Quando era criança, lá pelos doze anos, eu costumava jogar bola com meu irmão no terraço da nossa casa. Ficávamos horas brincando de chute ao gol. Como não tínhamos autorização para jogar na rua, aquela acabava sendo a nossa diversão. Mas a gente até que gostava. Só não gostávamos mesmo era do Yurinho, o vizinho da frente. Ô moleque chato.
Ele sempre aparecia no portão lá de casa, pedindo pra jogar com a gente. Ficava um tempão implorando e enchendo o saco. Foram poucas as vezes em que permitimos. Eu e meu irmão tínhamos um motivo para não deixá-lo jogar. Qualquer coisinha o Yurinho chorava. Se levava um frango, chorava. Se perdia um pênalti, chorava. Se tomava uma bolada mais forte, chorava. E o pior: saía correndo e gritando que a gente tinha batido nele. Quer dizer, além de frouxo, o Yurinho também era mau-caráter.
Depois que passamos a impedi-lo de jogar com a gente, o safado começou a apelar para a deslealdade. Chegava no portão,todo malicioso, e falava:
- Oi. Posso jogar com vocês?
- Sai fora, Yurinho. Você só sabe chorar e mentir. – dizia eu.
- Mas eu quero!
- E você tem o que querer aqui, seu cagão?!
- É isso mesmo. Sai fora, Yurinho. – meu irmão completava.
- Sai fora, Yurinho. Você só sabe chorar e mentir. – dizia eu.
- Mas eu quero!
- E você tem o que querer aqui, seu cagão?!
- É isso mesmo. Sai fora, Yurinho. – meu irmão completava.
Ele corria chorando para casa e contava para a avó que a gente não queria deixá-lo jogar e que, ainda por cima, tínhamos batido nele. Não demorava muito e a velha aparecia para reclamar. Ficava um tempão nos esculhambando, dizendo que não tínhamos coração, que éramos seres abomináveis etc. Com medo, eu e meu irmão corríamos para nos esconder. Só voltávamos depois que a vó do Yurinho saía. O mau-caráter fez isso várias vezes. Até que um dia resolvemos nos vingar.
Aí mudamos de tática. Se o Yurinho queria jogar sujo, então nós iríamos entrar no jogo dele. E, naquela época, sujo era literalmente sujo mesmo.
Um dia, como de costume, ele apareceu no portão.
- Posso jogar com vocês?
- Claro que pode, Yurinho. – falei.
- Sério?! Jura?! – surpreendeu-se o chato.
- É sério, sim. – disse meu irmão.
Aí o Yurinho se animou e já ia abrindo o portão quando eu o interrompi:
- Sério?! Jura?! – surpreendeu-se o chato.
- É sério, sim. – disse meu irmão.
Aí o Yurinho se animou e já ia abrindo o portão quando eu o interrompi:
- Epa! Peraí. Aonde você pensa que vai com essa pressa toda?
- Jogar com vocês, ué.
- Calminha aí, Yurinho. Calminha aí. Você pode jogar, mas com uma condição.
- Que condição?
- Calminha aí, Yurinho. Calminha aí. Você pode jogar, mas com uma condição.
- Que condição?
Era chegada a hora da vingança.
- Se quiser brincar, você vai ter que chupar uma pedra aí da rua.
- Hã?? Mas isso é muito sujo.
- Pois é. – disse eu.
- Pois é. – disse eu.
- É pegar ou largar. – sentenciou meu irmão.
A rua da minha casa era cheia de pedras, de todos os tipos. Grandes, médias, pequenas. E sujas também. Da lama ao cocô do cachorro. Uma imundice só. Mas era isso. Se o Yurinho quisesse jogar bola com a gente, teria que aceitar o desafio. Essa era a condição.
- Tá bom. Eu aceito.
E assim começou a nossa vingança. Todas as vezes que ele aparecia no portão querendo brincar nós pedíamos para ele chupar uma pedrinha. Escolhíamos sempre as mais sujas, que era pra ver o sofrimento do infeliz. Ainda assim, depois da penitência do Yurinho, nós só brincávamos por alguns minutos, para não dar muito gosto ao chato. Afinal, o bom mesmo era assistir ao sacrifício do Yurinho ao chupar as mais nojentas pedras da rua.
- Tá bom, Yurinho. A gente não quer mais jogar.
- Mas já?! Não foram nem cinco minutos?!
- É, eu sei. Mas já estamos cansados. Amanhã brincamos mais. Tchau.
Mantivemos o plano durante muito tempo. Tanto que cheguei a pensar que o Yurinho já havia lambido uma quantidade de pedras suficiente para fazer uma calçada inteira. Mas meu irmão e eu não tínhamos a menor pena do mau-caráter. Ele estava tendo o que merecia. Foi quando um “pequeno” detalhe começou a mudar os rumos da história.
À medida que os dias e as pedras chupadas passavam, uma notável alteração foi se dando no rosto do Yurinho. Ele estava ficando amarelo. Mas muito amarelo mesmo. E tínhamos a impressão de que, após uma nova pedra, o Yurinho ia ficando cada vez mais amarelo. Lembro, inclusive, que em sua última aparição em tons de amarelo ele parecia molho de mostarda. Isso mesmo. Última aparição. Porque teve um dia que o Yurinho não apareceu mais no portão. Passou-se uma semana. Duas. Três. E nada.
Até que um dia vimos a vó do Yurinho, vestida de preto, saindo de casa. Com o rosto vermelho de choro, ela parou para conversar na porta da Dona Neide. Da conversa, meu irmão e eu só conseguimos ouvir duas frases.
- Ele se foi, Dona Neide. Meu Deus, o Yurinho me faz tanta falta. – disse a vó do moleque, desatando no choro.
Pronto. Foi o suficiente.
- Puta que o pariu, João! A gente matou o Yurinho! – desesperou-se meu irmão.
- A gente quem? Eu vou negar até o fim. Quero falar com o meu advogado! Cadê o meu advogado?!
Ficamos naquela paranóia por uma semana. Não podíamos revelar nosso crime para ninguém, havia o risco de sermos punidos severamente, mas também não podíamos suportar a dor na consciência. Tínhamos matado uma pessoa. Tudo bem que era o Yurinho, mas ainda assim era uma pessoa. Pelo menos em tese. O que fazer, então? Contar toda a verdade e rezar para sermos condenados, no máximo, por homicídio culposo? Ou não contar nada e continuar insistindo no nosso próprio convencimento de que, afinal de contas, era só o Yurinho mesmo?
- Bolívia! – disse eu.
- O quê?
- O quê?
- Vamos fugir para a Bolívia! – repeti.
- Tá doido?! E dizer o que para a mamãe? “Oi mãe. Estamos indo para a Bolívia porque matamos o Yurinho.”.
- Tem razão. Tô doido.
De fato, não sabíamos o que fazer. Estávamos numa encruzilhada.
Após um mês do sumiço do Yurinho, jogávamos bola no terraço de casa. Ainda muito preocupados, brincávamos sem entusiasmo nenhum. Foi quando ouvimos uma voz no portão:
- Oi. Posso jogar com vocês?
Meu Deus do Céu! Era o Yurinho.
- Yurinho! É você mesmo?! Não pode ser! – eu gritei.
- Como não pode ser, João?! Cala essa boca! Graças a Deus que é ele! Yurinho! – gritou também o meu irmão.
- Oi. Posso jogar com vocês?
Meu Deus do Céu! Era o Yurinho.
- Yurinho! É você mesmo?! Não pode ser! – eu gritei.
- Como não pode ser, João?! Cala essa boca! Graças a Deus que é ele! Yurinho! – gritou também o meu irmão.
O Yurinho nunca entendeu por que nós o abraçamos e o beijamos tanto naquele dia. E a gente mesmo nem quis falar. Ninguém precisava saber.
- Poxa. Não sabia que vocês gostavam tanto assim de mim.
- Ah, você realmente não sabe o quanto. – falei.
Depois da recepção emocionada, o Yurinho explicou o próprio sumiço.
- Fiquei doente. Vermes, sabe? Sério mesmo.
- Verdade? Que coisa estranha, hein?! – argumentei.
- Pois é. Comecei a ficar amarelo.
- Jura? A gente nem notou. – disse meu irmão.
- Poxa. Não sabia que vocês gostavam tanto assim de mim.
- Ah, você realmente não sabe o quanto. – falei.
Depois da recepção emocionada, o Yurinho explicou o próprio sumiço.
- Fiquei doente. Vermes, sabe? Sério mesmo.
- Verdade? Que coisa estranha, hein?! – argumentei.
- Pois é. Comecei a ficar amarelo.
- Jura? A gente nem notou. – disse meu irmão.
Aí o Yurinho falou que sua mãe achou melhor ele passar o resto das férias com ela lá no sítio. Seria bom para se recuperar e coisa e tal. Depois que estivesse bem, poderia voltar a morar com a avó. Ela ficaria triste e sozinha, mas seria só por um mês. Logo tudo voltaria ao normal. E o Yurinho se mandou pra casa da mãe.
- Sabe, fiquei tão doente que quase morri.
- Mas não morreu! Vira essa boca pra lá, Yurinho! O importante é que você não morreu! – falei com toda convicção.
- Isso mesmo. Que bom que o Yurinho não morreu. E a gente nem precisa mais falar disso. É hora de jogar bola. Vamos jogar bola. – propôs meu irmão.
Aí o Yurinho já estava indo pegar uma pedra quando eu gritei:
- Ei! O que pensa que vai fazer?!
- Ué, chupar uma pedra pra poder jogar.
- Yurinho, larga já essa pedra! Pelo amor de Deus! Larga isso já!
- Sabe, fiquei tão doente que quase morri.
- Mas não morreu! Vira essa boca pra lá, Yurinho! O importante é que você não morreu! – falei com toda convicção.
- Isso mesmo. Que bom que o Yurinho não morreu. E a gente nem precisa mais falar disso. É hora de jogar bola. Vamos jogar bola. – propôs meu irmão.
Aí o Yurinho já estava indo pegar uma pedra quando eu gritei:
- Ei! O que pensa que vai fazer?!
- Ué, chupar uma pedra pra poder jogar.
- Yurinho, larga já essa pedra! Pelo amor de Deus! Larga isso já!
Hoje, alguns anos depois, faço outra interpretação de nossa atitude. Na verdade, não estávamos castigando nem nos vingando do Yurinho. Estávamos, inconscientemente, ensinando uma lição aquele pequeno mau-caráter, que gostava de caluniar os outros. Queríamos mesmo era mostrar ao Yurinho o quanto a vida era dura e suja, assim como as pedras lá da rua. Sabe, era uma metáfora. Uma metáfora sobre as muitas pedras que ele ainda encontraria pelo caminho. Era, na verdade, aquela história da pedra do Drummond, sabe? Aquela do meio do caminho. Era isso que a gente queria ensinar pro Yurinho. Mostrar pra ele que só um homem de bom coração passaria pelas adversidades da vida. Não havia espaço para o mau-caráter, entende? Bom, era isso. Estou convicto de que a História nos absolverá. E agora espero que o Yurinho também. Era pro bem dele.
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OBS.: Caros leitores e leitoras, por motivos de correria no trabalho, os textos do blog As Crônicas do João serão publicados às terças-feiras, e não mais aos domingos como antes. Entretanto, a periodicidade semanal permanece. Forte abraço.
6 comentários:
huhahuuauahauahhaauahauahua
Lembrou-me a Chiquinha, que chorava e inventava que o Chaves haiva batido nela.
Pelo texto percebo que o seu irmão era tão maléfico quanto vc. E ainda vem com essa história de redimir o garoto...
João! faz tempo que não passava por aqui. A história do yurinho me lembrou minha infância, mas, no meu caso, o problema era a marcela do prédio da frente... e ao invés de ser a pedra no jogo de futebol a gente chamava pra brincar de se esconder e preparava toda uma armadilha tecnológica para pegá-la... Sabe como? nos comunicávamos através de telefone sem fio (aquele feito de dois copos e um fio de linha)... magnífico, né? rsss
xero grande pra tu!
Carol Burgos
n sei quem é o canalha da estória. Ainda bem que voce botava pra ele chupar pedra : x
Putz, ficou muito massa, pow!
Lembro-me como hoje! Yurinho, chupe a pedra!
kkkkkkkkkkkkkkk... mas assim, sempre fui o melhor com a bola, sempre fui!
Abração!
O João, vc e seu irmão tinham vocação para padre. Cruz em credo, vai penitenciar o pobre meninu assim.
Adriano
Eu absolvo!
kkkkkkkkkkkkkkk
Muito bom!
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