quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Rolezinhos

Por João Paulo da Silva

Enquanto isso, nos shoppings brasileiros... o país da democracia racial se revela.

Numa loja, a gerente da grife e a cliente rica conversam.

- Ai, querida... não sei você, mas eu ando tão assustada com essa onda de... como é mesmo que eles chamam? ‘Rolezinhos’, não é? Isso tem tirado o meu sossego, acredita?! A gente nem pode mais fazer compras em paz. Ai, que absurdo.
- É verdade, querida. Virou uma bagunça. Eles entram, passeiam pelo shopping inteiro, ficam na praça de alimentação, cantam funk. Um horror. Se ao menos eles comprassem alguma coisa, não é? Mas não. Só fazem atrapalhar as vendas.
- Com certeza. Olha, eu sou bem sincera. Não me sinto segura com essas pessoas ao redor. Não é que eu seja racista, longe de mim. Até tenho um primo distante que é preto. Mas aqui é um lugar para gente, digamos, mais civilizada, concorda?
- Completamente. Nós temos que proporcionar todo o conforto e segurança aos nossos clientes. Imagine o absurdo que é uma pessoa importante como senhora vir ao shopping e se deparar com esse tipo de gente batendo perna por aqui. Inaceitável.
- Exato. É como dizem por aí: cada macaco no seu galho. Ou melhor, cada macaco na sua periferia. Para falar a verdade, querida, eu não sei nem o que faria se me deparasse com um ‘rolezinho’ no shopping. Acho que morreria do coração. Olha, fico toda arrepiada só de pensar.
- Eu posso imaginar, querida. Mas já estamos tomando providências. Ao menor sinal desse pessoal, nós fechamos a loja e chamamos a polícia. Nunca roubaram nada, nem entraram aqui. Mas a gente tem que se prevenir. Não é preconceito. É só para garantir que as vendas não serão atrapalhadas por essa gente que acha que pode vir ao shopping. Concorda comigo?
- Completamente. Ai, que absurdo.

***

Numa mesa da praça de alimentação, um grupo de jovens negros conversa, brinca, dá risadas e toma milkshake. A presença deles incomoda. A segurança é chamada, logo a polícia aparece.

- Posso saber o que tá acontecendo aqui?! – indaga o capitão da PM aos jovens.
- Oi, policial. A gente só tá aqui, de boa, curtindo. Esperando a galera. – explica um dos rapazes.
- “De boa”? “Curtindo”? “Esperando a galera”?
- É. Só isso. Tem algum problema?
- Tem sim. A presença de vocês. Incomoda os clientes. Vou ter que pedir pra vocês se retirarem.
- Como assim?! A gente tem os mesmos direitos dos outros, policial. – estranha um garoto.
- Olha, vocês tão pedindo para serem tratados como bandidos. – ameaça o capitão.
- Mas nós não fizemos nada. Por que temos que sair daqui?
- Chega de conversa! Vamo, encosta ali. Todo mundo pra parede. Oliveira, revista um por um. – ordena o capitão a outro policial.
- Vamo lá. Mão na parede, perna aberta. Ninguém se mexe.
- Mas a gente não fez nada. Isso é um absurdo! – insistiu mais um jovem.
- Não fizeram nada?! Vocês vem ao shopping, ficam andando, conversando na praça de alimentação, dando risada e ainda dizem que não fizeram nada. Isso tudo é muito suspeito. Ainda mais com um bando de neguinho que nem vocês. – dispara o capitão.
- O que é isso? Não pode falar assim, não. Isso é preconceito. Racismo é crime, policial.
- Cala a boca e fica quieto, moleque! Não existe racismo nesse país. Agora, todo mundo sabe que negro parado é suspeito, correndo é ladrão. E vocês estavam parados, o que é muito suspeito.
- Suspeito de quê? De frequentar o shopping? Quem o senhor pensa que é pra fazer isso? Isso é um abuso. – protesta um dos rapazes do grupo.
- Olha o desacato, pivete! Viu só, Oliveira? Não pode dar liberdade. Quando começa a reclamar assim é porque aí tem coisa.
- E tem mesmo, capitão. Olha só o que eu encontrei aqui.
- Opa, opa, opa... celulares. Muito suspeito. Na verdade, suspeito até demais.
- Não tem nada a ver. A gente só tava trocando mensagem entre os amigos, policial.
- Trocando mensagem? Que tipo de mensagem? Verifica aí, Oliveira.
- Tá escrito assim, capitão: “Galera, vamo dar um rolezinho no shopping. Zoar, dar uns beijos, rolar umas paqueras”.
- Olha aí! Tô falando. É suspeito, sim. Aí tem coisa. Devem ser aquelas mensagens em código que os vagabundos gostam de usar.
- Isso não é verdade. Desde quando é proibido usar celular? – questiona outro garoto.
- Depende de onde você estiver usando. No presídio, é proibido.
- A gente não é bandido. Nem tá no presídio.
- Ainda não. Mas vocês chegam lá. Encontrou mais alguma coisa aí, Oliveira?
- Encontrei, capitão. O senhor não vai acreditar. Estão portando um coquetel molotov.
- Isso é o meu milkshake de Ovomaltine! – reclama o jovem que teve o sorvete apreendido.
- Milkshake de Ovomaltine? Tu tá pensando que eu sou otário, rapaz?! Pensa que eu não sei do que vocês são capazes?! Já ouvi a conversa de que era vinagre, pinho sol, água sanitária. Mas milkshake é a primeira vez.
- O que é isso, policial? Olha aí... é só creme com chocolate no copo.
- Você é da perícia por acaso?! Faz laudo técnico?! Quer ensinar o padre a rezar missa?
- Isso é discriminação. Agora ser negro e pobre é crime, é? – pergunta o rapaz.
- Oficialmente, não. Mas já é metade do caminho. Agora rolezinho é crime, sim. Onde já se viu?! Negro e pobre circulando no shopping tranquilamente. Não pode, não. – sentencia o capitão.
- Quer dizer que se fosse branco poderia então?
- Se fosse branco, não seria rolezinho. Seria flash mob.
- Terminei aqui, capitão.
- Ótimo. Vamo embora, Oliveira. Apreende tudo e leva todo mundo pra delegacia. E cuidado aí com o MacGyver do milkshake.

Um comentário:

Irineu Claudino Sales disse...

Ainda vigora neste País a regra dos três P's, Preto, Pobre de Periferia.Com toda certeza isso causa indignação a qualquer cidadão de bem.