domingo, 1 de abril de 2012

E o humor ficou órfão...

Por João Paulo da Silva

Tudo o que ele fez foi sucesso de crítica e público. Em mais de 70 anos de carreira, usou sua inteligência corrosiva e seu humor fulminante para escrever, “sem borracha”, o próprio nome entre os maiores intelectuais e artistas do Brasil. Foi jornalista, desenhista, cartunista, humorista, dramaturgo, escritor, fabulista, frasista, tradutor e inventor. Foi dele a ideia do frescobol. A única prática esportiva sem vencedores ou perdedores. Era dono de um gênio tão inquieto quanto brilhante. Uma daquelas cabeças que não veremos nunca mais. Millôr Fernandes era um homem múltiplo, de múltiplos talentos, de múltiplas facetas. E foi assim até na hora do adeus definitivo. Morreu aos 88 anos de falência múltipla dos órgãos.

Millôr Fernandes provou que o humor mais competente é aquele que nos faz pensar achando graça. É aquele que subverte a ordem das coisas, que satiriza a vida, os problemas sociais e própria condição humana. É claro que ninguém é obrigado a buscar o riso inteligente, mas também ninguém deveria ter o direito de chamar de piada ou de liberdade de expressão algo como “eu comeria ela e o bebê”. Numa entrevista à Playboy, o cronista Luis Fernando Veríssimo disse que o único limite do humor deve ser o bom senso. E o que não faltava ao sarcasmo e à inteligência perspicaz do Millôr era o bom senso. Crítico, principalmente. Para ele, o humor era “a quintessência da seriedade”. Coisa de gente verdadeiramente séria.

Entretanto, mesmo sendo o gênio que era, o Millôr não conseguiu escapar ileso das contradições da sociedade que o criou. Havia, sim, uma pitada de machismo em parte de sua produção, mas nem de longe isso se assemelha às asneiras ditas hoje por certos humoristas, a exemplo daquela história infame do estuprador de mulher feia que merece um abraço ao invés de cadeia. Uma babaquice dessas a gente não diz nem de brincadeira. O Millôr Fernandes era um sujeito refinado, pensava muito antes de abrir a boca, desenhar ou escrever qualquer coisa. Um ou outro escorregão jamais será capaz de manchar o talento e a engenhosidade dele. Mesmo porque a batalha de seu humor era pela liberdade, e não pela opressão. A ditadura que o diga.

A prova está no jornalismo, na literatura e no teatro que ele fez. O Millôr era como o ex-jogador de futebol Romário, dentro da pequena área. Precisava apenas de uma brechinha para fazer um estrago. É difícil escolher uma única obra dele, mesmo porque o próprio Millôr Fernandes dizia que obra era “coisa de pedreiro”. Mas, para os que desejam conhecê-lo profundamente, eu indicaria o livro Millôr Definitivo: A Bíblia do Caos. Do seu deboche, ninguém escapava. Nem ele mesmo. Sua grande capacidade intelectual consistia em satirizar as pessoas, os costumes, as ações humanas, a política, as ideologias. Millôr apontava sua língua e traço ferinos para aquilo que valia a pena e precisava ser subvertido.

Com o Millôr Fernandes, morrem muitos artistas, cada um mais singular do que o outro. Agora, o Brasil é um país mais triste e menos inteligente. Millôr tinha razão. Deus não existe e o universo não faz o menor sentido. Está aí o José Sarney como evidência inconteste. Não pega nem gripe e até o capeta rejeita. O humor subversivo ficou órfão. Ficou menos Millôr.

Frases para nunca esquecer...

“Fiquem tranquilos os poderosos que têm medo de nós: nenhum humorista atira pra matar.”
“O cadáver é que é o produto final. Nós somos apenas a matéria prima.”
“O homem é o único animal que ri. E é rindo que ele mostra o animal que é.”
“Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados.”
“Como são admiráveis as pessoas que não conhecemos muito bem.”
“O otimista não sabe o que o espera.”
“Eu também não sou um homem livre. Mas muito poucos estiveram tão perto.”
“Nunca ninguém perdeu dinheiro apostando na desonestidade.”
“Brasil, condenado à esperança.”
“Brasil; um filme pornô com trilha de Bossa Nova.”
“Todo homem nasce original e morre plágio.”
“O dedo do destino não deixa impressão digital.”
“Sabemos que VOCÊ, aí de cima, não tem mais como evitar o nascimento e a morte. Mas não pode, pelo menos, melhorar um pouco o intervalo?”
"Repito um velho conselho, cada vez mais válido, sobretudo pro Congresso: Quando alguém gritar “- Pega ladrão”, finge que não é com você"
"Quando os eruditos descobriram a língua, ela já estava completamente pronta pelo povo. Os eruditos tiveram apenas que proibir o povo de falar errado".
"A infância não, a infância dura pouco. A juventude não, a juventude é passageira. A velhice sim. Quando um cara fica velho é pro resto da vida. E cada dia fica mais velho."
"Não devemos odiar com fins lucrativos. O ódio perde a sua pureza".
"Um Homem só é completo quando tem família; mulher e filhos. Desculpe: completo ou acabado?"
"Deus é realmente um ser superior. Não há nada nem parecido no Governo Federal".
"Prudência: E devemos sempre deixar bem claro que nenhum de nós, brasileiros, é contra o roubo. Somos apenas contra ser roubados".
"Feliz é o que você percebe que era, muito tempo depois".
"Aprenda de uma vez: Se você acordou de manhã é evidente que não morreu durante a noite. A felicidade começa com a constatação do óbvio".
"Nem só comer e coçar é questão de começar. Viver também".
"Os ateus têm um Deus em que nem eles acreditam".
"O melhor do sexo antes do casamento é que depois você não precisa se casar".
"Tudo na vida tem uma utilidade - se não fosse o mau cheiro quem inventaria o perfume?"
"Voto de pobreza, obviamente só pode ser feito por rico".
"Errar é humano. Botar a culpa nos outros também".
"O problema de ficar na fossa é que lá só tem chato".
"Anatomia é uma coisa que os homens também têm, mas que, nas mulheres, fica muito melhor".

2 comentários:

Bruno Martins disse...

É sério isso do frescobol?

Gabriel Victor disse...

Não conhecia muito Millôr.
Mas sei que ele deixou um grande patrimônio nessa terra.
João, se você sentiu muito com a morte de Millôr, eu senti com a morte de Chico Anysio.
Ou Millôr, ou Chico, o Brasil vai sentir falta dos dois.
Ah, e visualize o mel blog:

As Crônicas do Gabriel