domingo, 9 de novembro de 2008

Doadores

Por João Paulo da Silva

“Você desmaia quando vê sangue? Tem gente que morre porque não vê.” Jurandir tinha visto este anúncio publicitário não sabia onde. Numa revista, talvez. Mas já fazia um tempo. Era uma dessas campanhas de incentivo à doação. Achou criativa. Ele nunca tinha doado sangue na vida. Pelo menos até a semana passada. Não que fosse um sujeito egoísta, mas é que sempre foi um daqueles que desmaia quando vê sangue. Principalmente se for o próprio sangue.

O fato é que o sogro do Jurandir arrebentou-se numa queda. Ia fazer uma cirurgia e precisava de uma transfusão.
- Você vai sim! Ora essa!
- Não, mozinho. Por favor. Olha, você sabe que tenho medo de agulha. Que não posso ver sangue. Ai, meu Deus!
- O que foi?
- Já estou com vertigens. Tá vendo só?! Pense direito, minha filha.
- Deixa de frescura, Jurandir! Você vai e ponto final!
Intimado pela mulher, o Jurandir foi. Mas levou também o irmão.
Chegaram ao laboratório especulando sobre o procedimento.
- E a agulha? Como deve ser a agulha? – perguntou o Jurandir ao irmão.
- Sei lá. Deve ser maior.
- Maior?! Cacete! Vou embora! Tu fica aí e diz eu que passei mal.
- Nada disso! Não vou doar sozinho não!
- Ai, meu Deus do céu!

Entraram no laboratório. Após terem feito o cadastro de doadores, ficaram esperando na recepção. Depois de alguns minutos, apareceu uma moça de branco na porta:
- Senhor Jurandir da Silva?
O frouxo fingiu não ouvir.
- Senhor Jurandir da Silva? – repetiu a moça.
- É tu, porra. Vai ser o primeiro. – falou o irmão, cochichando e rindo.
- O senhor é Jurandir da Silva? – disse a moça.
- Sou. Quer dizer, não agora.
- Me acompanhe, por favor.
Quando Jurandir já estava na porta praguejando, a enfermeira voltou-se e disse:
- Ah, o senhor Adalberto da Silva?
- Sou eu. – disse o irmão do Jurandir.
- Venha também.
O Jurandir, triunfante, olhou para ele e murmurou:
- Otário.

Foram encaminhados para uma sala menor. Havia uma balança, uma pia e um balcão com alguns equipamentos. A enfermeira disse:
- Vamos primeiro fazer um furinho no seu dedo pra ver se tá tudo ok com seu sangue.
- Eu vou morrer? – perguntou o Jurandir, querendo descontrair o ambiente.
- Vai. Mas não por isso. – respondeu a enfermeira, sem sorrir.
Beleza. Um a zero pra você, infeliz. – pensou o Jurandir.

Após os exames preliminares, os dois se dirigiram para uma cantina. Lá, perguntaram se eles queriam tomar um suco. Tomaram. Depois, outra enfermeira chamou o Jurandir para uma salinha com os seguintes dizeres: triagem clínica. Ele sentiu que a hora se aproximava.
Entrou na sala e sentou numa cadeira. Do outro lado de uma mesa, mexendo num computador, estava a enfermeira.
- O senhor é professor, certo?
- Isso.
- Já teve alguma doença infectocontagiosa?
- Olha, não que eu me lembre.
- Está tomando algum medicamento?
- Não.
- O senhor já tomou as vacinas contra o tétano e a hepatite?
- Acho que sim. Mas faz tempo.
- Bebeu ontem?
O Jurandir começou a estranhar as perguntas. Mesmo assim respondeu:
- Não, não bebi.
- O senhor usa drogas?
Hesitou um momento. Pensou em confessar que tomo uns refrescos vagabundos desde os dez anos. Mas desistiu.
- Não. Nunca usei.
- É casado?
- Sou.
- Tem relacionamentos fora do casamento?
Aí o Jurandir ficou nervoso.
- Como assim?! Aonde a senhora quer chegar com essas perguntas?! Tá insinuando o quê?! Isso aqui é algum tipo de pegadinha? Algum teste de fidelidade? Cadê a câmera? Cadê a câmera?
- Calma, senhor. Calma. Essas perguntas fazem parte do procedimento. É pra saber se o sangue não está contaminado.
- É?
- É.
- Ah, tá. Desculpe. Sendo assim, tudo bem. É claro que não tenho nada fora do casamento. Ora essa.

Levaram o Jurandir para a sala de doação. Seu irmão já estava deitado numa espécie de cama. Ele deitou numa outra e aguardou. Foi quando entrou aquela primeira enfermeira.
- Vamos começar? – disse ela.
- Não senhora! Me deixa ver o tamanho dessa agulha!
- Não. É melhor que o senhor não veja. Não agora.
- Ai, meu Deus!
- Calma. Não vai doer nada.
- É?! Então vem pra cá e deixa eu tirar o teu sangue.
Ela olhou para o Jurandir, séria novamente, sem sorrir. Amarrou seu braço com um elástico e se preparou para introduzir a agulha. Foi quando ele viu o tamanho da coisa.
- Epa! Afasta esse negócio de mim! Olha só a espessura dessa coisa, minha filha! Deve ter uns cinco centímetros de diâmetro!
Não adiantou protestar. O Jurandir acabou cedendo. Mas não deixou de gritar quando sentiu a picada da agulha.
- Ui, ui, ui. Ai, ai, ai.
- O que foi, rapaz? É só uma picadinha de formiga.
- Só se for uma formiga do tamanho de um javali! – berrou.
O irmão do Jurandir assistia a tudo isso rindo. Canalha. A enfermeira deu aos dois uma bolinha de borracha pra ficar apertando. Era pra ajudar a bombear melhor.
- Escuta, minha filha. – falou o Jurandir – Vai demorar muito?
- Só um pouquinho. Até encher aquela sacolinha.
- O quê?! Aquele saco todo?! Mas assim vai embora meu sangue! Ai, meu Deus do céu!

Os minutos passavam, o sangue ia embora e o Jurandir pensando no sogro. “Velho filho da mãe! Tinha nada que cair! Ao invés de se lascar sozinho, lasca os outros também! Ai, meu Deus! Meu sanguinho.”
Enquanto se doa sangue, ficam perguntando direto se está tudo bem. Se as pessoas não estão sentindo nada estranho. Essas coisas. Perto do final da doação, o Jurandir resolveu fazer uma brincadeirinha com a enfermeira.
- Enfermeira, me ajude! – ele falou.
- O que foi?
- Não sei. Tô ficando tonto! Minha vista tá escurecendo! Socorro! Ai minha nossa Senhora! Me acuda, moça, que eu tô morrendo!
Fechou os olhos.
- Moço! Moço! Fale comigo! O que é que tá havendo?
- Brincadeirinha!
Ela fechou a cara de novo. Dessa vez numa expressão de fúria.
- Idiota. – disse.
Agora o Jurandir tinha ido longe demais.
Terminada a doação, ele perguntou se podia tomar mais um suco.
- Vão servir um lanche pra vocês lá fora. – disse a enfermeira sem olhar para ele.
Serviram um sanduíche de queijo com suco de cajá.
- Ei, será que podemos doar sangue os três horários? Manhã, tarde e noite. Assim a gente já garante as três refeições. – perguntou o Jurandir para a moça da cantina.
Ela ficou séria. Não deve ter achado graça da piada.
Não sei se você já doou sangue. Mas, para o Jurandir, a pior coisa não foi a agulha. Foi o mau humor do pessoal. Ô povinho ranzinza!

3 comentários:

Artur Finizola disse...

muito bom... =D
coloquei lá no aiegua.com.br

grande abraço.

Mário Júnior disse...

Votei em John Paul Silver!
E continuo sem gostar de crônicas. Mas é um comportamento "sui generis" de Mário Júnior. Nem se preocupe, você é uma pessoa que escreve bem, e sobre bons temas.
Vai ser um dos grandes jornalistas dessa nova geração.
Só tem um defeito: é peludo demais!

Bruno MGR disse...

Assumo que tenho esse medo infantil de doar sangue. Enquanto minha mãe costuma doar regularmente.
Sou uma vergonha...