domingo, 15 de julho de 2012

A perda da inocência

Por João Paulo da Silva

Vou usar um clichê. A vida é uma enorme travessia. E pelo caminho vamos perdendo uma penca de coisas importantes. Tudo bem. Eu sei. Já está manjado. Mas é que eu sempre quis dizer isso num texto. Tem a ver com uma espécie de magia que a frase exerce sobre mim. Não sei. Gosto da metáfora. É isso. É a metáfora.

Quando nascemos, nos encontramos com o desconhecido. E aí ficamos fascinados. Até uma certa idade, claro. Porque, depois do fascínio, vem a decepção. Entre o deslumbramento e o medo, surge o mágico. É aquela época em que ainda não descobrimos as leis que fazem girar as grandes engrenagens que movimentam a carroça do mundo. E é exatamente por isso que não percebemos a farsa. À medida que crescemos, pequenas rupturas vão se dando no nosso imaginário fabuloso. Mas sempre levando uma parte importante de nossas ilusões. Até que, finalmente, nos deparamos com a quebra do elo irrecuperável, com a desgraça absoluta, com a apoteose do caos. Com a perda da inocência.

A inocência era aquilo que nos permitia o encanto. Quando eu era inocente, imaginava meu pai como o ser mais poderoso da Terra, corajoso e inquebrantável. Aí chegou o dia em que eu apareci com o olho roxo em casa. Briguei na rua. E exigi que meu pai fosse lá fora e desse uma surra no garoto que me bateu e no pai do garoto também. Meu pai foi. Com cara de bravo, quase dizendo “vamos dar uma lição nesses frouxos!”. Ao avistar o pai do menino que me bateu (um negrão com três metros de altura e dois de largura), uma rápida mudança se expressou no rosto de meu pai. Ele começou a falar com mansidão, argumentou que violência só gera violência, que o melhor mesmo era usar a diplomacia, o diálogo. E acabou concluindo com uma premissa cristã: “Devemos perdoar nossos inimigos, filho”. Foi o fim. Me convenci de que meu pai era um frouxo. Um mela-cueca. E vi cair por terra um importante pilar da inocência. Parte do encanto se desfez. Foi a primeira ruptura.

E os mágicos, hein?! Estes, sim! Davam sinais de que preservariam minha inocência. Tudo ilusão. Era fabuloso achar que aqueles sujeitos realmente cerravam mulheres ao meio e depois juntavam as partes, flutuavam diante dos meus olhos, descobriam qual era a carta certa só com a força do pensamento, etc etc etc. Logo após o Mr. M, tudo ruiu. Hoje ninguém mais se atreve a tirar coelhos da cartola ou cortar mulheres. Corre o risco de ser chamado de charlatão. A segunda ruptura. Outra decepção.

A terceira ruptura tem a ver com a TV em cores. Meu pai costumava ver muitos filmes em preto e branco. Eu cresci vendo esse tipo de filme. Aquela caixa mágica que produzia universos era fascinante. Vi drama, terror, western. O mundo se revelava para mim via TV. Desconheço completamente as causas do que vou dizer agora. Mas, de alguma forma, guarda seu deslumbramento. Até uma certa idade – não sei bem qual – eu achava que os filmes em preto e branco eram dessa forma porque, na época em que foram gravados, o mundo também era preto e branco. Na minha cabeça o mundo só ficou colorido depois que inventaram a TV em cores. Imagine o tamanho de minha decepção quando descobri que o mundo sempre fora colorido. E que a TV não tinha nada a ver com isso.

Mas a desgraça absoluta, o caos apoteótico e a ruína do meu castelo de baralho só vieram mesmo com a perda total da inocência. Foi no circo. Eu adorava o circo. Ainda adoro, mas não da mesma forma. Assistia, deslumbrado, ao espetáculo. Leões, elefantes, girafas, equilibristas, cuspidores de fogo, palhaços. Palhaços! Foi por conta de um palhaço que o mundo desabou.

Era intervalo do espetáculo, momento em que os funcionários do circo passam oferecendo guloseimas. Eu estava com fome. Queria comer alguma coisa. Aí veio o palhaço. Distante de mim alguns metros, ele gritava passando entre os espectadores:
- Olha a pipoca! Olha a pipoca! Criança não paga! Criança não paga!

Fiquei eufórico. Seria possível? Criança não paga?! Era possível, sim! Eu tinha ouvido muito bem. Não pensei duas vezes. Corri em disparada na direção do palhaço, certo de que ganharia minha pipoca. Foi quando o palhaço, vendo que eu estava próximo, me fez conhecer a face cruel dos homens.
- Olha a pipoca! Olha a pipoca! Criança não paga! Só quem paga é a mamãe!

Estanquei. Estava murcho feito um maracujá. Finalmente, do fascínio se fez a decepção. Do deslumbramento, revelou-se a farsa. A longa travessia da vida levou o que de mais importante eu tinha: a inocência. Para capitalismo não bastava apenas o lucro. Ele queria também meu encanto diante do mundo.

Um comentário:

leveza disse...

belo texto. parabéns... o final é lindo, cruel e emocionante tal como a vida é.