domingo, 18 de setembro de 2011

Canibal

Por João Paulo da Silva

Você não sabe o que é voltar para casa todos os dias com uma dúvida lhe devorando o juízo.

Ele sobe as escadas sentindo o cheiro forte do alho que vem da cozinha. Da cozinha do seu apartamento. Para diante da porta, gira a chave, torce a maçaneta e, antes de abrir, pensa meio perturbado:
- É hoje. Só pode ser hoje.


Entra em casa. A mesa está posta. Pratos, taças, velas e um recipiente fumegante ao centro. Sua esposa sai do quarto com um sorriso de orelha a orelha.
- Você vai adorar o jantar, amor. Fiz estrogonofe.

Ele solta um suspiro e conclui interiormente.
- Não. Não é hoje.

Faz três anos que ele está nessa situação. Esperando “aquele estranho dia que nunca chega”, como diria Luis Fernando Veríssimo. Vive no pequeno espaço entre a boca e a taça de cicuta. Chegou a um ponto da trilha que não lhe permite mais o retorno. Já não há caminho para voltar. Se se arrepende? Não! Nem poderia. O poetinha disse certa vez que “a vida é a arte dos encontros, embora haja tantos desencontros nessa vida”. Ele teve o seu encontro. Seu encontro com o amor. E vice-versa. Encontrá-la foi como achar o palitinho premiado que dá direito a outro picolé. Uma felicidade só. Mas, junto com ela, a vida também lhe trouxe uma mudança no destino. Ou será que eram a mesma coisa? Não sabe dizer.

Nos últimos tempos, ele engordou cerca de vinte quilos. Com as adiposidades, vieram ainda grandes revelações. A pior e mais importante delas é ao mesmo tempo cruel e perigosa. Descobriu (tarde demais!) que havia se casado com uma canibal. Desde o começo do namoro, os bolos, as lasanhas, os pudins, os cremes de galinha, tudo era parte de um grande e maquiavélico plano. Na verdade, durante todo o tempo, ele foi criado em regime de engorda. Pode afirmar, com sinceridade e certa resignação, que dormiu homem e acordou leitão. Hoje, olhando-se no espelho, vê que nasceu homem por uma incongruência da natureza. Era para ter nascido leitão mesmo.

Até agora, ela não sabe que ele sabe de tudo. A descoberta foi uma casualidade. Ele estava arrumando o guarda-roupa quando encontrou embaixo de algumas roupas dela um livro sobre práticas de canibalismo. Foi tomado, de imediato, pela terrível sensação do fim ao perceber a macabra conexão dos fatos. Mas não havia mais saída. Ele já estava adaptado à vida de glutão. Uma reviravolta seria impossível. Concluiu que deveria enfrentar seu trágico e irremediável destino com estoicismo. “Um homem deve seguir seu caminho.”, pensou. Mesmo que seja na boca de outro. No caso, de outra.

Desde o dia da descoberta, vem tentando encarar as coisas com naturalidade. Continua comendo feito um porco e se esforçando para não deixar transparecer sua angústia. Mas é difícil. Não consegue olhá-la sorrir e não se imaginar entre seus dentes afiados. Quando ela o abraça e o aperta na cama, ele logo pensa que a mulher está verificando a maciez da carne, com certeza buscando as melhores partes. Ele até já cultiva grandes olheiras. Nem dorme mais direito.

Todos os dias, ao voltar para casa, ele pensa que talvez tenha chegado o momento. Quando, ainda nas escadas, sente o cheiro do alho, imagina imediatamente sobre a mesa de jantar uma enorme bandeja toda enfeitada. A bandeja estará vazia, aguardando o prato principal ser servido. Ele entrará em casa e a encontrará salivando sobre uma toalha nova. Ela colocará uma maçã em sua boca, desejará “bon appetit” a si mesma e o devorará. Será inevitável.

2 comentários:

Bruno Martins disse...

Falando em Veríssimo, essa crônica lembrou-me demais do estilo dele em alguns escritos.

Kyvia disse...

Ei! Creme de galinha é irresistível! Mesmo para quem não possui hábitos de um glutão! :)