domingo, 23 de agosto de 2015

Mudar de casa e arrumar o quarto

Por João Paulo da Silva

Viver é mudar de casa e arrumar o quarto. A gente sempre perde e encontra algo pelo caminho. É um grande “achados e perdidos”. A vida é o que deixamos cair do caminhão da mudança. O que ficou esquecido na casa velha. O que reencontramos quando damos uma geral no quarto. As coisas, as pessoas, as convicções, os amores.

O que é e o que poderia ter sido. Aquilo que escapou pelos dedos. O que estava perdido, mas foi reencontrado. Na bagunça, nas gavetas, entre os livros, cadernos, fotografias, CDs antigos. Somos escolhas e acidentes. A esperança da segunda chance, do reinício, do tente outra vez. Porque mudar e arrumar são imperativos.


Quem arruma o quarto organiza a vida. Reencontra o passado. Orienta o futuro. Quem se muda abandona uma história. Começa outra. Altera a rota. Desliga o GPS. Nas mudanças e arrumações, a gente descarta o que não tem mais espaço, revive o inacabado, reintegra o mal resolvido. Silencia ou dá voz ao que ficou por dizer.

Na vida, cada um é também os seus fantasmas...

O carrinho de bombeiros na infância. Movido a pilhas, com sirene e escadinha. O primeiro e único brinquedo que recebeu do pai. Quebrou-se poucos dias depois, como um presságio sobre a efemeridade dos tempos. O “Comandos em Ação” esquecido no quintal da casa alugada. Perdido na selva do passado. O resgate que nunca chegou.

A primeira revista Playboy que comprou. Quase todas as páginas coladas. Relíquia da puberdade. Mas você cresceu e descobriu o machismo, que vende mulheres no varejo e atacado. E embora a revista já não lhe sirva mais, você ainda guarda. Afinal, é um sentimental. E sentimentos não se jogam fora assim... tão facilmente.

Os sonhos que deixou para trás, caídos do caminhão para o asfalto, como a cadeira velha que ninguém viu despencar. Contingências... Quem encontrou? Quem realizou os sonhos? O que vai ser quando crescer? Astronauta, cientista, mágico, motorista do carro do lixo... Jornalista. Quem sabe um domador de bodes num circo do interior...

O álbum de fotografias, antes da câmera digital. Lembranças sem photoshop. Os cadernos da escola, com as assinaturas dos amigos e os recadinhos do coração. Os livros na estante... o clássico que ganhou da ex, com a dedicatória que você apagou depois. A narrativa é sua e você faz o que quiser com ela, não é? Mas com que direito?

Na gaveta da mesinha de cabeceira, o papel do bombom que você ganhou daquela garota. O cheiro do chocolate. No meio dos papéis velhos, uma carta antiga, de pré-adolescente. Sua para a menina que você amava, sem que ninguém soubesse disso. Nem ela. Borboletas na barriga. O discurso ensaiado no espelho. As frases que preparou, e nunca disse.

Vinte anos depois, você a reencontra. Linda. Linda como o nascimento das galáxias. E descobre que ela também te namorava... de longe, porque também não tinha coragem de falar. É o preço da hesitação. Duas vidas em silêncio, uma história represada e uma pergunta inescapável:

Ainda dá tempo? 

2 comentários:

Anônimo disse...

Tão profundo e preciso... Profissional, pois faz exatamente o que uma crônica tem que fazer: narrar o cotidiano com essência e originalidade... tão extasiado que não vou conseguir ler outro. Preciso me recuperar... :)

Palavras disse...

Muito bom!!! Me identifiquei. Gostei. Ah! Nem sei...

Grande abraço

Leila Rodrigues