segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Amigo íntimo

Por João Paulo da Silva

O meu melhor amigo é um homem que vejo todos os dias no espelho do banheiro da minha casa. Suas características físicas são estranhamente parecidas com as minhas. Tem uns olhos tristes, um sorriso tímido, sobrancelhas e lábios grossos, nariz delgado, uma calvície levemente acentuada e um corpo quase franzino. É um profundo conhecedor dos meus segredos mais íntimos e o único para quem posso confidenciar as minhas desilusões amorosas. Sinto-me à vontade com ele. É como se estivéssemos juntos desde o dia em que nascemos. Às vezes, ele se aventura como meu analista, vasculhando os vários cantos escuros e empoeirados do meu subconsciente. Procuramos conversar todas as manhãs em frente ao espelho. São diálogos abertos e naturalmente silenciosos. Ele tem um lado moralista que eu não valorizo muito, pois usa-o constantemente para reprimir algumas de minhas atitudes. Mas é apenas com ele que me vejo suficientemente bem para abrir meu baú secreto, onde guardo minhas ações mais nobres e os meus sonhos mais soberbos. Estamos misteriosamente presos um ao outro.

Vez ou outra percebo as rugas que a vida me deixou, inúmeras linhas que traçaram no meu rosto a inevitável tristeza da transitoriedade do tempo. Esse meu amigo acompanhou boa parte da evolução natural de minha vida, com certeza presenciou fatos de inefável deslumbramento e de decadência moral. Ele sempre me pareceu um grande camarada, um sujeito decente. Comentamos minhas lembranças de forma bastante pessoal. Acho que ele me conhece melhor do que minha própria mãe.

Tive uma infância mágica, açucarada pelas brincadeiras e infinitamente divertida. Ah! Como era bom brincar de esconde-esconde, polícia e ladrão, cabra-cega. Era-me permitido sonhar, habitar mundos inexistentes, ser o mocinho dos filmes de Bang-Bang, até mesmo percorrer toda a estrada de doces do tempo de criança era válido. A infância tinha um sabor inconfundível. Tinha um gosto de chocolate, ingrediente indispensável para a felicidade infantil. Já ouvi alguém dizer que a época de criança é a única em que se é feliz. Talvez seja realmente. Eu fui uma criança feliz e creio que meu amigo também tenha sido.

Acho que a adolescência é uma das etapas da vida que, definitivamente, deixa marcas irreversíveis. A própria natureza se encarregou de substituir a minha meninice por constantes festas hormonais produzidas pelo meu corpo. Passei a desfrutar as mudanças da idade com bastante apreço. Nunca pensei que pudesse ser tão prazeroso sentir aquele subjugado calor entre as pernas. Comecei a achar que as sensações concebidas por um certo órgão eram, de fato, as melhores possíveis. O menino que havia em mim começava a fazer as malas para partir. A libido resolveu que era hora de frequentar o meu corpo com mais assiduidade. Tomara que o meu amigo não tenha presenciado essa minha fase, pois, como eu havia dito antes, ele tem um lado moralista e, consequentemente, hipócrita.

O que posso eu falar da minha vida de adulto? Não tenho lembranças vivas, apenas espasmos perdidos de uma época fria e monótona. Tive que me tornar um homem responsável, sério, cumpridor dos meus deveres, um cidadão padrão. Em suma, tive que arrumar um emprego. Meu trabalho era unir as pessoas separadas pela distância. Eu era carteiro. Eu aproximava as pessoas, mas não conseguia me aproximar delas. Custou-me caro acreditar que num mundo com alguns bilhões de habitantes ainda existisse um sujeito tão solitário como eu. Não casei nem tive filhos. Nunca descobri se o problema era comigo ou com o mundo, mas sei que é exatamente por isso que não gosto de lembrar de minha fase adulta. Quanto ao meu amigo, ele jamais fez objeções.

Sempre morri de medo da velhice. Eu achava que ficando velho me tornaria um inválido, um vegetal, ou até mesmo um indivíduo sem lucidez. Eu estava errado. A velhice me fez ver a vida por outros ângulos, fez com que eu me tornasse o homem sábio que não fui quando jovem. Foi justamente nesse período que iniciei minhas reflexões existenciais. O meu amigo – agora velho também – continuava do meu lado, sempre disposto a ajudar. Mas ainda havia algumas lacunas na minha vida que ele infelizmente não conseguira preencher. Tenho a ligeira impressão de que a vida não é nem tão boa nem tão ruim. Prefiro o termo mais ou menos. Talvez eu seja um pessimista, um problemático. O certo é que em breve partirei numa viagem sem volta. Tomara que seja no trem do qual Raul falou. Eu não sei se meu amigo virá junto, mas caso ele queira ficar eu sentirei saudades. Principalmente das vezes que ficamos ridicularizando as rugas um do outro. Que tolice! Elas são as mesmas! Espero que ele nunca encontre um amigo melhor do que eu, pois ele é o único que dá risadas das minhas anedotas ruins e o único que vê graça nessa minha vida sem graça.

2 comentários:

Josias News disse...

Parabéns, João, pela crônica!

É muito bom sabermos que nosso estado continua produzindo grandes talentos como o que se mostra nesse texto.

O jornalismo, a literatura e a cultura lhe agradecem!

PARABÉNS!

Bruno Martins disse...

Excelente texto, daqueles em que você vê a mescla das emoções do personagem com as do escritor.