de quem detém o poder. A liberdade de imprensa é na verdade um eufemismo burguês. Antes de serem meios de informação, o jornal, o rádio e a TV são primeiramente empresas. Isso significa dizer que têm um dono, ou seja, um patrão. Há nesse aspecto uma relação de poder, de opressão e, mais especificamente, de monopólio da informação. Sendo assim, quando me decidi por jornalismo eu compreendia que se quisesse escrever nos grandes meios teria de me moldar a eles. Essa idéia não me agradou nem um pouco. Mas há sempre uma segunda escolha.

Se o jornalismo é realmente uma guerra pela conquista das mentes e corações, então é preciso definir bem de que lado da trincheira nós estamos. Sei exatamente por que escrevo, para quem escrevo e contra quem escrevo. Estar entre a presa e o dragão não é um decreto de morte nem uma rua sem saída. Para todo beco, existe um muro a ser saltado. Para toda prisão, existe uma brecha entre as grades. Bom, se não houver, então cavamos um buraco.

domingo, 12 de agosto de 2007

Um Robin Hood às avessas

Por João Paulo da Silva

Todo mundo conhece a história.

Nos tempos do Rei Ricardo Coração de Leão, a floresta de Sherwood era habitada por um lendário herói inglês. Habilidoso com o arco e a flecha, Robin Hood ficou famoso porque roubava dos ricos para dar aos pobres. O charmoso ladrão (digo isso por causa do Kevin Costner) era ajudado por seus amigos João Pequeno e Frei Tuck, bem como por outros moradores da floresta. O “Príncipe dos ladrões” também gostava de vaguear pelas árvores e de defender a liberdade. Tenha existido ou não, o certo é que o simpático fora-da-lei é um símbolo.

O cinema já fez várias adaptações da história de Robin Hood. Algumas boas, outras bastante ruins. Mas existe uma versão brasileira que está causando muita confusão e merece ser analisada.

Na verdade o Brasil não é o Brasil. É Sherwood. E, sendo Sherwood, não poderia deixar de ter também o seu “Príncipe dos ladrões”. Lula é o nosso Robin Hood. Só que às avessas. Tira dos pobres para dar aos ricos. Nunca na história desse país – como costuma dizer o presidente – os ricos lucraram tanto. Só no ano passado, Lula retirou do bolso dos trabalhadores a espantosa quantia de R$ 275 bilhões para pagar os juros das dívidas externa e interna ao FMI. Detalhe: dívidas que não são dos trabalhadores. Uma grande fatia do orçamento de 2006 (quase 40%!) foi tirada do povo e entregue aos banqueiros nacionais e internacionais. A situação calamitosa da saúde, da educação, a paralisia da reforma agrária e o desemprego são frutos da política econômica neoliberal de Lula. Uma política muito mais perigosa do que qualquer arco e flecha.

Vivemos a era dos contrários, a era da marcha à ré. Todas as conquistas que os trabalhadores arrancaram da burguesia no século passado estão sendo escandalosamente retiradas. Fome, miséria, desemprego, arrocho salarial, tudo isso para que as empresas retomem suas taxas de lucros. As reformas neoliberais (trabalhista, sindical, previdenciária etc) cortam direitos históricos, muitos conseguidos com o sangue e a vida de milhares de trabalhadores. Sob o governo de nosso Robin Hood às avessas, os banqueiros estão faturando uma fortuna. Em 2005, foram R$ 33,8 bilhões. Em 2006, R$ 42 bilhões, bem mais que todos os recursos gastos pelo governo com saúde e reforma agrária. Se você ainda não percebeu, abra bem os olhos. Lula é o FHC com cara de operário. Mas só a cara.

O enigma de nossa Sherwood tupiniquim não é a falta de recursos, mas com quem eles ficam. Se parássemos de pagar as dívidas, poderíamos resolver graves problemas. Com os R$ 275 bilhões, acabaríamos com o déficit habitacional, com o desemprego, assentaríamos as famílias sem-terra e ainda dobraríamos o orçamento destinado à saúde e educação. Mas só se o Brasil não fosse Sherwood e nós não tivéssemos um Robin Hood que tira dos pobres para dar aos ricos.

Nem é preciso pensar muito. O Kevin Costner é bem melhor.

domingo, 5 de agosto de 2007

Confissões

Por João Paulo da Silva

Fui criado sob a égide do catolicismo. É claro que meus pais não perguntaram se eu gostaria de ser católico. E nem poderiam. Na época eu ainda nem falava. E mesmo que falasse não seria ouvido. Já cheguei até a imaginar a cena.
Minha mãe perguntaria:
- O bebê da mamãe vai ser católico, não vai?
E eu, com poucos meses de vida, responderia:
- Nada disso! Sou um ateu convicto! Deus não existe.
Meus pais trocariam olhares temerosos e incrédulos.
- E agora, Antônio?! O menino é ateu! – diria minha mãe.
Meu pai daria a sentença.
- É melhor sacrificar.
É claro que se trata de uma situação hipotética. Puramente imaginária.

O certo é que o catolicismo em minha vida foi de fato uma imposição. Assim como a escolha de meu nome também o foi. Me deram o nome do Papa do momento: João Paulo. Certo. Tudo bem que é um nome santo. Mas nada original.
Mamãe foi quem assumiu a tarefa de me catequizar. Confesso que nunca fui um bom católico. E isso se deu mais por incompetência de minha parte do que por qualquer outra coisa. Eu até tentei, não vou mentir. Só que não deu certo. Mamãe me levava todos os domingos à missa numa igreja no bairro do Farol, onde morávamos. Eu era obrigado a vestir um traje esporte fino, a roupa domingueira. “Vê se não amassa a roupa que é pra não ficar feio!” – dizia mamãe. Eu nunca aprendi direito todas aquelas orações. Nem mesmo sabia quando era pra ajoelhar ou ficar de pé. Era um terror. Mamãe ficava doidinha.

O padre dizia algo e todo mundo ficava de pé. Eu permanecia sentado.
- Se levanta, menino! – resmungava mamãe.
Assustado, eu levantava.
O padre dizia outra coisa e todo mundo ajoelhava. E eu de pé.
- Se ajoelha agora, menino!
Era o sinal apocalíptico de minhas futuras heresias. Pobre mamãe.

Para evitar novos transtornos, fui fazer catecismo. Forçado, claro. As aulas aconteciam aos sábados pela manhã, e os desenhos animados da TV representavam minhas tentações mundanas contra o Espírito Santo. “É preciso aprender os dogmas religiosos para realizar a Primeira Comunhão.” – afirmava mamãe. Tive de aprender.
Minha primeira grande heresia aconteceu durante uma missa aos dez anos de idade. Há muito tempo eu já havia percebido que num determinado momento da celebração as pessoas faziam fila para receber um tipo de “comida” das mãos do padre. Como eu estava com fome, também entrei na fila. Quando minha mãe percebeu, já era tarde. Pus a hóstia consagrada na boca sem nunca ter me confessado. E o pior: mastiguei! Minha mãe quase teve um treco.
- Menino! Pelo amor de Deus! Você ainda não pode comungar, não! Cospe já! Não! Não cospe não que é pecado! Pára de mastigar, criatura! Isso é o corpo de Deus! Ai meu Jesus santíssimo!
Eu não falei pra não deixá-la mais irritada. Mas o gosto era horrível.

Minha ruptura com o catolicismo, com a religião e, conseqüentemente, com Deus se deu de maneira gradativa, através de pequenas “revelações”.
Todas as noites, ao pé da cama, eu rezava.
- Senhor Deus, abençoe e proteja todas as pessoas do mundo. Mas não se esqueça daquela bola de futebol que eu pedi. Amém.
Ou então:
- Deus, faça a Pâmela se apaixonar por mim. Ela é da 6ª série e namora um bocó da 8ª. Por favor, não se esqueça. Amém.
Enfim, foram inúmeras as tentativas. E, no fim das contas, nada da bola. Nem da Pâmela.
Mas a mais contundente revelação foi como um soco no estômago. Diante de tanta fome e miséria no mundo, eu pedia:
- Deus, se o Senhor é mesmo tão poderoso, acabe logo com toda essa desgraça. Não deixe as pessoas morrerem de fome. Amém.
Na minha cabeça funcionava assim: para um sujeito que tinha feito o mundo todo em sete dias, acabar com a fome e a miséria seria coisa de criança.
No entanto, o tempo passava e nenhuma mudança ocorria. Só anos mais tarde eu iria descobrir uma frase do Millôr Fernandes que resumiria bem meus pensamentos daquela época. “Se tudo isso que está aí é realmente obra de um Deus-Todo-Poderoso, que patife!”. Bom, depois o marxismo se encarregaria do resto.

Mas se existe um acontecimento realmente marcante na minha curta vida de católico este se deu no momento da Primeira Comunhão. Um pouco antes, pra falar a verdade. Eu tinha concluído o catecismo e precisava fazer minha primeira confissão. Do contrário, não receberia oficialmente o corpo de Deus (que eu já havia mastigado!).
No dia da confissão, havia uma fila enorme de pequenos pecadores. Todos prontos para receberem o perdão do Senhor. Nem preciso dizer que eu não tinha a menor idéia do que fazer ali. Não havia decorado as orações nem sabia que pecados confessar.
Quando chegou minha vez, entrei no confessionário me borrando de medo. Mais do padre do que de Deus.
- Bom-dia, meu filho. – disse o sacerdote.
- Bom-dia, padre. – respondi.
Um rápido silêncio se meteu entre nós.
- Vamos lá, filho. Pode ficar à vontade. Conte-me seus pecados.
“E agora? O que que eu falo?” – pensei.
- Então... – incentivou o padre.
- Bem, seu padre... É que... eu... eu briguei com meus irmãos, respondi a minha mãe, bati no meus colegas da escola e menti pra professora. Foi isso.
O sacerdote espremeu os olhos. Parecia estar me examinando, parecia querer ler meus pensamentos. Demonstrando impaciência e desconfiança, falou:
- Meu filho. Você já fez safadeza?!
Pensei em correr. Mas não o fiz.
- Não, padre. Não. Nunca fiz não. Não sou menino de ficar fazendo essas coisas. – respondi sem saber exatamente o que ele estava perguntando.
- Me deixe ver suas mãos.
Estendi as mãos.
- Humm... – fez ele, analisando as palmas.
- O que foi? – perguntei.
- Esses calos... Não sei, não.
Silêncio.
- Tudo bem. Pode ir. Mas reze lá fora vinte padres-nossos.
Saí do confessionário quase em disparada. Nem rezei. Só depois de um tempo foi que descobri a razão da desconfiança do padre. E percebi que era infundada.

Não sei se é verdade. Mas contam que certa vez o Freud foi pego na maior saia justa. Em seus estudos sobre os sonhos, o médico austríaco disse que quando sonhamos com objetos cilíndricos ou pontiagudos estamos na verdade desejando o órgão masculino. Baseado nessa informação, alguém perguntou ao Freud no meio de outras pessoas se o charuto que ele fumava seria a representação do pênis no momento do sexo oral. O esperto doutor Freud teria respondido o seguinte:
- Veja, meu rapaz. Às vezes um charuto é apenas um charuto.

Se no dia de minha confissão eu conhecesse essa história, teria dado a seguinte resposta ao padre:
- Veja, seu padre. Às vezes um calo é apenas um calo.
Ora essa! Imaginem só. Fazendo safadeza?! Logo eu?!

segunda-feira, 23 de julho de 2007

Mais um dia ruim para o diabo

Por João Paulo da Silva

Quando o ditador chileno Augusto Pinochet morreu, o escritor mexicano Carlos Fuentes afirmou: “Hoje é um dia ruim para o diabo”. De fato não deve ter sido nada fácil para o capeta. Acho lamentável que por esses dias ele esteja recebendo mais uma surpresa desagradável. É que morreu, no último dia 20, o senador baiano Antônio Carlos Magalhães, o ACM. Eu mesmo só soube horas depois pela TV. Mas juro que quando ouvi a notícia não me contive e exclamei: - Ai, ai, ai!! Hoje é mais um dia ruim para o diabo.

O que morreu não foi um exemplo de “bom político”. Mas um símbolo reacionário, autoritário e corrupto. A trajetória política do ACM faz inveja a qualquer bandido do Congresso Nacional. Eu até imagino qual deve ser a brincadeira nos intervalos da picaretagem oficial.

Um senador grita do alto de sua bancada:
- Quem quer ser o ACM?
Grande euforia.
- Eu!
- Eu!
- Nada disso! Sou eu!
- Assim não vale! Eu falei primeiro!
- Tão roubando, hein!

ACM foi deputado pela UDN entre os anos de 1950 e 60, articulou o golpe militar de 64, fez parte da Arena, assumiu a prefeitura de Salvador e o governo da Bahia indicado pela ditadura, esteve com Sarney, Collor, FHC e, por último, com Lula. Sempre defendendo a política de privatizações e favorecimento dos banqueiros implementada por esses governos. O velho “coronel midiático” (ACM era dono do Correio da Bahia e da TV Bahia, afiliada à Globo) também desfilou com desenvoltura pelo terreno da corrupção. Quando era presidente do Senado entre os anos de 1997 e 2001, foi acusado de violar o painel eletrônico durante a cassação de Luiz Estevão, outro notório picareta. Também foi acusado pela Polícia Federal de comandar escutas telefônicas ilegais na Bahia. Um processo por quebra de decoro parlamentar até foi aberto, mas Lula impediu que chegasse ao fim e o caso foi arquivado.
Enfim, o currículo é extenso.

Já me disseram que as cadeias são universidades do crime. Pois é. Também já me disseram que é lá no Congresso que são ministrados os cursos de mestrado e doutorado. E eu não duvido nada que o ACM era um dos melhores professores. O Jacques Wagner (PT) decretou luto oficial por cinco dias na Bahia. Luto uma ova! Era pra ser Carnaval fora de época. E tem mais. A família que me perdoe, mas ainda estou em dúvida sobre qual o melhor fato: a batida de botas do ACM ou a vaia escandalosa que tomou o Lula?! Com o ACM, morre também uma parte do que de pior existe no Brasil. Já vai muito tarde, filhote da ditadura!
Para enterrar alguém, são utilizados sete palmos abaixo da terra. Mas com o ACM... não sei, não. Acho bom triplicar o número de palmos. Só pra garantir.

domingo, 8 de julho de 2007

Opostos

Por João Paulo da Silva

Conheceram-se numa praça da cidade através de um amigo. Ela era uma baita de uma intelectual, tinha a fama de “comer os livros” e às vezes de ser arrogante. Já ele... Bom, ele era muito bonito, esforçado etc. Logo de primeira, houve um interesse de ambos em tornar aquela iniciante relação de amizade em um possível relacionamento mais íntimo. É claro que precisavam se conhecer melhor. Mas é que os dois já estavam há algum tempo sozinhos, preocupados com outras atividades, sem tempo... Sabe como é, né?

Ela não gostava de perder tempo e tratou logo de marcar um novo encontro. Precisava conhecê-lo melhor. “Como ele é bonito” – repetia pra si mesma. Estava, de fato, encantada. Afinal de contas, ele era muito bonito. Ele também estava ansioso para encontrá-la novamente. Na primeira vez em que se viram, sabia que tinha acontecido algo diferente. “Alguma coisa relacionada com a pele, entende?” – dizia ele. “Alguma coisa envolvendo uma química”.
Resolveram se encontrar na mesma praça em que se conheceram. Ela, sempre adiantada, decidiu que deveria levar um presente. Gostava de impressionar no primeiro encontro. Como todo intelectual que se preza, achou que seria sensato presenteá-lo com um bom livro.
- Trouxe um presente pra você. – disse ela.
- Nossa! Um livro! Que bacana! Pra quê? – disse ele.
- Como assim, “pra quê”? Pra ler, ué?! – ela estranhou.
- Ah! É mesmo! Não sei onde ando com a cabeça.
Ele também tinha levado um presente. Um CD. Do Reginaldo Rossi. Ela ficou meio sem jeito.
- Brega?
- E dos bons, hein?! – disse ele empolgado.
Breve silêncio. Ela convidou:
- Vamos nos sentar ali. Depois podemos tomar um sorvete. O que acha?
- Mas só um?
- Não é isso. Eu quis dizer dois. Um pra você e outro pra mim.
- Ah, bom! Sendo assim tudo bem.
Ela riu, constrangida. Foram se sentar num banco embaixo de uma árvore.
Novo silêncio. Ela percebeu que não podia perder tempo. Era preciso falar alguma coisa.
- Escuta, eu preciso te dizer algo.
- Diz.
- Sou uma mulher direta. Não gosto de rodeios...
- Ah! Que pena!
- Pena? Por quê?
- Porque eu gosto muito de ver aqueles vaqueiros caindo de cima dos bois e cavalos.
“Deve ser o senso de humor dele” – pensava ela.
- Não é isso que eu quero dizer. – disse ela, já sentindo um misto de constrangimento e impaciência.
- Não? Então é o quê?
- Quero dizer que não gosto muito de enrolar pra falar algo.
- Ah! Agora eu entendi.
- Bom, vou tentar ser mais objetiva. Te chamei aqui porque eu tenho uma coisa importante pra falar.
- Então fala.
- Eu estive pensado e cheguei a conclusão de que poderíamos nos conhecer melhor e quem sabe trocar alguns fluidos? – disse ela um tanto insinuante.
Ele fez uma cara de decepção.
- Olha, eu vou ser sincero com você. Eu não gosto de trocar nada. Quando quero me desfazer de alguma coisa eu prefiro vender. É mais lucrativo, sabe?
Ela percebeu que a situação havia se complicado. Já estava ficando impaciente. Mas achou que devia se controlar. Afinal de contas, ele era muito bonito, esforçado etc.
- Ouça! Acho que você não está entendendo o que eu quero dizer. Vou tentar ser mais simples.
- Tudo bem.
- O que eu estou tentando falar é que o meu ID diz que eu preciso te beijar, mas meu SUPEREGO não irá permitir se você não deixar. Compreende?
- Ainda não. Esse papo de ID e SUPEREGO está muito complicado.
- Você nunca ouviu falar de Freud?
- Freud... Freud... Freud... É algum ator de novela?
- Não! Não é nada disso! – quase gritou.
Estava havendo um problema de comunicação. Bem, talvez não fosse necessariamente comunicação. Mas era preciso tornar a conversa mais simples. Ela resolveu tentar uma última vez.
- Tudo bem, vamos tentar de novo. O que eu quero de você é uma prova empírica do amor.
- Uma prova empírica? Do amor?
- Sim! Do empirismo! De Bacon!
- Bacon?! Ah, não! Eu não como bacon. Engorda muito. Entrei numa academia faz...
- Não! Não é disso que eu estou falando! Me refiro a Francis Bacon! Chega! Eu desisto!
- Desiste de quê?
- De você! Seu quadrúpede!
- Quadru... o quê?
- Esquece! Eu vou embora. E me dá aqui o meu livro. Você não vai entender nada mesmo. E toma a porcaria do teu brega!
- Ei! Espera! E o nosso sorvete?
- Derreteu!
Ela se levantou bufando de impaciência e foi embora, pensando que não havia no mundo sujeito mais bronco. Ele continuava sem entender o ocorrido. Permaneceu sentado no banco, pensando que não havia no mundo mulher mais complicada. Surpreendentemente, em alguns momentos, a vida se apresenta como a arte dos desencontros. Depois de um acontecimento desses, só há uma coisa a dizer. Os físicos que me perdoem, mas os opostos se repelem.

terça-feira, 3 de julho de 2007

Aos jornais deixamos nosso sangue como capital

Por João Paulo da Silva

O famigerado presidente Washington Luís disse há mais ou menos 80 anos que “a questão social é um caso de polícia”. Já explico de forma mais clara o pensamento desse sujeito. O que o senhor Washington Luís – que o diabo o tenha! – quis dizer é que desempregados, pobres e miseráveis (na sua maioria negros) são problemas a serem resolvidos à bala. O massacre ocorrido no último dia 27 de junho no complexo de favelas do Alemão é a expressão mais brutal desse raciocínio. E, infelizmente, parece que deixou muitos herdeiros.

Lula, a polícia e o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral (PMDB) adoram usar números para comprovar eficiência. Pois bem. Aí vão alguns números. A operação da PM e da Força Nacional de Segurança (segurança de quem?!) deixou – até onde se sabe – 19 mortos. Destes, 9 eram adolescentes entre 13 e 16 anos. Pelo menos 10 pessoas ficaram feridas por balas e estilhaços de granadas. Detalhe: não eram traficantes. Segundo dados do próprio governo, desde o dia 2 de maio, quando a PM iniciou a invasão do complexo do Alemão, já foram contabilizados 44 mortos. E tem mais. As estatísticas mostram que os homicídios em ações policiais aumentaram em 50% nos três primeiros meses de 2007. Esses são os números. E assim devem ser tratados. Como números. Pois para o governo Lula e seus comparsas vidas humanas são apenas números. Ou melhor, sinal de eficiência.

A chacina ocorrida no complexo do Alemão só prova o que muitas outras chacinas de trabalhadores negros e pobres já comprovaram: a política de mais polícia e mais repressão para acabar com a criminalidade urbana é a cota maior da estupidez e do caráter burguês da justiça desse governo. Que argumentos usam os que negam o aumento da violência como resultado da miserabilidade do povo? Repressão falha? Justiça lenta? Leis inadequadas? Ora, estes já estão manjados!

Além de exterminadores da vida da população pobre, os planos econômicos neoliberais do governo Lula e a polícia são verdadeiros exterminadores do futuro. Ou se modifica a política econômica do país, parando de pagar as dívidas externa e interna e transformando a sociedade, ou estaremos condenados a uma crescente barbárie social, onde as únicas estatísticas que sofrerão alterações serão as dos mortos.

Um dia após à ação policial os jornais de todo o país traziam manchetes sujas de sangue, terror e desespero. Os moradores e as famílias das vítimas do massacre do Rio não podem e não devem ficar calados diante dessa “limpeza social”. Do contrário, continuaremos deixando aos jornais nosso sangue como capital.

segunda-feira, 2 de julho de 2007

Meia-noite


A pobreza é enforcada com barbante,
Dos lábios de alguém vazam palavras ultrajantes,
Mutilando o futuro logo adiante,
Nos transformando numa legião de mutantes.

A realidade é um baile à fantasia,
Foi mascarada e obrigada a esconder a própria face.
A vida é ironizada ao olhar-se no espelho,
Repugnante e revoltante é o disfarce,

A chuva cai em gotas de aço,
Banha os monstros noturnos
E traz o frio que corta.
Há o medo com medo
Atrás da porta.

Às vezes o sol sobressai
Por cima dos muros.
Mas hoje a vida amanheceu estranha,
Com uma vontade imensa de mentir pra mim.

domingo, 24 de junho de 2007

Espelhos do mundo


Os meus olhos sangram intactos,
Mas ainda continuam fixados
Na realidade que transforma o meu peito
Num alvo fácil para um jogo de dardos.
Engarrafadas estão as minhas lágrimas,
Junto aos livros empoeirados na estante,
Desbotados estão os meus olhos,
Do meu rosto escorre o restante.

Tudo permanece no mesmo lugar,
O chão sob os meus pés
E o sol onde devia estar.
Eu queria ter um pedaço de sonho bom
E um “spray” anti-hipocrisia,
Para acabar com miopia do mundo
E aliviar um pouco a minha azia.
A vida não me afirma mais nada,
Há tantos vegetais fantasiados de humanos,
Mas as impossibilidades não decepam minhas pernas,
Infeliz é o ímpeto de chorar pelos enganos.
Os pulsos sangrentos do mundo
Escondem a paz
Em pano de fundo.
A vida ainda está escondida
No bolso traseiro da calça jeans
De Deus ou do Diabo.

domingo, 17 de junho de 2007

Pelos olhos murchos de uma vida seca

Um peito aberto
Aos disparos tristes
De uma vida fechada,
Cercada pelo tudo
E pelo nada.

O baque é oco
E o grito é mudo,
A alma é estilhaçada
Pelo sorriso ressentido,
Preso na voz calada.

A fome sussurrada
Sempre acompanhou o choro,
Vida e morte de mãos dadas,
Quase num coro.

É crepúsculo
No corpo do menino triste,
Do menino bom,
Forte é aquele que resiste.

Foram mãos duras
Que teceram teus sonhos,
Pelos olhos murchos de uma vida seca.

segunda-feira, 11 de junho de 2007

Bêbados


Anoiteceu
E a lua mais uma vez deu as caras,
Rompendo a monotonia da vida,
O gosto estranho que ela tem,
De tristeza e mel,
Bem perto daqui,
E tão longe do céu.
Amanheceu
E o sol mais uma vez deu as caras,
Invadindo o vazio do quarto,
Como um longo beijo no escuro,
Tomando a vida num assalto,
Os bêbados sempre esbarram no muro.

segunda-feira, 4 de junho de 2007

Uma flor na lapela


Em dias de sol forte
O mundo costuma explodir contra o rosto,
A humanidade nos oferece uma boa morte,
Um feijão com arroz sem gosto,
E a vida segue num golpe de sorte.
Há quem diga que o futuro é um barco sem vela,
Tão incerto quanto os lados ocultos da moeda,
Mas vejam só aquelas crianças
Com seus olhos pequenos,
E seus sonhos grandes,
Elas pintam a vida
Com suas tintas e pincéis imaginários.
Correm pelas ruas,
Choram e dão risadas à toa,
Quebram janelas e silêncios,
Vivem porque a vida é boa.
Caem sorrisos sob os olhos do mais triste,
Tudo que floresce
Floresce porque existe.
Os sonhos, por enquanto, vagam numa cela,
Mas tudo o que é belo
Vive
Como uma flor na lapela.